A nulidade de parte das cassações de autorizações de fretamento na ANTT

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Desde maio de 2022, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) vem aplicando penalidades de cassação a autorizatárias de fretamento por violação da regra do circuito fechado, prevista no caput do art. 36 do Decreto 2.521/1998.

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Este artigo volta-se ao exame da validade da aplicação dessa sanção em face da superveniência da edição da Lei 10.233/2001, que delimitou as hipóteses de aplicação da penalidade de declaração de inidoneidade e determinou a ocorrência de infração grave como pressuposto jurídico da penalidade de cassação.

Ao teor do art. 78-H da Lei 10.233/2001 e à luz das normas da Agência, ocorrida infração grave, a ANTT poderá cassar a autorização, mediante apuração em processo administrativo ordinário. Inexiste, pois, possibilidade de aplicação da penalidade de cassação sem caracterização da gravidade da infração.

Nada obstaria, contudo, que a Agência definisse em seu arcabouço regulatório determinadas condutas que, se praticadas, caracterizariam uma infração grave, sujeitando o infrator, mediante o devido processo legal, à penalidade de cassação e suas consequências normativas.

Apresentado o tema, em pesquisa no repositório de atos da ANTT (ANTTlegis), foi possível identificar a edição de 19 deliberações em que houve a aplicação da penalidade de cassação de autorizações de fretamento.

Ressalvados os casos em que os efeitos dos atos estão suspensos por decisão judicial, em somente três processos a Agência não se desincumbiu do dever de caracterizar a gravidade da infração, justificando a aplicação da penalidade de cassação nos moldes requeridos pelo art. 78-H da Lei 10.233/2001.

Nos demais atos vigentes – 82% dos casos –, a cassação foi fundamentada na previsão do § 5º do art. 36 do Decreto 2.521/1998, com a seguinte redação:

A empresa transportadora que se utilizar do termo de autorização para fretamento contínuo, fretamento eventual ou turístico para a prática de qualquer outra modalidade de transporte diversa da que lhe foi autorizada, será declarada inidônea e terá seu registro cadastral cassado imediatamente, sem prejuízo da responsabilidade civil e das demais penalidades previstas neste Decreto. [destaques acrescidos]

Tem-se aqui um enunciado normativo com duas normas jurídicas, em que o consequente jurídico da primeira assume a função de antecedente jurídico da segunda.

A primeira norma diz que a utilização do termo de autorização para prática de modalidade de transporte diversa da que lhe foi autorizada terá como consequência a declaração de inidoneidade da empresa infratora.

A segunda norma, por sua vez, determina que uma vez declarada a inidoneidade da empresa que utilizou o termo de autorização para finalidade diversa do objeto autorizado, essa “terá seu registro cadastral cassado imediatamente”.

Nesse caso, a cassação do registro cadastral da empresa não se constitui em uma penalidade, mas em extinção da relação jurídica entre o Poder Público e o particular, em decorrência da aplicação da sanção anterior de declaração de inidoneidade.

Logo, a cassação do registro cadastral de uma empresa requer, obrigatoriamente, a prévia declaração de inidoneidade dessa, do contrário, a segunda norma não produziria efeitos no mundo jurídico, em razão da inexistência de seu pressuposto jurídico.

Na medida em que a Lei 10.233/2001, norma de hierarquia superior ao Decreto 2.521/1998, delimitou as hipóteses de declaração de inidoneidade aos casos de prática de atos ilícitos visando a frustrar os objetivos de licitação ou a execução de contrato, esta deixou de ser aplicável aos termos de autorização de fretamento e de serviços regulares, nos quais não há licitação, nem contrato.

Trata-se de entendimento pacífico no âmbito da Agência, lastreado em manifestações da Procuradoria Federal junto à ANTT e em diversas decisões precedentes da diretoria colegiada da autoridade reguladora.

Inválida a primeira norma sob análise, em razão da impossibilidade de aplicação da pena de declaração de inidoneidade, carece de fundamento legal cassar o registro das empresas transportadoras, como se a segunda norma tivesse natureza de penalidade.

Ocorre que é justamente isso que a ANTT vem fazendo em mais de 80% das cassações de autorizações de fretamento, sob o argumento – equivocado – de que a utilização do termo de autorização para modalidade de transporte diversa implicaria na cassação imediata do registro cadastral da empresa.

