No último dia 7, a Assembleia Legislativa de São Paulo, em sessão bastante tumultuada, aprovou a privatização da Sabesp. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) comemorou a vitória afirmando que as críticas à privatização não têm fundamento, pois o processo “ajudará a construir um legado de universalização do saneamento, de despoluição de mananciais, de aumento da disponibilidade hídrica, de saúde para todos”.[1]
Como era de se esperar, a grande mídia também comemorou o resultado[2]. Editorial da Folha de S.Paulo publicado no mesmo dia tem por título “O saneamento vence”. “Apesar do tumulto deplorável, privatização da Sabesp avança em benefício da população paulista”, afirma o subtítulo. No texto, podemos encontrar mais apologias da privatização, associando-a a diversas consequências positivas, tais como a universalização dos serviços, inclusive no que diz respeito à antecipação da meta para 2029, à redução de tarifas e à ampliação de investimentos em até R$ 66 bilhões[3].
É fácil observar como o discurso do governador e da grande mídia reproduz a retórica neoliberal que vê na privatização a solução perfeita não apenas para corrigir as falhas e insuficiências dos governos, como para atribuir à prestação de serviços a qualidade e a eficiência que seriam inerentes aos mercados privados.
Entretanto, o debate sobre privatização, especialmente em serviços como água e saneamento, é bastante complexo para ser compreendido a partir de visão polarizada e apriorística. Esse tipo de abordagem não faz o menor sentido pois, como nos explica o professor Sérgio Lazzarini, em sua mais nova obra sobre o tema[4], a pergunta certa não é se a privatização é melhor que a gestão pública, mas quando ela é superior e em quais condições pode enfrentar os desafios para assegurar eficácia (qualidade dos serviços) e inclusão de serviços públicos mesmo com a lógica privada de redução.
Consequentemente, Lazzarini mostra que a privatização não é forma de se livrar de governos ruins, até porque programas de privatização bem-sucedidos dependem de governos capazes. Daí a importância de se pensar: (i) nas competências governamentais e nos incentivos para que as privatizações possam trazer os resultados esperados, inclusive no que diz respeito aos resultados sociais e (ii) na necessária supervisão pública dos serviços privatizados, o que inclui monitoramento, mensuração e avaliação da qualidade dos serviços por meio de métricas adequadas e insuscetíveis de manipulação.
Daí a importância da adequação do processo de privatização, razão pela qual Lazzarini propõe um roteiro em três etapas, cada uma delas orientada por análises de possíveis falhas e de ações necessárias para mitigar essas falhas: a fase preparatória e de planejamento, a fase de implementação e a fase pós-privatização.
Logo, antes de nos posicionarmos a respeito do mérito da privatização da Sabesp, é fundamental considerar se a fase preparatória realmente atendeu aos requisitos exigidos e se e em que medida as demais fases estão suficientemente pavimentadas.
Para além disso, é preciso considerar também que, no momento atual, os dados empíricos existentes sobre as privatizações exigem um olhar mais cuidadoso sobre o assunto. Basta mencionar o livro coletivo Reclaiming Public Services: How cities and citizens are turning back privatization[5], publicado pelo Transnational Institute e disponível online.
Embora seja de 2017, a publicação já havia coletado, até aquele momento, 835 iniciativas do que chama de “remunicipalização”, ou seja, de reversões de privatizações – ou “desprivatizações” – por qualquer que seja o meio. Tais exemplos dizem respeito a mais de 1.600 cidades distribuídas em 45 países.
A publicação também mostra algumas tendências do que chama de onda de reestatização de serviços outrora privatizados. Uma das mais importantes é o protagonismo da Europa, já que, dos vários exemplos analisados, 347 referem-se à Alemanha (especialmente no setor de energia), 152 na França (especialmente no que diz respeito à água), 64 no Reino Unido e 56 na Espanha. Entretanto, o movimento transcende a Europa e pode ser visto em diversos outros países, incluindo a América Latina.
