O mês de maio é marcado ao redor do mundo por atos em defesa dos direitos trabalhistas. Em 1º de maio de 1886 ocorreu em Chicago (EUA) uma greve geral de centenas de milhares de trabalhadores pela defesa de uma limitação digna da jornada de trabalho e contra condições precárias. O ato resultou em mortes, especialmente decorrentes do confronto ocorrido na Haymarket Square.
No Brasil, a luta pelos direitos trabalhistas cresceu com a imigração europeia e, em 1917, se realizou na data de 1º de maio uma greve geral pela defesa dos direitos trabalhistas em terras brasileiras. Também foi nesta data que, em 1943, foi promulgada a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Conheça o JOTA PRO Trabalhista, solução corporativa que antecipa as movimentações trabalhistas no Judiciário, Legislativo e Executivo
Em 2025, outro fato interessante ocorreu no mês de maio: a eleição do papa Leão XIV. O nome escolhido pelo atual pontífice foi declaradamente uma homenagem ao papa Leão XIII, um fervoroso defensor dos direitos dos trabalhadores que “abordou a questão social no contexto da primeira grande revolução industrial”[1]. O novo papa, por sua vez, reconheceu que a nossa atualidade está diante de outra onda revolucionária, a da inteligência artificial.
Inquestionavelmente, a nova revolução tecnológica irá impactar profundamente as relações de trabalho, podendo levar, inclusive, ao aumento da sua precarização. Porém, antes de enfrentar os problemas novos, é certo que a sociedade precisa buscar solucionar os antigos, dentre eles o da efetiva igualdade salarial entre homens e mulheres, que ainda elude os trabalhadores.
No Brasil, o tema é objeto da Lei 14.611/2023, cujos trechos estão tendo sua constitucionalidade questionada na ADI 7.612, proposta pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e pela Confederação Nacional do Comércio (CNC).
A ADI não propõe uma declaração integral de inconstitucionalidade da norma, mas questiona alguns de seus dispositivos. As confederações autoras afirmam na inicial reconhecer a importância da igualdade salarial, e pugnam pela sua proteção, mas questionam algumas das alterações-chave trazidas pela Lei 14.611 em relação ao arcabouço normativo anterior.
Este breve artigo tampouco tem a intenção de impugnar todos os pontos trazidos na ADI e busca meramente lançar luz sobre o estágio em que se encontra a discussão sobre efetiva igualdade entre trabalhadores e trabalhadoras no Brasil.
Para tanto, não é preciso ir além do primeiro ponto questionado pela ADI: a previsão de que, quando for identificada desigualdade salarial ou de critérios remuneratórios, a pessoa jurídica de direito privado estará obrigada a apresentar e implementar plano de ação para mitigar a desigualdade.
O questionamento parte da ressalva, feita no dispositivo questionado (§ 2º do art. 5º da Lei 14.611), de que tal obrigação será imposta ainda que que não haja violação ao art. 461 da CLT. A alegação das autoras da ADI é de que a lei estaria ferindo “a dimensão substancial da isonomia”, ao desconsiderar “diferenciações salariais legítimas”.
Mas afinal, o que significa a dimensão substancial da isonomia perante a existência de diferenças salariais legítimas? Ambos os conceitos parecem demandar maior esclarecimento antes que se possa concluir o real espaço construído pela Constituição Federal para a proteção da igualdade.
Em seu art. 5º, I, a CF dispõe que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” e o inciso XXX do art. 7º trata do direito social à igual remuneração pelo trabalho de igual valor, e dispõe acerca da “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”. A partir desses dois dispositivos fundamentais, extrai-se um direito à igualdade específico: a proteção constitucional à remuneração livre de diferenciações de gênero.
Por sua vez, a real compreensão das dimensões formais e materiais da igualdade demanda maior atenção. Existe uma máxima acerca do princípio da igualdade que é frequentemente repetida, inclusive no âmbito do Supremo Tribunal Federal: tratar de forma igual os iguais e de forma desigual os desiguais, na medida da sua desigualdade[2].
