Foi certamente um avanço da Anvisa ter criado, por meio da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 327/2019, a categoria de produtos de Cannabis para permitir a sua comercialização no país e, assim, ampliar o acesso. Tal movimento, é verdade, não foi resultado de uma postura proativa, antecipada, da agência, mas decorrente da pressão criada pelas circunstâncias: o aumento da demanda, em grande parte, em razão de decisões judiciais que ora determinavam o fornecimento pelo SUS de produtos derivados da Cannabis sativa ainda não aprovados no país, ora obrigavam a Anvisa a permitir a sua importação por cidadãos a partir de receitas médicas.
Essas circunstâncias constam, inclusive, no processo administrativo de edição da RDC 327/2019, seja no voto do relator originário, o diretor William Dib[1], seja no voto do diretor Fernando Mendes[2], cuja proposta de regulação foi aprovada em substituição à proposta inicial, resultando na RDC 327/2019.
O fato de a Anvisa ter sido “provocada” pelas circunstâncias a regular o tema não é um problema, pelo contrário. Floriano de Azevedo Marques ensina que “é essencial à noção de moderna regulação que o ente regulador estatal dialogue e interaja com os agentes sujeitos à atividade regulatória buscando não apenas legitimar a sua atividade, como tornar a regulação mais qualificada porquanto mais aderente às necessidades e perspectivas da sociedade”[3]. Nesse aspecto, portanto, a agência deve ser parabenizada.
Não obstante, o que se vê no processo de edição da RDC 327/2019 é que a Anvisa fez uma leitura incorreta das circunstâncias, especialmente das decisões judiciais determinando o fornecimento dos produtos pelo SUS e a liberação da importação a partir de receitas médicas. E, assim, acabou por incluir na RDC 327/2019 limitações ao uso desses produtos que estão fora da sua competência e sequer fazem sentido para o mercado alvo da sua regulação.
É o caso, por exemplo, do art. 5º da RDC 327/2019, o qual prevê que os “produtos de Cannabis podem ser prescritos quando estiverem esgotadas outras opções terapêuticas disponíveis no mercado brasileiro”. De acordo com essa redação, a única interpretação possível do dispositivo é no sentido de que ele impõe uma limitação à própria atividade de prescrição, exigindo que o médico, antes de prescrever produtos de Cannabis, esgote “outras opções terapêuticas disponíveis no mercado brasileiro”.
Ocorre que não é competência da Anvisa limitar a atividade de prescrição, interferindo na autonomia do médico na definição do melhor tratamento. Nenhum dos dispositivos da Lei nº 9.782/1999 prevê tal papel para a Anvisa. E não há dúvida que o art. 5º da RDC 327/2019 interfere na autonomia médica, porquanto exige que sejam receitadas “outras opções terapêuticas disponíveis no mercado brasileiro” antes que produtos de Cannabis possam ser prescritos, mesmo que o médico entenda não ser essa a melhor estratégia terapêutica (do contrário, no rigor da norma, a prescrição do produto de Cannabis seria irregular).
Não se está argumentando que a Anvisa não pode de nenhuma forma interferir no ato de prescrição por um médico. Pode e o faz, por exemplo, na Portaria SVS/MS 344/1998, que regula as substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial, quando exige que o médico utilize tipos de prescrição específicos a depender do produto (artigos 35 a 60). Há essa previsão, inclusive, na RDC 327/2019 em relação aos produtos de Cannabis[4].
Essa exigência, contudo, é instrumental e está relacionada à competência da Anvisa no controle sanitário dos produtos sujeitos à regulação pela agência (Lei 9.782/1999, art. 8º), o que é facilitado pela dinâmica das prescrições diferenciadas. Muito diferente é impor ao médico uma estratégia terapêutica como condição para legitimar o ato de prescrição de produtos de Cannabis, uma clara interferência na sua autonomia na definição do melhor tratamento.
