Em 26/11/2024, o Carf realizou a sessão extraordinária do pleno para votação dos enunciados de novas súmulas, oportunidade em que a Súmula 217 foi aprovada com o seguinte conteúdo, transcrito diretamente da respectiva Ata de Julgamento:
“Os gastos com fretes relativos ao transporte de produtos acabados entre estabelecimentos da empresa não geram créditos de Contribuição para o PIS/Pasep e de Cofins não cumulativas”.
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A aprovação da nova Súmula causou preocupação e surpresa, pois, além de não ter sido aprovada por unanimidade, não reflete entendimento pacífico do próprio órgão de julgamento estatal, inclusive no que tange à interpretação do julgado no REsp/STJ 1.221.170 – PR (em sede de recurso repetitivo), o Parecer Normativo Cosit 5/2018 e a Nota SEI/PGFN 63/2018.
Somente com base em três precedentes do Carf, o pleno aprovou, por maioria, entendimento que é contrário a inúmeros precedentes que registraram uma significativa jurisprudência a favor do aproveitamento de tais créditos.
É certo que o art. 124 do Regimento Interno do Carf exige somente três precedentes para a propositura de súmula, contudo, devemos refletir se esta quantidade, como um dos principais critérios para proposição de súmula, é suficiente para conferir a segurança jurídica que um entendimento sumular deve conter em si, afinal, espera-se que os entendimentos “engessados” pelas súmulas, sejam no mínimo majoritários ou preferencialmente pacíficos, uma vez que possuem o objetivo de consolidar/uniformizar entendimentos.
A aprovação de súmulas no Carf que vinculam e fixam determinados entendimentos pode garantir a celeridade dos julgamentos, sim, mas pode prejudicar o acesso ao contencioso administrativo, na medida em que proíbe[1] decisão contrária ao entendimento sumular e cessa a apreciação, a análise e o debate.
É de se destacar que o Carf possui decisões contemporâneas que reforçam a tese dos contribuintes de que é lícito o aproveitamento dos créditos das contribuições referenciadas em relação as despesas incorridas com fretes entre estabelecimentos de produtos acabados. São exemplos os acórdãos 3201-011.328, 3401-011.485, 3201-010.024, 9303-013.338 e 9303-012.424.
O Ricarf, em seu art. 123, estabelece que a jurisprudência assentada pelo Carf será compendiada em Súmula de Jurisprudência do Carf. Acredita-se que, a melhor interpretação a ser dada ao citado dispositivo regimental quando adota a expressão “jurisprudência assentada” é a de jurisprudência assente, firme, consolidada, reiterada e uniforme.
No mesmo sentido, o Código de Processo Civil, em seu art. 926, caput e §1º, aplicado subsidiariamente ao processo administrativo fiscal, estabelece que as súmulas devem corresponder à jurisprudência dominante, justamente para uniformizá-la e mantê-la estável, íntegra e coerente.
É importante destacar que o STJ determinou expressamente a ilegalidade das IN SRF 247/02 e IN SRF 404/04, que limitavam a hipótese de aproveitamento de crédito de PIS e Cofins não cumulativos aos casos em que os dispêndios eram realizados nas aquisições de bens que sofriam desgaste e eram utilizados somente e diretamente na produção. O voto vencedor fixou as seguintes teses:
“É ilegal a disciplina de creditamento prevista nas Instruções Normativas da SRF 247/2002 e 404/2004, porquanto compromete a eficácia do sistema de não cumulatividade da contribuição ao PIS e à Cofins, tal como definido nas Leis 10.637/2002 e 10.833/2003.”
“O conceito de insumo deve ser aferido à luz dos critérios de essencialidade ou relevância, ou seja, considerando-se a imprescindibilidade ou a importância de determinado item – bem ou serviço – para o desenvolvimento da atividade econômica desempenhada pelo contribuinte.”
Portanto, passou a ser ilegal a limitação dos créditos com base em entendimentos que os limitem à produção, ao processo produtivo do contribuinte, ou a qualquer outra limitação que não esteja na legislação ou no próprio entendimento fixado no REsp 1.221.170–PR. Sobre a correta interpretação que deve ser dada ao REsp 1.221.170-PR a conselheira Tatiana Josefovicz Belisário bem expôs em voto proferido no Acórdão 9303-015.043.
Como bem exposto pela nobre conselheira, após o julgamento do REsp 1.221.170/PR, a análise da relevância e essencialidade, de forma casuística (caso a caso) e singular, dos diversos dispêndios para com a atividade econômica da empresa, passou a ser obrigatória, mais uma razão vital pela qual a nova súmula se revelou inadequada, pois impede por completo, independentemente da atividade econômica do contribuinte, a análise casuística e singular da relação dos dispêndios com as diferentes atividades econômicas das empresas.
Veja-se, conforme abaixo, que os precedentes que fundamentaram a nova Súmula 217, utilizam exatamente de outros julgados que contrariam os entendimentos fixados no REsp/STJ 1.221.170 – PR e, nos moldes das ilegais instruções normativas, limitam os créditos à produção e, ainda mais preocupante, estendem tais limitações a um novo conceito restritivo do que é operação de venda ou não. Um exemplo é o acórdão 9303-014.190.
