As reflexões propostas partem da contraposição entre a importância atribuída pela lei à prova pericial e o gradual destaque atribuído ao vídeo como meio de prova criminal.[1]
Com a difusão dos métodos de captação e reprodução audiovisuais torna-se crescente a utilização do vídeo como meio de prova. Especialmente no processo penal, a vulgarização da imagem conduz a questionamentos sobre a aptidão epistêmica do vídeo.
São múltiplas e conhecidas as possibilidades tecnológicas de alteração e manipulação de seu conteúdo. É também notória a possibilidade de criação, por meio de inteligência artificial, de conteúdos audiovisuais (deepfakes). O registro da cadeia de custódia só assegura a integridade e a autenticidade a partir do momento em que a mídia é coletada; um vídeo devidamente custodiado pode ter sido submetido a manipulação fraudulenta antes de ingressar na investigação criminal. E, a depender da sofisticação da tecnologia utilizada, será praticamente impossível detectar eventual manipulação ou criação fraudulenta do conteúdo. Ainda, o que é mais complexo do ponto de vista do processo penal: não se poderá afirmar, com segurança, a inexistência de utilização de tais recursos.[2]
Além disso, como já se discorreu noutras ocasiões,[3] embora constitua fonte relevantíssima de prova, por registrar aspectos da realidade que dificilmente seriam apreendidos por outros meios, o vídeo pode conduzir à ilusória sensação de que estejamos diante da realidade objetiva.
A interpretação do conteúdo do vídeo pode ser comprometida por vieses de foco, luz e perspectiva, pela baixa qualidade do som e da imagem. Isso sem falar na inaptidão do cérebro humano a captar integral plenamente a informação contida no vídeo: a fluidez e a multiplicidade de estímulos potencializam problemas relacionados à atenção seletiva. O vídeo narra “mais de uma história e menos que toda a história”.[4]
Estamos, portanto, diante de um meio de prova paradoxal: poderoso na perspectiva da capacidade de registrar os acontecimentos e, ao mesmo tempo, sujeito a uma volatilidade material nem sempre controlável, com um conteúdo suscetível a vieses dificilmente detectáveis. Um exemplo da credibilidade do vídeo pode ser extraído do registro do assassinato brutal de George Floyd, feito por um celular em Minnesota, nos Estados Unidos. Por outro lado, há situações notórias em que a natureza forjada dos vídeos não seria facilmente identificada: é o caso do discurso falso de Barack Obama, criado pelo ator e cineasta Jordan Peele para alertar as pessoas contra o risco de deepfakes[5].
Feitas tais considerações, merece, ser enfrentada a questão pertinente à possibilidade da prova em vídeo suplantar a regra contida no art. 158 do CPP e em algumas leis específicas que estabelecem a exigência do exame de corpo de delito para a comprovação da materialidade dos crimes de “deixam vestígios” .
O rigor da prova pericial, nos moldes da lei, constitui uma exigência epistêmica mínima em benefício do réu, que deve ser compreendida na ordem de prioridade estabelecida pelo art. 158. Cuida-se de proteger a credibilidade da prova pericial e o status de inocência do acusado.
Desse modo, sempre que possível, o exame pericial deve ser direto – i.e., recair sobre elementos que comprovem o fato criminoso; nas hipóteses em que, apesar de envidados todos os esforços para realizar o exame direto, este se houver tornado inviável, poderá ser procedido o exame indireto.[6] Apenas na hipótese de se mostrar inviável o exame tem lugar a prova testemunhal (art. 167 do CPP), sendo vedado o suprimento da exigência do exame pela confissão do acusado.
Ao lado do art. 158, há normas específicas que regulam as mais diversas exigências de prova pericial. Esse conjunto de regras conduz à conclusão de que a prova técnico-científica-especializada, tão prestigiada na atualidade – e, no caso do exame do corpo de delito, desde épocas remotas[7] – , possui, na maior parte dos casos, eficácia probatória determinante para a sentença condenatória penal. Sem ela, não pode haver condenação, embora não se possa dizer que a lei estabelece o necessário acolhimento, pelo juiz, do resultado do exame. A condenação dependerá, sempre, de elementos contundentes para o juízo de culpabilidade.
A questão que se coloca é saber se, diante da possibilidade de o vídeo captar o próprio ato criminoso, faria sentido manter a exigência mínima do exame de corpo de delito.
O problema não é de simples solução. Inicialmente, é preciso responder ao questionamento sobre o principal pressuposto da exigência de prova pericial: é razoável supor que a apuração um crime que deixa vestígios carece sempre, dos conhecimentos de um perito? Alternativamente, é possível estabelecer um grau de necessidade desses conhecimentos, que pode variar da imprescindibilidade até uma necessidade relativa ou mesmo desnecessidade?
Cumpre, primeiramente, questionar a imprescindibilidade do exame à prova de qualquer crime que se enquadre no texto legal. Isso porque que, em determinados casos, o esclarecimento do fato pode não demandar quaisquer conhecimentos científicos, técnicos ou especializados. Se for assim, caberá ao julgador o ônus argumentativo de demonstrar que a exigência epistêmica mínima estabelecida pela lei é inaplicável, simplesmente porque nenhum aspecto do fato criminoso se adequa à hipótese de cabimento da perícia. Cuida-se interpretação teleológica do texto normativo, já que a lei incorreria em contrassenso se exigisse a perícia nas hipóteses em que, por definição, esta fosse incabível.