Segundo a unidade técnica instrutora dos processos administrativos ordinários, a gravidade da infração estaria abstratamente caracterizada no § 5º do art. 36 do Decreto 2.521/1998, o que hipoteticamente possibilitaria a cassação do registro da empresa, independentemente da impossibilidade de aplicação da pena de declaração de inidoneidade.

Com todas as vênias, trata-se de entendimento carente de racional jurídico, a partir de uma interpretação ampliativa em uma matéria sancionatória, dado que a cassação do registro cadastral da empresa e a penalidade de cassação têm naturezas jurídicas diversas.

Pode-se chegar a essa conclusão por distintos caminhos. Inicio pelo próprio Decreto 2.521/1998. É razoável entender que a cassação do registro cadastral em exame não é uma penalidade, constituindo-se de mera declaração de extinção do ato autorizativo, a ser processada concomitantemente – por isso a utilização do advérbio “imediatamente” – com a aplicação da penalidade de declaração de inidoneidade, ou seja, sem necessidade de processo específico e reabertura de contraditório e ampla defesa.

Norma semelhante é encontrada no parágrafo único do art. 86 do mesmo decreto, a determinar que a declaração de inidoneidade da transportadora (permissionária do serviço público de transporte rodoviário de passageiros) importará na caducidade da permissão.

A cassação do registro cadastral prevista § 5º do art. 36 tem a mesma natureza jurídica da caducidade da permissão de que trata o parágrafo único do art. 86, ambos dispositivos do Decreto 2.521/1998, e nenhuma delas constitui-se em penalidade.

Em reforço, a leitura da redação original do art. 79 do decreto previa como penalidades: a multa; a retenção do veículo; a apreensão do veículo; e a declaração de inidoneidade. Contrario sensu, cassação de registro cadastral e caducidade da permissão, igualmente presentes no texto original do decreto, não são penalidades.

Passando-se ao exame da Lei 10.233/2001, é seguro afirmar que a norma de cassação de registro cadastral do § 5º do art. 36 do Decreto 2.521/1998, caso fosse eficaz, teria a mesma natureza jurídica do art. 48 da Lei 10.233/2001, que prevê a extinção, mediante cassação, da autorização dos serviços regulares de transporte rodoviário interestadual de passageiros em razão da perda das condições indispensáveis ao cumprimento do objeto da autorização.

É incontroverso, no âmbito da ANTT, que a cassação da autorização por força do art. 48 Lei 10.233/2001 não se configura como penalidade, razão pela qual prescinde de processo administrativo ordinário e não enseja as consequências previstas no art. 78-J do diploma legal, no caso, vedação à participação em licitações ou ao recebimento de outorga de concessão, permissão e autorização.

Cediço que o serviço de fretamento é de natureza privada, condicionado à autorização da ANTT por força de lei e em aderência ao parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal, sobre ele incidem, com maior densidade normativa, princípios e direitos fundamentais, como a livre iniciativa e a liberdade de trabalho.

Ainda que princípios e direitos fundamentais não sejam absolutos, sendo possível sopesá-los em privilégio de outros direitos fundamentais, se requer maior ônus argumentativo do Estado para reduzir-lhes a incidência sobre os particulares.

Em decorrência, o legislador impôs à ANTT o dever de caracterizar a gravidade da infração como requisito material à aplicação da penalidade de cassação de uma autorização, em razão da intensidade dos efeitos dessa sanção sobre a esfera de direitos das pessoas que atuam no setor de transporte rodoviário de passageiros, sejam elas físicas ou jurídicas.

Na medida em que a autoridade reguladora vem recorrendo a uma norma inválida e a uma penalidade inexistente como elementos objetivos de caracterização da gravidade da infração, desincumbindo-se do ônus legal de comprovar a severidade da conduta imputada às empresas supostamente infratoras, entende-se que as cassações maculadas por esses vícios se revestem de nulidade.

Registre-se que inexiste óbice à aplicação da penalidade de cassação às autorizações de fretamento, desde que cumpridos os requisitos processuais e materiais previstos na legislação e nos regulamentos da Agência, posto que essenciais à preservação da esfera de direitos dos agentes regulados.

A menção genérica e abstrata ao § 5º do art. 36 do Decreto 2.521/1998, a partir de uma interpretação extensiva em sede de direito sancionador, não se constitui em fundamento válido para aplicação da pena de cassação às empresas de fretamento.

Insistir nisso distancia a regulação de sua verdadeira natureza.