Outra característica é que os principais setores nos quais a desprivatização vem ocorrendo são precisamente energia e água. No caso da água, os autores mapearam pelo menos 235 casos ocorridos em 37 países, envolvendo mais de 100 milhões de pessoas. O caso francês é paradigmático, por mostrar que a republicização da água e do saneamento tem sido uma tendência das grandes cidades francesas, como Paris, Montpellier, Nice, Rennes e Grenoble, mas também vem se alastrando para as médias cidades.
Outras características importantes do processo de desprivatização é o grande envolvimento de cidadãos e trabalhadores, bem como uma tendência de despolitização, pelo menos no sentido partidário, do fenômeno. Com efeito, apesar da desprivatização estar relacionada às críticas ao neoliberalismo e à austeridade, a publicação do Transnational Institute mostra que muitos desses processos, especialmente na França e na Alemanha, conseguiram congregar políticos de todas as tendências, envolvendo um consenso transpartidário que foi obtido a partir das críticas aos serviços privatizados e às melhorias que se esperariam com a desprivatização.
Com efeito, no que diz respeito às críticas à privatização, para além das consequências conhecidas de aumento de tarifas e degradação da qualidade dos serviços, são mencionados diversos outros problemas da gestão privada, incluindo corrupção, propinas, quebras de contratos, dividendos excessivos, lucros acima dos limites contratuais, dentre outros.
Em outras palavras, a experiência mostra que a proteção dos investidores inerentes a agentes privados pode prejudicar os interesses públicos, o que muitas vezes acontece mesmo em concessões. Não é sem razão que a publicação mostra o alto percentual de negociações que envolvem aumento de tarifas e colocam o interesse público em uma posição secundária, assim como as dificuldades para que atores privados compartilhem informações e conhecimento, o que dificulta ou impossibilita que autoridades locais controlem e monitorem tais contratos privados.
Por outro lado, a publicação mostra como as iniciativas de desprivatização têm sido bem sucedidas em diminuir custos e tarifas, melhorar as condições de trabalho e a qualidade do serviço, ao mesmo tempo em que asseguram maior transparência – sobretudo financeira – e accountability. Mesmo pela ótica do custo-efetividade, os autores mencionam diversos exemplos de maior eficiência dos serviços públicos.
Como se pode observar, a publicação do Transnational Institute coloca em xeque o estigma de que serviços públicos são sempre caros e ineficientes, em contraste com os serviços privados, que seriam sempre bons.
Dessa maneira, está mais do que na hora de evitar que as privatizações sejam tratadas como soluções inerentemente boas ou como soluções fáceis ou mesmo milagrosas. Por mais possam ser justificáveis em alguns casos, as privatizações envolvem inúmeras dificuldades, dentre as quais as de alinhar interesses privados com interesses públicos, ainda mais em face dos atuais desafios sociais e ambientais. É por essa razão que Lazzarini, na obra mencionada, menciona que o sucesso das privatizações depende essencialmente de bons governos.
Em se tratando de água e saneamento, o cuidado precisa ser ainda maior, diante de uma experiência internacional que pode nos ajudar a entender por que diversos processos de privatização nessas áreas estão sendo revertidos em todo o mundo.
Daí por que o debate precisa ser menos polarizado e apaixonado, a fim de se evitar que as questões político-partidárias obscureçam as discussões técnicas. Diante do caso da Sabesp, temos que avaliar não apenas a existência de justificativas para a privatização, mas também a idoneidade da condução do processo e as garantias de que os benefícios esperados serão realmente obtidos.
[1] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/12/06/privatizacao-da-sabesp-e-aprovada-na-alesp.ghtml
[2] Já tive oportunidade de explorar o alinhamento da grande mídia brasileira com a ortodoxia econômica na coluna A grande mídia como veículo da ortodoxia econômica. Editoriais de grandes jornais diante do aumento do salário mínimo mostram como o debate é simplista. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/a-grande-midia-como-veiculo-da-ortodoxia-economica-30082023
[3] Para fazer justiça à Folha, apesar do editorial, houve matéria na mesma edição que apontava os argumentos favoráveis e os contrários à privatização.
[4] LAZZARINI, Sérgio. Privatização certa. Por que as empresas privadas em iniciativas públicas precisam de governos capazes. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
[5] https://www.tni.org/en/publication/reclaiming-public-services