A ‘pandemia’ das recuperações judiciais no agro e a insegurança do crédito rural

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Nos últimos anos, o setor agropecuário brasileiro, historicamente responsável por uma parcela considerável do PIB e pela segurança alimentar mundial, tem enfrentado uma crise silenciosa, mas de proporções alarmantes a explosão de pedidos de recuperação judicial [8], muitas das vezes de forma imprudente.

Se até o ano de 2021 esse instituto era visto como medida excepcional, restrita a empresas em crise de liquidez, a Lei 14.112/2020, ao reformar a Lei 11.101/2005, consolidou a interpretação de que a atividade rural merece idêntica proteção conferida às demais empresas, ampliando significativamente a base de beneficiários [2] e [7].

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Entretanto, o problema não reside no quantitativo dos pedidos, mas principalmente em sua qualidade e em seus reflexos sobre o acesso ao crédito para os pequenos e médios produtores rurais. Em grande parte, estimulados por escritórios de advocacia e consultorias, os produtores ingressam com pedidos de recuperação judicial não como último recurso, mas como estratégia de planejamento financeiro.

Os casos em que maquinário é renovado, estoques são ampliados e, logo em seguida, se busca a proteção judicial, têm sido cada vez mais relatados. Nessas situações, a recuperação judicial deixa de ser um instrumento de preservação da atividade econômica e passa a funcionar como escudo oportunista contra credores, impondo-lhes deságios forçados e alongamentos excessivos de prazo.

Esse uso indiscriminado gera uma consequência direta: a insegurança jurídica no crédito rural. Instituições financeiras, tradicionalmente responsáveis por irrigar a atividade agrícola com linhas de financiamento [1], começam a restringir a concessão de crédito ou a adotar critérios mais rigorosos diante do risco de que novos contratos sejam incluídos em recuperações judiciais.

A alienação fiduciária, que já vinha substituindo a hipoteca como garantia preferencial, revela-se insuficiente em muitos casos, pois embora preserve o banco em relação ao bem específico, não resolve a fragilidade geral do fluxo financeiro do produtor. A judicialização excessiva cria um ambiente de desconfiança que penaliza não apenas os maus pagadores, mas também os bons produtores, que dependem de crédito saudável para investir e expandir suas atividades.

O risco sistêmico é palpável: se a cada ciclo de endividamento houver uma onda de recuperações, os bancos tenderão a encarecer o crédito, reduzir prazos e impor condições cada vez mais onerosas. O impacto também é social, pois a retração do crédito reduz a capacidade produtiva, afeta empregos diretos e indiretos e enfraquece cadeias inteiras de fornecimento ligadas ao setor.

Do ponto de vista jurídico, a situação demanda equilíbrio. Não se pode negar a importância da recuperação judicial como instrumento legítimo de preservação da empresa e de sua função social. Sem ela, milhares de produtores poderiam simplesmente quebrar, arrastando consigo credores, fornecedores e comunidades inteiras dependentes de sua atividade. Contudo, é igualmente inegável que o uso abusivo do instituto corrói a credibilidade do sistema, deturpa sua finalidade e ameaça a perenidade do próprio agronegócio.

Diante da escala do problema, a resposta do Judiciário deve ser categórica: é imperativo que o sistema encontre mecanismos de filtragem robusta e punição exemplar para o abuso de direito, visando prioritariamente a segurança da cadeia de crédito. O credor, ao injetar recursos vitais na atividade, não pode ser o refém de uma interpretação maleável da lei.

A erosão da confiança se deve, em grande parte, à relativização das garantias. Se o sistema não for capaz de proteger o credor, não haverá crédito. Nesse sentido, é vital que a alienação fiduciária e o penhor cedular sejam tratados como garantias extraconcursais, mantendo-se intactas e blindadas dos efeitos suspensivos da recuperação judicial. A permissão para que o devedor utilize bens dados em garantia, sem a devida substituição ou o consentimento do credor, transforma o ativo do banco em capital de giro forçado para o devedor em crise, configurando um desvio da função protetiva da lei.

Um exemplo de atuação judicial ocorreu no caso da recuperação judicial da AgroGalaxy Participações S.A. [5]. Nele, o Judiciário adotou uma postura firme ao impedir cláusulas que buscavam estender os efeitos da recuperação a terceiros garantidores, conforme ao previsto no artigo 49, § 1º, da Lei 11.101/2005 e a Súmula 581 do STJ [3] e [4].

Essa decisão representa uma resposta positiva frente às tentativas de blindagem patrimonial indevida, embora ainda limitada diante da amplitude do problema. Afinal, quando o garantidor assume voluntariamente o risco em benefício do produtor, sua responsabilidade deve ser preservada.

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Diante desse cenário, a conclusão que se impõe é clara: a fragilização do sistema de garantias e o uso abusivo da recuperação judicial não apenas comprometem o futuro do agronegócio, mas também impõem uma penalidade injusta e insustentável ao credor e por consequência ao pequeno e médio produtor rural.

O dilema estrutural precisa ser resolvido pela priorização da segurança jurídica. De um lado, a recuperação judicial é um instrumento legítimo de manutenção da atividade produtiva; de outro, o imperativo de conter práticas abusivas que deturpam sua finalidade e fragilizam a confiança no crédito rural, uma vez que sem credibilidade, não há crédito e sem crédito, o agronegócio para [6].


[1] AEGRO. Crédito Rural: O Pilar Financeiro do agronegócio brasileiro. Disponível em: https://aegro.com.br/blog/credito-rural/.

[2] BEZERRA, Adriano Ribeiro Lyra. A recuperação judicial e o produtor rural. Revista Semestral de Direito Empresarial, [S. l.], v. 9, n. 16, p. 89–111, 2023. Disponível em: https://rsde.com.br/artigos/a-recuperacao-judicial-e-o-produtor-rural/.

[3] BRASIL. Lei no 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Legislação Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2004-2006/2005/Lei/l11101.htm

[4] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Súmula 581-STJ. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: https://buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/5440/sumula-581-stj

[5] ESTADÃO CONTEÚDO. AgroGalaxy: Justiça homologa plano de recuperação judicial após 8 meses de negociação. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/mercados/agrogalaxy-justica-homologa-plano-de-recuperacao-judicial-apos-8-meses-de-negociacao/.

[6] FREITAS, Márcio Lopes de. A importância do crédito rural para o agro. Disponível em: https://somoscooperativismo-ms.coop.br/noticias/a-importancia-do-credito-rural-para-o-agro-mi-7533.

[7] FURLAN, Alessandra Cristina. Os Desafios Da Recuperação Judicial Do Produtor Rural. Revista Semestral de Direito Empresarial, [S. l.], n. 34, p. 175–206, 2024. DOI: 10.12957/rsde.2024.84946. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/rsde/article/view/84946.

[8] MATOS, F. Agro: recuperações judiciais disparam e batem recorde no 2o trimestre. Disponível em: https://www.metropoles.com/negocios/agro-recuperacoes-judiciais-disparam-e-batem-recorde-no-2o-trimestre.‌