Essa máxima expressa de forma simples e direta o conceito da igualdade formal: ela impede que a lei crie diferenciações ilegítimas, tratando de forma desigual aqueles que estão em situação de igualdade. É exatamente disso que trata o citado art. 461 da CLT, que oferta alguns parâmetros para determinar causas legítimas de diferenças salariais, incluindo tempo de serviço, tempo na função, e diferenças de produtividade entre trabalhadores que exercem idêntica função.
Portanto, a afirmação de que “diferenças salariais legítimas” atenderiam a uma dimensão da igualdade material nos parece um equívoco conceitual. Diferenças salariais legítimas expressariam, em tese, diferenças reais no trabalho prestado, que justificariam o tratamento desigual. Elas atenderiam, quando muito, ao conceito formal de igualdade; e a sua desconsideração, igualmente, violaria apenas a igualdade formal.
Por outro lado, existem ao menos três ordens de razões pelas quais tais diferenças salariais, ainda que legítimas sob uma perspectiva de igualdade formal, não atendem aos critérios da igualdade material de gênero.
Tais razões incluem, em primeiro lugar, desafios de ingresso em determinados cargos e funções enfrentados pelas mulheres; em segundo lugar, desafios de ascensão nas respectivas carreiras; e em terceiro lugar, desafios gerados pela sobrecarga da dupla jornada enfrentada pelas mulheres. Essa tríplice de obstáculos é apontada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) como responsável pela verificável diferença salarial existente entre homens e mulheres trabalhadores[3].
Segundo a Cepal, as mulheres ganham, em média, menos do que os homens pelas seguintes razões: (i) são super-representadas em posições com menor remuneração; (ii) são sub-representadas em posições de alto nível hierárquico e com maior remuneração; (iii) trabalham, em média, menos horas do que os homens no exercício das mesmas funções; e (iv) recebem salários mais baixos pelo exercício de funções de igual valor às exercidas pelos homens.
As razões descritas são o resultado dos fenômenos de segregação vertical e horizontal. Em voto proferido no RE 886131, o ministro Luís Roberto Barroso esclareceu como ocorrem esses fenômenos no âmbito do serviço público, aduzindo que “em primeiro lugar, há um problema de acesso das mulheres ao trabalho na Administração Pública, especialmente nos postos de maior valorização e remuneração. A esse fenômeno, dá-se o nome de segregação horizontal. (…) Assim, ao se atribuir menor valor às competências femininas, as mulheres são excluídas das decisões organizacionais, das posições de liderança e dos cargos mais bem remunerados. Trata-se, nesse ponto, de uma segregação vertical” [4].
De forma mais detalhada, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero lançado pelo CNJ explica a segregação horizontal e vertical sob a perspectiva dos fenômenos do teto de vidro e do piso pegajoso. A professora Brena Paula Magno Fernandez esclarece que os conceitos de teto de vidro e piso pegajoso “são duas metáforas canônicas usadas pela economia feminista para explicar típicas situações de desigualdade a que estão submetidas as mulheres no âmbito laboral em todo o mundo”[5].
O teto de vidro é descrito por ela como “barreiras invisíveis que impedem as mulheres de ascender aos níveis hierárquicos mais elevados”, enquanto o piso pegajoso é a dificuldade que as mulheres concentradas em setores e empregos menos valorizados economicamente encontram para alterar a sua situação[6].
Segundo o Cepal, o fenômeno do teto de vidro é causado por estereótipos e preconceitos que resultam em culturas empresariais hostis e excluem taticamente as mulheres das redes de comunicação informais[7]. Os economistas mexicanos Ochoa Adame e Torres García esclarecem que essa classe de obstáculo impede que as mulheres ascendam a posições de poder em seus locais de trabalho, embora tenham os estudos e as experiências necessários para tanto[8]. Fernandez acrescenta que o teto de vidro está associado à falta de oportunidade para que as mulheres ganhem experiência em funções gerenciais[9].
Receba gratuitamente no seu email as principais notícias sobre o Direito do Trabalho
Por sua vez, o fenômeno do piso pegajoso, segundo Ochoa Adame e Torres García, diz respeito às dificuldades que as mulheres têm de superar no início de sua carreira profissional, pois lhes são oferecidas, em geral, posições hierarquicamente mais baixas, e com menos responsabilidades, do que aquelas que são oferecidas aos homens com formação equivalente[10]. Fernandez observa que esse fenômeno concentra as mulheres em “empregos secundários, menos qualificados, pior pagos, concentrados nos setores produtivos mais atrasados e com especializações obsoletas” [11].
