A PEC das Drogas cria um ‘direito fundamental’?

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Este artigo pretende fazer breves comentários a respeito da impossibilidade de a PEC das Drogas constituir um direito fundamental e tampouco uma cláusula pétrea na Constituição da República.

Como amplamente divulgado, o Senado Federal entendeu por bem aprovar a PEC 45/23, popularmente conhecida como PEC das Drogas. A proposta visa inserir no corpo da Constituição, especificamente no art. 5º, um mandado de criminalização da “posse e [d]o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” que ocuparia o inciso LXXX do dispositivo mencionado.

A justificativa para tal desiderato estaria no direito à saúde. Especificamente, a exposição de motivo da PEC aduz que “a prevenção e o combate ao abuso de drogas é uma política pública essencial para a preservação da saúde dos brasileiros”. 

Ao fim e ao cabo, a PEC ainda faz alusão ao Recurso Extraordinário 635.659/SP e ao Tema 506, especialmente por conta do risco de que o Supremo Tribunal Federal (STF) considere inconstitucional a punição por porte de maconha até sessenta gramas

Pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), o senador Efraim Filho (União-PB) adotou parecer favorável à proposta de emenda. Passada então à deliberação, a PEC 45/23 foi aprovada em dois turnos com nove votos contrários.

Visões diferentes sobre um tema tão complexo são possíveis e não há motivos para uma dicotomia entre bem e mal, progressista ou reacionário, defensor do vício ou da virtude (saúde), o que deve ser feito é uma análise séria, imparcial e livre de preconceitos de qualquer tipo.

Cumpre notar que, à luz do art. 2º, da Constituição, as funções do Estado são independentes e harmônicas, o que não significa, por óbvio, que sejam uníssonas ou que devam andar sempre com o mesmo entendimento sobre todas as matérias.

Todavia, preocupa-nos a inserção do mandado incriminador no art. 5º porque este pode ser um primeiro passo para o abismo da relativização das cláusulas pétreas ou de um incentivo para que a inserção de qualquer conteúdo dentro dos direitos individuais a fim de que se cristalize uma visão de tempo, mundo e costumes. 

Examinemos as hipóteses.

Caso o STF considere inconstitucional a sanção por conta da posse de até 60 gramas de maconha a despeito de eventual promulgação da PEC 45/23, teremos um cenário no qual os defensores de um novo mandado de criminalização terão argumentos para salientar que o Tribunal de Cúpula relativizou um dispositivo inserido no art. 5º da Constituição, o qual é a base (não única) dos direitos e garantias individuais.

Pior que isso, caso se entenda que a emenda é inconstitucional, haverá quem diga que o Guardião da Constituição teria mais poderes que o próprio constituinte derivado, pois poderia “abolir” direitos e garantias individuais.

Ao lado disso, caso o Pretório Excelso entenda que o mandado de criminalização é constitucional e que qualquer posse ou porte de qualquer droga seja objeto de punição estatal por se tratar de um direito individual, estará aberta a porta para que qualquer conteúdo seja inserido no art. 5º da Constituição visando torná-lo intangível à função jurisdicional.

Pior que isto, uma dada visão de mundo restaria cristalizada no ordenamento jurídico, sendo que o lícito e o ilícito sofrem, várias e várias vezes, mudanças ao longo do tempo.

Ambas as hipóteses são extremamente prejudiciais ao Estado democrático de Direito, visto que podem levar à relativização do que se deve ou não compreender como cláusula pétrea ou ainda será uma porta para novos incisos de conveniência do constituinte derivado.

De nossa parte, não cremos que a emenda constitua um direito individual, uma garantia e muito menos um direito fundamental. 

Sabe-se que o Constituinte Originário foi expresso nos mandados de criminalização, tais como a discriminação e o “abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente” (arts. 5º, XLI e 227, §4º, da Constituição Federal). Assim, comandos ao legislador para a elaboração de legislação criminal são plenamente admissíveis. 

Todavia, nos dispositivos acima mencionados, lida-se com valores fundamentais da República, o que não é o caso do consumo de entorpecentes, nem mesmo em uma Constituição analítica como a brasileira. 

A emenda também é problemática porque não tem um indivíduo a quem conferir o direito e/ou a garantia, pois, no caso de discriminação e de proteção dos menores, o direito individual à repressão de tais práticas é manifesto. O que não vem a ocorrer quando se utiliza expressões vagas como saúde.

Embora os vícios sejam efetivamente nocivos à saúde, não foi esta a intenção do Constituinte Originário ao dispor que o Estado deve visar a “redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (art. 196 da Constituição Federal). 

Veja-se, a temática do porte e da posse de drogas ilícitas é extremamente relevante, liga-se à saúde, mas não é algo que sequer empolgou o Constituinte Originário e que tampouco deveria incitar o constituinte derivado, cabendo ao legislador ordinário analisar qual a melhor política a ser adotada.

Também há o risco de que a medida seja inconstitucional à luz de princípios como a liberdade e o livre desenvolvimento da personalidade, não podendo o constituinte derivado ordenar a criminalização de uma dada conduta perpetuamente sem que se trate de um valor fundamental da República.

Assim, entendemos que não há como se considerar que a PEC 45/23, mesmo que inserida no bojo do art. 5º, corresponda a um direito ou garantia individual e, via de consequência, uma cláusula pétrea.

Por fim, não se pode olvidar que a hermenêutica e a teoria constitucional dão portas de saída para esta situação, tais como a interpretação conforme e a mutação constitucional. Contudo, recursos como estes não raras vezes são recebidos como “jeitinhos”, o que nunca é algo positivo.

Assim, embora tais válvulas de escape sejam possíveis, melhor seria que a PEC 45/23 aguardasse, silenciosamente, nos escaninhos do Congresso Nacional e fosse esquecida na noite dos tempos, tal qual tantas outras propostas.