É curioso que, no próprio processo administrativo de edição da RDC 327/2019, não há uma justificativa clara para a regra do art. 5º. Pelo contrário, o que consta no voto do diretor Fernando Mendes é que a maioria da diretoria aprovou a exclusão de um trecho de um dispositivo, que tratava da prescrição médica dos produtos de Cannabis fazendo referência às orientações do CFM e do Ministério da Saúde, por entender que “as regulamentações da Anvisa não entram na esfera das competências dos conselhos de classe”[5].
De fato, disciplinar o ato de prescrição, no sentido de limitar a autonomia médica na definição do tratamento para o paciente, é competência do CFM. A Lei 12.842/2013, em seu art. 7º, prevê que “compreende-se entre as competências do Conselho Federal de Medicina editar normas para definir o caráter experimental de procedimentos em Medicina, autorizando ou vedando a sua prática pelos médicos”.
Mas mesmo essa competência do CFM deve ser exercida com cuidado, já que é também direito do médico definir o melhor tratamento para o seu paciente (Resolução do CFM nº 2.217/2018, inciso XVI do Capítulo I e inciso II do Capítulo II)[6], direito esse decorrente da garantia constitucional da liberdade profissional[7].
O próprio CFM reconhece a necessidade de moderação no exercício dessa competência[8]. Recentemente, inclusive, o CFM revogou, após pressão do mercado e da população, a Resolução 2.324/2022 que restringia a prescrição de produtos à base de canabidiol para tratamento de epilepsia refratária em adolescentes e crianças.
Assim, se não é de competência da Anvisa impor limitações à autonomia médica na escolha do melhor tratamento, mas sim do CFM, qual a justificativa para a agência ter instituído a limitação no art. 5º da RDC 327/2019? Como dito, não é possível extrair do processo administrativo de edição da norma, uma justificativa clara, o que, por si só, torna questionável a juridicidade da limitação.
Uma explicação seria que a Anvisa entendeu necessária a limitação inspirada nos cenários das decisões judiciais que determinaram o fornecimento pelo SUS de produtos derivados da Cannabis sativa. Tais decisões muitas vezes condicionaram o fornecimento ou liberação de importação de tais produtos — que à época sequer eram aprovados pela Anvisa — à ineficácia das alternativas terapêuticas disponíveis. Essa condição, todavia, está relacionada a uma preocupação do Judiciário de evitar impactos na gestão dos recursos públicos, dando-se preferência para o uso de produtos que já fazem parte das políticas do SUS em detrimento daqueles cuja aquisição está fora do planejamento e sequer estão aprovados no Brasil.
Essa preocupação, no entanto, não pode ser utilizada para subsidiar a limitação do art. 5º da RDC 327/2019, já que tal norma obviamente não é voltada à regulação do fornecimento desses produtos pelo SUS, cuja gestão de recursos também não é competência da Anvisa.
Outra possível explicação seria que, por não serem produtos com eficácia e segurança cientificamente comprovadas, no entender da Anvisa, a regulação autorizadora do seu uso no país seria provisória e excepcional, o que justificaria condicionar a prescrição de tais produtos ao esgotamento de todas as outras alternativas terapêuticas. É o que se pode extrair, por exemplo, do trecho do voto do diretor Fernando Mendes quando afirma que “trata-se de proposição de um modelo alternativo, convergente às melhores práticas internacionais e às contribuições pertinentes diretamente ligadas à exigência popular para que seja legitimado o uso desses produtos no caso de serem eles, no contexto da enfermidade e do enfermo, a única opção terapêutica”.
Também nesse cenário, a limitação do art. 5º da RDC 327/2019 não nos parece juridicamente válida. A regulação da Anvisa até prevê como fator condicionante para regularidade do uso de um produto no país o fato de ser ele a única opção terapêutica, mas somente nas situações em que tal produto não é aprovado pela agência.
