A oportunidade perdida da ANTT ao regulamentar os dispute boards

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No último 4 de abril, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) editou a Resolução 6.040/24, que regulamenta a utilização de comitês de prevenção e solução de disputas (dispute boards) nos contratos de concessão de sua competência.[1] A resolução foi bem recebida pela comunidade jurídica, principalmente por gerar mais segurança jurídica para o uso do instituto.

Os dispute boards, como o nome abrasileirado indica, são um meio extrajudicial de solução de conflitos (MESCs), com características próprias que o diferenciam dos MESCs comuns. Criado no contexto de contratos de grandes obras de infraestrutura, consistem em comitê formado por especialistas nas matérias técnicas do contrato, que podem acompanhá-lo desde a sua assinatura (comitês permanentes) ou reunir-se apenas para tratar de temas específicos (comitês ad hoc ou temporários).

Possui três características fundamentais e distintivas. A primeira: também podem ser um meio de autocomposição, atuando na prevenção, e não na resolução, de conflitos, convidando as partes a resolverem alguma controvérsia. A segunda: dependendo da cláusula que os constitui, podem emitir decisões vinculantes ou opiniões, que são válidas apenas caso não haja decisão por levar o conflito opinado a litígio (estatal ou arbitral). A terceira: possuem habilidade inquisitorial, podendo perguntar, convocar testemunhar e estar em contato com os fatos do conflito sem haver a intermediação de um advogado ou outro terceiro.

A Resolução 6.040 da ANTT acolheu todas essas características nos comitês de prevenção e resolução de disputa a serem adotados em seus contratos. Há previsão de possibilidade de comitês instituídos desde o início do contrato, permanentes, e de comitês instituídos a pedido das partes (Art. 26-A, § 1°, e Art. 26-C e inciso da resolução) e da possibilidade de os comitês serem instituídos para emitir decisões de natureza vinculante ou recomendatória (Art. 26-B e seus parágrafos, da resolução).

Uma cláusula, porém, revela uma oportunidade perdida da ANTT ao regulamentar o instrumento. O § 3° do art. 26-A da resolução, que trata de temas que não podem ser objeto de deliberação pelos comitês, traz em seu inciso I: “divergências que envolvam questões de cunho estritamente jurídico, a exemplo da matriz de riscos e do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, admitida a submissão de conflitos relativos aos aspectos factuais subjacentes a essas questões”.

Primeiro, há a grande dificuldade de definir o que é uma questão “de cunho estritamente jurídico”, algo já alertado por Igor Gimenes Alvarenga Domingues, no seu belo livro sobre dispute boards: não seria toda disputa advinda de um contrato algo estritamente jurídico?[2]. Segundo, há o desperdício de não incluir a discussão do equilíbrio econômico-financeiro do contrato no âmbito das decisões de dispute boards.

Não fica clara a razão da opção.[3] Primeiro, há permissão explícita do ordenamento jurídico, no artigo 151 e seu parágrafo único, da Lei 14.133/2021:

“Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem. Parágrafo único. Será aplicado o disposto no caput deste artigo às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações”.

A lei, inclusive, reconhece os dispute boards como um desses mecanismos, no seu artigo 154.

Há também permissão explícita para a adoção de MESCs nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário, na Lei 13.448/2018, em seu artigo 31: “As controvérsias surgidas em decorrência dos contratos nos setores de que trata esta Lei após decisão definitiva da autoridade competente, no que se refere aos direitos patrimoniais disponíveis, podem ser submetidas a arbitragem ou a outros mecanismos alternativos de solução de controvérsias”, com o § 4° do referido artigo explicitando, em seu inciso II, que questões relacionadas à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos estão dentro da expressão “direitos patrimoniais disponíveis”.

Segundo, há uma contradição de cláusulas dentro da própria resolução nesse aspecto. Os incisos III e IV, do Art. 26-A da resolução, bem como seu caput, estipulam que os comitês tratarão de temas “que envolvam direitos patrimoniais disponíveis”, em relação a “avaliação de ativos e cálculo de indenizações” (inciso III) e a “ocorrência de eventos que impactem o cumprimento das obrigações nos termos assumidos no contrato, incluído o cálculo dos impactos financeiros decorrentes desses eventos” (inciso IV). Pela leitura desses incisos e do caput, não faz sentido proibir que os comitês tratem do reequilíbrio do contrato.

Terceiro, é uma oportunidade perdida também por uma simples questão de economia processual. Já que haverá a estipulação de comitês de prevenção e resolução de conflitos, é uma pena não os utilizar para eventualmente prevenir o recurso ao litígio tradicional ou à arbitragem (tendo em vista que este MESC tem competência de tratar sobre o tema justamente por poder tratar de direitos patrimonialmente disponíveis da Administração Pública). A propósito, anote-se que o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão é o objeto da quase totalidade das arbitragens hoje existentes com as agências reguladoras federais.

Em resumo, portanto, é elogiável a iniciativa da ANTT de regulamentar o instituto dos dispute boards, trazendo mais segurança jurídica para o seu uso nos contratos de concessão regulados pela agência. Mas teria sido possível um passinho a mais que faria toda a diferença. Quem sabe ele não ficou para uma emenda futura?

[1] A Resolução foi resultado de longo processo regulatório, surgido a partir dos acórdãos do TCU de números 4036/2020 e 4037/2020 de 08 de dezembro de 2020. Na ocasião, o Tribunal de Contas realizava o acompanhamento da desestatização, a cargo da ANTT, da rodovia federal BR-153/TO/GO e das rodovias federais BR-163/MT/PA e BR-230/PA, respectivamente. Como as minutas dos contratos de concessão das rodovias disponíveis para consulta pública apresentavam a possibilidade da utilização de Dispute Board para a resolução de eventuais conflitos, o TCU determinou que esse instrumento só poderia ser utilizado pela ANTT após uma normativa própria que regulasse o instituto, visto a ausência de Lei Federal específica que o regulamente, como é o caso da arbitragem. Em reação às decisões do TCU, a Agência inseriu em 25 de novembro de 2022 a regulamentação dos Dispute Boards em sua agenda regulatória de 2023-2024, processo que gestou a resolução de abril deste ano.

[2] DOMINGUES, Comitês de Resolução de Disputas. Edição Kindle. São Paulo: Almedina, 2022.

[3] O relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR) SEI N° 21690419 sobre a regulamentação, apesar de citar a possibilidade legal da inclusão da discussão de reequilíbrio como de competência das deliberações dos comitês, apenas destaca que os membros do Grupo de Trabalho da ANTT composto para criar uma minuta da resolução decidiram pela vedação do tema nesse âmbito.