Nos casos em que a perícia é cabível, mas não imprescindível, parece-nos que, desincumbindo-se de um ônus argumentativo ainda mais rigoroso, o julgador pode dispensar o exame de corpo de delito cuja realização, ainda que não impossível, seja de alguma forma dificultosa. Nesses casos, deverá demonstrar que o corpo de delito figura num patamar de igualdade epistêmica com outros meios de prova. Seriam hipóteses excepcionais, em que o exame tenha sua função plenamente atendida por outros meios de prova.
Essa interpretação se justifica, na perspectiva constitucional, no argumento de que a persuasão racional está relacionada à função epistêmica do direito à prova, que é direito humano e fundamental.
O parágrafo único do art. 158 sinaliza essa relativização nos crimes que envolvem violência doméstica e familiar contra mulher e violência contra criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência. Nesses casos o exame de corpo de delito deve ser priorizado, deixando, pois, de ser exigido em toda e qualquer situação. A dicção legal sugere, ainda assim, que a dispensa é exceção, e deve ser justificada. Nessa linha, a jurisprudência do STJ admite a apresentação de laudos médicos em lugar do exame por perito oficial, a fim de comprovar a ocorrência de lesões corporais.[8] É possível, até mesmo, que as lesões sejam comprovadas “de forma contundente” por outros meios, como testemunhos, documentos e fotografias.[9]
Nas hipóteses em que a lei não prevê a ressalva do parágrafo único do art. 158, seria razoável que a justificativa da suficiência de outros meios de prova fosse associada à dificuldade da realização da prova pericial oficial.
Ainda assim, diante das ambiguidades ressaltadas, parece claro que dificilmente o vídeo poderá, por si só, substituir o exame de corpo de delito. A ilustrar o exposto, basta ter em mente que, até mesmo no caso notório de George Floyd, a perícia se mostrou imprescindível à apuração da causa da morte.[10]
Por fim, cabe ressaltar que o vídeo é importante ferramenta para o trabalho do perito e que, mesmo quando este não se valha das filmagens, elas deverão ser contrastadas à prova pericial, justamente porque esta, embora imprescindível nos casos que demandam conhecimentos especializados, não deve ser erigida à condição de prova cabal do crime ou de seus elementos.
[1] Neste texto aprofundei os questionamentos desenvolvidos no item 4.2.4.3 do livro Prova em vídeo no processo penal: aportes epistemológicos. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2023. Agradeço aos professores Gustavo Badaró, pela sugestão do tópico, e Guilherme Madeira por trazer novas reflexões.
[2] Sobre isso, v. MARAS, Marie-Helen. ALEXANDROU, Alex. Determining authenticity of video evidence in the age of artificial intelligence and in the wake of deepfake videos. The international journal of evidence & proof. Vol. 23(3), 2019, p. 255–262. V. ainda, o tedtalk de 25 de abril de 2018 (https://www.ted.com/talks/supasorn_suwajanakorn_fake_videos_of_real_people_and_how_to_spot_them?language=en), em que o cientista computacional Supasorn Suwajakorn menciona o desenvolvimento de métodos de tecnologias para criar e detectar vídeos a partir de Inteligência Artificial, e afirma textualmente que há um longo caminho a ser trilhado para garantir a segurança das tecnologias que menciona.
[3] Cf., por exemplo: GUEDES, Clarissa Diniz. Sobre a aptidão epistêmica do vídeo: narrativas audiovisuais e interpretação indireta do vídeo pelos tribunais. Trincheira Democrática. Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. No 6, n. 27, jun. – 2023, p. 10 e s., disponível em https://www.ibadpp.com.br; Prova em vídeo no processo penal: aportes epistemológicos. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2023.
[4] SILBEY, Jessica. Cross-examining film. Race, religion gender & class, v. 8917, 2008, p. 17-46.
[5] Cf. https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/04/diretor-jordan-peele-faz-video-com-obama-para-denunciar-noticias-falsas.shtml
[6] Cf. STJ, AgRg no HC 797.375/MG, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª T., j. 26/9/2023, DJe 29/9/2023.
[7] Sobre os antecedentes históricos da exigência do exame de corpo de delito cf. PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 2ª ed., p. 70-87.
[8] A contrario sensu: STJ, AgRg no REsp 1.968.165/PR, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª T., j. 19/12/2022, DJe 21/12/2022.
[9] AgRg no AREsp 2.419.600/DF, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6ª T., j. 24/10/2023, DJe 31/10/202.
[10] Veja-se, contudo, que a perícia oficial foi ampliamente questionada por outros laudos de necropsia, o que, no nosso sistema, confirma a necessidade de o exame oficial ser uma exigência mínima, mas não suficiente, à condenação.https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/01/duas-novas-autopsias-afirmam-que-george-floyd-foi-morto-por-asfixia.ghtml.