Analisar a matéria sem considerar a atividade econômica do contribuinte pode equivaler à aplicação da ilegal exigência constante nas mencionadas instruções normativas pode configurar a não observância dos entendimentos firmados no julgamento do REsp 1.221.170 / STJ. O espaço hermenêutico, diante do voto vencedor da ministra Regina Helena Costa ao mencionar expressamente a atividade econômica do contribuinte, é limitado.
Ou seja, para fins jurídicos de aproveitamento de crédito e interpretação do conceito de insumos, é de se compreender que o voto vencedor que fixou as teses é o voto que pode e deve ser levado em consideração na leitura do Acórdão do REsp 1.221.170 / STJ, devendo sempre ser observado o raciocínio de relevância firmado, com o respeito a imprescindibilidade ou a importância de determinado item – bem ou serviço – para o desenvolvimento da atividade do contribuinte, e, conforme mencionado anteriormente, a matéria do aproveitamento de créditos de PIS e Cofins apurados no regime não cumulativo vai além do conceito jurídico de insumos.
O direito ao crédito sobre os dispêndios com fretes de produtos acabados, entre estabelecimentos, além de serem essenciais e relevantes às atividades econômicas da empresa, nos moldes estabelecidos no REsp/STJ 1.221.170 – PR, no Parecer Normativo Cosit 5/2018 e na Nota SEI/PGFN 63/2018, possui fundamento nos incs. II e IX dos arts. 3º, das Leis 10.833/03 e 10.637/02.
Nos Acórdãos 9303-009.736, 9303007.102, 9303007.095, 9303-009.048, 9303-013.200, 9303-009.047, todos da 3ª Turma da Câmara Superior, decidiu-se justamente pela aplicação do inc. IX, do art. 3º da Lei 10.833/03, como fundamento para o reconhecimento dos créditos sobre os dispêndios realizados com fretes entre estabelecimentos de produtos acabados, por configurarem fretes nas operações de venda.
No mesmo sentido, os Acórdãos 3302-009.731, 3201-009.199, 3201-009.091, 3201-009.088, 3201-009.516, 3201-009.747, 3201-008.360, 3301-009.611, 3301-008.737, 3301-008.484, 3201-007.885, julgamentos de diferentes colegiados das turmas ordinárias, reconheceram os créditos sobre esses fretes tanto por serem essenciais e relevantes à atividade econômica da empresa, como por subsumirem ao mencionado inc. IX.
Vejam que, de forma expressa, o inc. II utiliza a expressão “produtos destinados à venda” e, por sua vez, o inc. IX contempla a expressão “armazenagem de mercadoria e frete na operação de venda”. Não há nenhum entendimento fixado no REsp/STJ 1.221.170 – PR e muito menos nenhuma expressão na legislação que limite a operação de venda à entrega do produto ao cliente final.
Em que pese o REsp/STJ 1.221.170 – PR ter reconhecido de forma expressa a ilegalidade das IN SRF 247/02 404/04, que limitavam a hipótese de aproveitamento de crédito a um conceito restrito de produção, a nova Súmula traz uma limitação semelhante (produção vs operação de venda), que não encontra, com o respeito devido aos entendimentos contrários, nenhum fundamento válido. É como se as referidas instruções normativas tivessem sido “ressuscitadas”, de modo transverso, da ilegalidade e surgissem com novos fundamentos.
Outra razão que demonstra e expõe a incoerência da nova Súmula, é o fato da palavra “armazenamento” estar prevista no inc. IX da legislação já mencionada, o que por si permite o aproveitamento dos créditos, pois se o frete movimentou produto acabado de um estabelecimento para outro, da mesma empresa, não é preciso dizer que o produto foi armazenado em local próprio, até que fosse vendido para o cliente final.
É distante da realidade considerar que o frete de produtos acabados entre estabelecimentos não seria para venda, pois desvirtua a própria razão de existência da empresa, que é a realização de sua atividade econômica.
Sob o risco da concretização da indesejada insegurança jurídica, as aprovações precipitadas de súmulas podem “engessar” e paralisar no tempo entendimentos que ainda estão em desenvolvimento, que não estão assentados e que oscilam ao longo dos anos, simplesmente por acaso, à mercê das alterações das composições dos colegiados. Relegada ao acaso e ao momento, se imaginarmos que a mesma Súmula 217 tivesse sido proposta de forma favorável ao crédito em período anterior, o pleno poderia ter aprovado a antítese da recente Súmula, pois teria inúmeros precedentes que poderiam ter sido utilizados como fundamento.
Diante da precipitada edição da Súmula 217 e dos inúmeros precedentes favoráveis aos créditos das contribuições sobre os dispêndios com fretes entre estabelecimentos, seja nas Turmas Ordinárias, seja na 3ª Turma da CSRF, é possível concluir que, para garantirem a segurança jurídica desejada e esperada, as súmulas somente deveriam ser aprovadas quando retratarem posição jurisprudencial dominante, consolidada, pacífica, assente, firme, reiterada e uniforme, o que evidencia certa precipitação em sua aprovação, em especial, considerando o seu caráter de aplicação obrigatória por parte dos conselheiros.
[1] RICARF Art. 85, inc. VI