Quando a vida de uma criança ou de um adolescente é controlada por meio de decisões judiciais, é certo que a liberdade de escolhas e de adaptações cotidianas – que tanto engrandeceriam o diálogo pacificador entre seus pais – se perdem na busca por previsões fáticas e fixações de conceitos engessados que são desnecessários.
Paradoxalmente, este afã em prever e definir o futuro da vida de seus filhos para evitar conflitos tem razão de ser no próprio princípio do melhor interesse das crianças e adolescentes, como previsto no artigo 227, da Constituição Federal, em consonância ao artigo 4º[1] e art. 100[2], IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Ocorre que a legislação atual, que fundamenta as decisões judiciais aplicadas à vida das crianças após o divórcio ou à dissolução da união de seus pais, não acompanha o dinamismo das alterações culturais da sociedade.
Há pouco mais de 50 anos, o contexto social patriarcal justificaria a implantação de conceitos rígidos como guarda, convivência e o chamado “lar de referência”, além de prever o pagamento de alimentos ao menor sob supervisão daquele que prestaria efetiva assistência física aos filhos.
Em outras palavras, o contexto social em que a mãe trabalhava exclusivamente em casa e não possuía renda para manutenção de seus filhos era a realidade da esmagadora maioria e, portanto, fixar-se o lar de referência, os alimentos, a guarda unilateral e uma convivência com viés de visitas, de fato, fazia sentido à época.
Paulatinamente, o legislador e a comunidade jurídica passaram a reconhecer a ascensão da mulher no mercado de trabalho e, via de consequência, houve uma proximidade no equilíbrio das responsabilidades entre pais e mães com a prole. A balança ainda é absurdamente desigual, mas tende à estabilidade (espera-se). Com isso, no sistema dual de relacionamentos, para que um suba um degrau, o outro tem de descer. Para que um se sente, o outro tem de se levantar. É a lógica da vida. É o equilíbrio. É a igualdade.
Assim, é compreensível que o chamado “duplo lar de referência” ou “residência alternada” ainda não tenha aceitação uníssona pelos doutrinadores, pela comunidade jurídica e pelo próprio Poder Judiciário. No entanto, a resistência também esteve muito presente enquanto se fez defesa à guarda compartilhada que, atualmente, é a regra.
Até mesmo a nomenclatura “lar de referência” vem carregada de um afastamento de responsabilidade do genitor que não o detém, o que demonstra sua completa inadequação. A Constituição Federal, em seus artigos 227 e 229, e o ECA, em seu artigo 22, estabelecem os deveres dos pais que impedem esse afastamento de encargos, mesmo que não tenham seus lares tidos como referência judicial. Portanto, a realidade traçada por Euclides de Oliveira, daquele “parente distante, (que) ficava o genitor que não detivesse a guarda, olhando de longe (…)”[3], não mais pode subsistir porque há, de fato, uma dúbia consideração material acerca do lar de referência do pai e da mãe justamente porque a criança frequenta equilibradamente os dois lares.
Ora, o lar daquele pai ou mãe que não detém a fixação judicial do “lar de referência”, de fato, não traz referência para a estabilidade emocional dos filhos? Por certo, o incremento da coparentalidade no cenário atual interrompe a necessidade de fixar um único lar de referência à criança ou ao adolescente.
O raciocínio para a defesa da desnecessidade da fixação do lar de referência (ou pela possibilidade de fixação da residência dupla) é o mesmo utilizado para ter a guarda compartilhada como regra. Como bem salientado pela I. Ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), “A custódia física conjunta é o ideal a ser buscado na fixação da guarda compartilhada, porque sua implementação quebra a monoparentalidade na criação dos filhos, fato corriqueiro na guarda unilateral, que é substituída pela implementação de condições propícias à continuidade da existência de fontes bifrontais de exercício do Poder Familiar.”[4]
No entanto, poder-se-ia questionar (i) a necessidade de haver fixação de lar de referência para se estabelecer alimentos, considerando o período de maior convivência em uma das casas; e (ii) eventual prejuízo psicológico aos menores nos moldes já verificados acerca da guarda alternada.