Há que se perceber, portanto, que dos quatro fatores citados pela Cepal para explicar as diferenças salariais entre homens e mulheres, a super-representação em posições com menores salários e a sub-representação em posições com maior valor hierárquico e maiores salários são as consequências da segregação horizontal e vertical, enquanto o número de horas trabalhadas na mesma função é causa parcial e relacionada ao fenômeno da sobrecarga pela dupla jornada feminina. O recebimento de salários mais baixos pelo exercício de funções de igual valor, que aparece como um complemento nesse cenário, é o único fator atendido pela regra estabelecida no art. 461 da CLT.
A existência de “diferenças salariais legítimas” para os trabalhadores que exerçam idêntica função é uma consequência da real dimensão da igualdade formal; por sua vez, o reconhecimento de que a desigualdade salarial não pode ser explicada, e nem será erradicada, pela mera observância da igualdade formal privilegia a sua dimensão material.
A Lei 14.611 é um passo na necessária direção de modernização na proteção das trabalhadoras no Brasil. Passado mais um 1º de maio, precisamos continuar refletindo sobre os caminhos a percorrer para atingir uma igualdade efetiva, que ainda elude as mulheres trabalhadoras.
[1] https://www.cartacapital.com.br/mundo/a-explicacao-do-novo-papa-sobre-a-escolha-do-nome-leao-xiv/
[2] Por todos, cita-se recentíssimo precedente em que se analisou a constitucionalidade do estabelecimento de mesma idade de aposentadoria para homens e mulheres policiais: ADI 7727 MC-Ref, Relator(a): FLÁVIO DINO, Tribunal Pleno, julgado em 25-04-2025, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 06-05-2025 PUBLIC 07-05-2025.
[3] CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe), 40 años de agenda regional de género, em cepal.org, 2017. Disponível em: «https://www.cepal.org/sites/ default/files/events/files/40_anos_de_agenda_regional_de_genero.pdf».
[4] RE 886131, Relator(a): LUÍS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 30-11-2023, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-s/n DIVULG 15-03-2024 PUBLIC 18-03-2024.
[5] FERNANDEZ, Brena Paula Magno. Teto de vidro, piso pegajoso e desigualdade de gênero no mercado de trabalho brasileiro à luz da economia feminista: por que as iniquidades persistem? Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, n. 26, p. 79-103, jan./jun. 2019.
[6] FERNANDEZ, Brena Paula Magno. Teto de vidro, piso pegajoso e desigualdade de gênero no mercado de trabalho brasileiro à luz da economia feminista: por que as iniquidades persistem? Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, n. 26, p. 79-103, jan./jun. 2019, p. 87-88.
[7] CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe), 40 años de agenda regional de género, em cepal.org, 2017. Disponível em: «https://www.cepal.org/sites/ default/files/events/files/40_anos_de_agenda_regional_de_genero.pdf».
[8] Torres García, A. J., & Ochoa Adame, G. L. (2018). Wage inequality associated with the use of ICT in Mexico: An analysis by occupation. Cuadernos de Economía, 37(74), 353-390.
[9] FERNANDEZ, Brena Paula Magno. Teto de vidro, piso pegajoso e desigualdade de gênero no mercado de trabalho brasileiro à luz da economia feminista: por que as iniquidades persistem? Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, n. 26, p. 79-103, jan./jun. 2019, p. 89.
[10] Torres García, A. J., & Ochoa Adame, G. L. (2018). Wage inequality associated with the use of ICT in Mexico: An analysis by occupation. Cuadernos de Economía, 37(74), 353-390.
[11] FERNANDEZ, Brena Paula Magno. Teto de vidro, piso pegajoso e desigualdade de gênero no mercado de trabalho brasileiro à luz da economia feminista: por que as iniquidades persistem? Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, n. 26, p. 79-103, jan./jun. 2019, p. 90.