Durante décadas, a incompatibilidade do rito de instância única administrativa na discussão da aplicação da pena de perdimento foi objeto de incansáveis pleitos dos importadores, controvérsias judiciais e ricas discussões entre os operadores do comércio exterior.
A questão parecia caminhar para uma solução quando, enfim, foi publicada, em 23 de agosto, a Lei 14.651/2023 que introduziu o art. 27-D ao Decreto-Lei 1.455/76, para prever que, em face da decisão que confirma a aplicação da pena de perdimento, passa a ser cabível a interposição de recurso à segunda instância administrativa.
Essa inovação legal buscou, ao menos em tese, atender às disposições do Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC) e da Convenção de Quioto Revisada (CQR), tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, e que determinam que os Estados e as organizações internacionais devem assegurar aos administrados o direito ao duplo grau de jurisdição em face da aplicação da pena de perdimento e que o recurso seja apreciado por órgão superior e independente da administração aduaneira.
No entanto, a regulamentação do rito administrativo e a criação do órgão responsável pelo julgamento do recurso, delegadas ao Ministério da Fazenda, subverteram toda a expectativa criada.
A Portaria 1.005/2023, publicada em 28 de agosto de 2023, criou, dentro da própria estrutura da Receita Federal, o Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (CEJUL), e estabeleceu que a competência para julgar as impugnações e os recursos dos contribuintes autuados seria dos Auditores Fiscais que comporiam esse órgão.
O julgamento em primeira instância será realizado, de forma monocrática, por Auditor Fiscal da Receita Federal integrante da Equipe Nacional de Julgamento (ENAJ), que compõe o CEJUL.
Em caso de improcedência da impugnação, a autoridade administrativa poderá, desde já, determinar a destinação da mercadoria ou do veículo, na forma do art. 29 do Decreto-Lei nº 1.455/1976, mesmo que o interessado recorra à segunda instância do CEJUL, pois, ao contrário do que dispõe o Decreto n° 70.235/1975, a Portaria não prevê que o recurso interposto terá efeito suspensivo.
O julgamento em segunda instância será realizado por uma das Câmaras Recursais do CEJUL, mediante decisão colegiada de Auditores Fiscais. As decisões dessas Câmaras são definitivas, não sendo cabível nenhum outro recurso.
É evidente que a adequação da legislação brasileira à Convenção de Quioto Revisada não garantiu o critério de independência exigido em sua Clausula 10.5[1]. Na prática, o recurso da parte será apreciado pelos pares daquele que, inicialmente, fiscalizou a operação de importação e aplicou a pena de perdimento, deixando de ser assegurada a independência exigida. Não há, na regulamentação do duplo grau de jurisdição, sequer uma tentativa de se aparentar independência.
Ainda que o Acordo de Facilitação do Comércio (AFC) preveja que o recurso administrativo assegurado ao contribuinte/importador seja destinado “a uma autoridade administrativa superior ou independente da autoridade ou repartição que tenha emitido a decisão”, abrindo margem à interpretação que a criação de uma instância superior seria suficiente, a Convenção de Quioto Revisada (CQR) é taxativa quando prevê a necessidade deste órgão recursal ser “independente da administração aduaneira”. Desta forma, não há como o Brasil escolher cumprir apenas parcialmente os tratados dos quais é signatário (no caso, cumprir o AFC e claramente descumprir o que determina a CQR).
Na verdade, se o propósito era cumprir o que dispõe os tratados internacionais assinados pelo Brasil, não se justificava a criação de outro órgão para julgamento de matéria aduaneira, quando já se tem o Carf que possui competência e estrutura normativa para julgar a matéria.
A efetivação das disposições da Convenção de Quioto Revisada vem resolver uma situação teratológica existente no sistema processual tributário brasileiro, no qual o administrado tinha acesso ao Carf para recorrer de decisões proferidas em julgamentos de impugnações de autuações aduaneiras, inclusive a multa substitutiva da pena de perdimento, mas não da sanção mais gravosa que representa a expropriação do seu patrimônio.
Ou seja, a mais grave penalidade aduaneira era a única que não era objeto de análise do mais qualificado e estruturado órgão de julgamento administrativo tributário-aduaneiro, no qual contribuintes e autoridades tributárias-aduaneiras – no caso da União Federal, representada pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) – podem discutir, de forma ampla e pública, os processos administrativos tributários e aduaneiros federais.
A estrutura e a normatividade – no caso o Carf, o Decreto 70.235/76 e o Regimento Interno do Carf – já existem e são suficientes para garantir um processo administrativo público, especializado e compatível com o devido processo legal, apto a julgar o tema da pena de perdimento da forma como a sua gravidade demanda.
Embora a criação do CEJUL seja recente e o órgão sequer tenha sido ainda estruturado, já chegou ao Judiciário a discussão sobre o atendimento à exigência da sua independência e, via de consequência, a legalidade da sua criação.
No último dia 7 de novembro, o Tribunal Regional Federal da 6ª Região, por meio de decisão monocrática proferida pelo desembargador federal Ricardo Machado Rabelo[2], assegurou a pretensão de julgamento do recurso por órgão administrativo existente e que atende às exigências legais, no caso o Carf, reconhecendo que “as Portarias 1.005/2023 e 384/2023, ao criarem o CEJUL, órgão da própria Receita Federal do Brasil, composto somente por Auditores Fiscais (cuja função primordial é de fiscalização tributária e aplicação de penalidades), deixaram de observar o requisito da independência em relação à administração aduaneira, conforme exigido pela legislação que lhe dá sustentação”.
Na mesma linha, liminar concedida[3], no dia 9 de novembro, pelo juiz federal Fabiano Verli da 5ª Vara Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais que reconheceu que “a redação dos acordos internacionais internalizados não deixa dúvida sobre a qualificação especial do órgão de revisão de decisões administrativas. Ele tem que ser isento na medida do possível, acima do dia a dia da linha de frente da fiscalização. E isso, claro, parte, em primeiro lugar, de sua composição, que, claro não pode ser um mero espelhamento da instância inferior, a qual é, na verdade, alguém não muito diferente do aplicador da sanção”.
Cabe aos contribuintes, portanto, buscar junto ao Poder Judiciário o seu direito de não terem o seu recurso julgado pelo CEJUL, que não atende ao critério de independência exigido pela Convenção de Quioto Revisada, mas pelo Carf, órgão paritário que possui estrutura e normatividade – Decreto 70.235/72 e Regimento Interno – especializadas e compatíveis com a temática da pena de perdimento, da forma como a sua gravidade demanda.
Por outro lado, espera-se que o Ministério da Fazenda reconheça o equívoco na criação do CEJUL e altere para o Carf a competência para o julgamento dos recursos interpostos em face das decisões que confirmem a pena de perdimento, com a celeridade necessária. Inclusive, seria pertinente a criação de uma Seção ou, ao menos, de Câmaras especializadas no julgamento das matérias aduaneiras, tendo em vista a importância e especialidade da temática. Ou, no mínimo, o aperfeiçoamento do recém-criado CEJUL, tornando-o paritário, e com uma estrutura condizente com a importância da sua competência.
[1] 10.5. Norma
Quando um recurso interposto perante as Administrações Aduaneiras seja indeferido, o requerente deverá ter um direito de recurso para uma autoridade independente da administração aduaneira.
[2] Agravo de Instrumento nº 1010435-07.2023.4.06.0000
[3] 1101286-41.2023.4.06.3800