É o caso da RDC 203/2017, que dispõe sobre os critérios e procedimentos para importação, em caráter de excepcionalidade, de produtos sem registro na Anvisa. Em seu art. 3º, a norma permite a importação desde que esteja presente uma entre quatro situações, sendo uma delas a “indisponibilidade no mercado nacional, bem como de suas alternativas terapêuticas ou produtos usados para a mesma finalidade devidamente registrados” (inciso I).
Ocorre que os produtos de Cannabis são produtos aprovados pela Anvisa após análise técnica com conclusão positiva acerca do cumprimento de requisitos previstos na regulação. Embora sua aprovação não se dê pela via do registro, mas sim da autorização sanitária, ambos procedimentos, ao se analisar pela ótica jurídica, são atos públicos de liberação da atividade econômica, nos termos da Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), que claramente não faz qualquer distinção entre “autorização” e “registro” (vide art. 1º, § 6º).
Assim, ainda que, segundo a Anvisa, a regulação instituída pela RDC 327/2019 seja provisória e excepcional, não existe produto “parcialmente” aprovado para uso no país — ou o produto está aprovado ou não está. E certamente não cabe à Anvisa condicionar a regularidade do uso a fator que não cabe à agência decidir: o momento em que o produto de Cannabis deve ser prescrito pelo médico dentro da estratégia de tratamento.
Assim, parece-nos que a limitação imposta pelo art. 5º da RDC 327/2019 não é juridicamente válida. Não obstante pareça ser um condicionamento inócuo, já que desprovido de mecanismos de fiscalização pela Anvisa na prática médica, recomendável é a sua exclusão da futura norma que substituirá a RDC 327/2019 e que, até onde se sabe, aguarda a sua Análise de Impacto Regulatório pela agência. Fica a dica.
[1] No voto do Diretor William Dib, consta que “a demanda pelo uso imediato de produtos contendo a Cannabis cresceu exponencialmente para as mais variadas condições de saúde. (…) Assim, estabeleceu-se um quadro de intensa judicialização pela obtenção desses produtos: quer seja na busca pelo acesso via importação de produtos de outros países – na medida em que não havia no mercado nacional nenhum produto a base de Cannabis medicinal registrado, quer seja pela demanda de que o Poder Público, por meio do SUS, custeasse tais importações” (Processo nº 25351.915881/2019-24, voto nº 14/2019).
[2] No voto do Diretor Fernando Mendes, consta que a decisão de regular o tema se deu porque “a proposta aprimora às contribuições que refletem a preocupação com a validação do uso dos produtos à base de cannabis, (…) trata-se da proposição de um modelo alternativo, convergente às melhores práticas internacionais e as contribuições pertinentes diretamente ligadas à exigência popular para que seja legitimado o uso desses produtos no caso de serem eles, no contexto da enfermidade e do enfermo, a única opção terapêutica.” (Processo nº 25351.421833/2017-76, voto nº 92/2019).
[3] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes. Belo Horizonte: Editora Fórum, pág. 32.
[4] Por exemplo, receita A deve ser utilizada para Produtos de Cannabis com teor de THC acima de 0,2%, enquanto a receita B para Produtos de Cannabis com teor de TCH até de 0,2%, conforme artigos 51 e 52.
[5] Processo nº 25351.421833/2017-76, voto nº 92/2019, página 11.
[6] Resolução do CFM nº 2.217/2018 (Código de Ética Médica), capítulo I, inciso XVI: “nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para estabelecer o diagnóstico e executar o tratamento, salvo quando em benefício do paciente”.
Resolução do CFM nº 2.217/2018 (Código de Ética Médica), capítulo II, inciso II: “indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente”.
[7] Constituição Federal, art. 5º, XIII “livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.”
[8] Em seu Parecer nº 4/2020, que trata da possibilidade do uso de cloroquina no tratamento de COVID-19, o CFM propôs que ficaria a critério do médico a prescrição desse medicamento mesmo com menores evidências científicas quanto à sua eficácia, prevalecendo a autonomia do médico para definir o tratamento.