A esse respeito, é certo que os alimentos são destinados aos menores e que suas necessidades devem ser supridas em ambos os lares de forma integral, independentemente de uma determinação judicial. Contudo, como aduz FERNANDO SALZER E SILVA[5], “(…) caso o magistrado sinta necessidade, na impossibilidade de divisão matemática do tempo de convivência, a fim de melhor delimitar as atribuições dos pais e mães, o correto é estabelecer um lar referencial de CONVIVÊNCIA, o local onde a criança ou adolescente permanecerá por mais tempo, segundo o regime de convivência implementado no caso, mas nunca uma residência ou lar de referência”.
Assim, o genitor guardião dos alimentos do filho seria aquele que matematicamente possuísse mais tempo de convivência. Com relação aos gastos mensais e exclusivos do menor como escola, atividades extracurriculares, plano de saúde etc., defende-se ser absolutamente possível fixar-se pagamento in natura e proporcional à capacidade econômica e financeira de cada um dos pais, em divisão a ser fixada pelo juízo independentemente de dizer quem teria uma suposta referência de lar.
Logo, ainda que seja necessário reconhecer que a criança ou o adolescente passam mais tempo em uma residência para fins de fixação de verba alimentar, deve-se desassociar por completo à ideia de referência para estabilidade psicológica do infante.
Com relação à suposta similitude ao conceito de guarda alternada, deveras rechaçado pela comunidade jurídica e psicológica, verifica-se, como apontado por PETRA SOFIA PORTUGAL MENDONÇA FERREIRA[6], que “com vistas a esclarecer a diferença entre os institutos [guarda compartilhada e guarda alternada], aprovou-se o enunciado 604 do Conselho da Justiça Federal, no âmbito da VII Jornada de Direitos Civis, sendo fixado o entendimento que a divisão, de forma equilibrada, do tempo de convívio dos filhos com a mãe e o pai, imposta na guarda compartilhada pelo §2º do art. 1.583 do Código Civil, não deve ser confundida com a imposição do tempo previsto pelo instituto da guarda alternada, pois esta não implica apenas na divisão do tempo de permanência dos filhos com os pais, mas também o exercício exclusivo da guarda pelo genitor que se encontra em companhia do filho.” Em síntese, a residência alternada não se confunde com a guarda alternada porque respeita o compartilhamento da guarda e os direitos e deveres advindos de tal instituto.
Considerando tais reflexões, é possível concluir que a exigência de fixação de lar de referência caminha em absoluta oposição ao melhor interesse das crianças e dos adolescentes. Não é necessário dizer, ainda mais por meio de decisão judicial, qual seria o lar a que a criança tomará por referência. Trata-se de uma previsão, de uma conjectura, de uma mera presunção de futuro acerca daquilo que nunca poderá ser provado por estar ligado ao íntimo do seio familiar.
As questões acessórias (alimentos e exercício de guarda alternada já rechaçada) não podem ser subterfúgios para a manutenção de um entendimento arcaico acerca da monoparentalidade. A coparentalidade é uma realidade que deve ser recepcionada pelos Tribunais de forma ampla. A exemplo do que ocorreu com a guarda compartilhada ao se tornar regra, a desnecessidade de se fixar um único lar de referência ou, melhor, a fixação do duplo lar de referência (ou de residência alternada) representará um enorme avanço na representação do tratamento respeitoso e prioritário às crianças e aos adolescentes pelo Poder Judiciário.
[1] Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
[2] Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das medidas: (…)
IV – interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;
[3] FERREIRA, Petra Sofia Portugal Mendonça. A dupla residência da criança pós-divórcio: uma análise do direito comparado e sua aplicação no direito brasileiro. E. D’Plácido: 2021. Pg. 120.
[4] REsp n. 1.251.000/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/8/2011, DJe de 31/8/2011. Consultado em 26/01/2024.
[5]https://ibdfam.org.br/artigos/1524/Guarda+compartilhada%2C+a+regra+legal+do+duplo+domic%C3%ADlio+dos+filhos. Consultado em 26/01/2024.
[6] In A dupla residência da criança pós-divórcio: uma análise do direito comparado e sua aplicação no direito brasileiro. E. D’Plácido: 2021. Pg. 122.