A regulação da inteligência artificial, e, especificamente, a entidade que ficará à frente dessa regulação, foi tema de uma série de colunas do Reg.1. A proposição legislativa sob análise no Senado, contudo, pouco avançou em sua tramitação2. O cenário internacional da regulação da inteligência artificial, por sua vez, teve importante novidade na última segunda-feira, 30/10/2023, quando o Presidente dos Estados Unidos editou Ordem Executiva para regulamentar o desenvolvimento e o uso da inteligência artificial3.
A Ordem Executiva (“OE”) consolida os objetivos e princípios que devem reger a relação do governo dos EUA com a IA e trouxe um amplo rol de definições. A opção por dispor desses elementos no início do marco normativo é similar ao caminho adotado pela proposição em trâmite no nosso Senado, que prevê, em seus artigos 1° a 4°, um conjunto de objetivos, princípios e definições para orientar a aplicação da eventual futura lei.
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Os princípios reitores da OE vão desde previsões comuns, tais como a afirmação de que a IA deve ser segura e confiável e resolver os problemas econômicos e sociais existentes, passando pela reafirmação de que essas tecnologias devem promover a justiça social e a inclusão de minorias, até a declaração do objetivo dos EUA de liderarem o progresso global envolvendo o uso da IA.
Com base nesses elementos, a OE endereça inúmeras medidas dirigidas à Administração Pública dos EUA, determinando que, em certos prazos, sejam realizados levantamentos e obtidos dados que permitam ao Poder Público enfrentar os principais desafios levantados pelo uso da IA. A título de exemplo, é possível citar a Seção 4, cujo artigo 4.1 prevê um prazo de 270 dias para que a Secretary of Commerce, ao lado de outros órgãos da Administração, estabeleça os standards e as melhores práticas para o desenvolvimento confiável e seguro da indústria da IA.
Mas não apenas a atos futuros se volta a OE. Também foram estabelecidas obrigações que entrarão em vigor em noventa dias e criam exigências relevantes.
Veja-se, por exemplo, o artigo 4.2 da OE, estipulando que o Secretary of Commerce deverá exigir das empresas que estejam desenvolvendo tecnologias de IA mais avançadas e consideradas de maior risco que seja efetuado o compartilhamento, de forma contínua, de informações acerca do desenvolvimento e produção dessas tecnologias, bem como das ações adotadas para prevenir e mitigar essas ameaças.
O artigo 4.2 igualmente exige que as empresas que detenham grandes sistemas computacionais interligados trabalhando em conjunto, denominados clusters, reportem esses dados para o Secretary of Commerce. Assim, infere-se que o ato normativo visa permitir, ao lado do precitado diagnóstico e da preparação interna da Administração para lidar com o atual contexto, um controle mais apurado de tecnologias vistas como ameaçadoras à segurança nacional, econômica e social dos EUA.
Para além disso, destaca-se a preocupação com matérias ligadas à proteção do trabalho (Seção 6), à promoção dos direitos civis e da igualdade (Seção 7), seção dentro da qual são previstas ações a serem adotadas para evitar o mau uso da IA dentro do sistema de justiça criminal, à proteção dos consumidores e outros grupos vulneráveis (Seção 8) e à privacidade (Seção 9).
Outros três pontos da OE chamam atenção, especialmente por não serem objeto de tratamento mais aprofundado na proposição em trâmite no Senado Federal brasileiro. O primeiro é a ausência de previsão de políticas previstas para incentivar a formação de uma burocracia estatal que efetivamente compreenda e colabore no desenvolvimento da IA na Administração Pública, tal como se viu na OE americana.
A correlação entre burocracia e desenvolvimento, em especial no que diz respeito a um assunto tão inovador, não passou despercebida pela OE, que preceitua, em seu artigo 10.2, a intenção dos EUA em incrementar a quantidade de profissionais qualificados para atuar em matérias relacionadas com IA na Administração, exigindo a adoção de providências para possibilitar às agências governamentais contratarem, reterem e capacitarem talentos. Tal previsão espelha um ponto já defendido em coluna anterior do Reg.4: a existência de um corpo técnico qualificado não significa inflar a máquina pública ou desperdiçar recursos públicos, colocando-se, ao revés, como pré-condição para que o Estado consiga cumprir as funções a ele direcionadas pelo arcabouço jurídico regulatório.
A adoção de ações nesse sentido no Brasil poderia colaborar para a superação do segundo ponto de atenção a ser destacado, também ligado com o tema dos recursos humanos. A OE, na sua Seção 5, destinada à promoção da inovação, determina que seja facilitada a concessão de vistos para estrangeiros que desejem ir aos EUA para estudar ou trabalhar com IA. Se atrair talentos estrangeiros é um sonho distante para o Brasil, evitar a “fuga de cérebros” pelos quais o Brasil vem passando5 pode – e deve – ser alvo de medidas mais consistentes no campo administrativo e legislativo, desafio que pode ser mitigado pelo aumento de vagas na Administração Pública acompanhada da criação de um ecossistema mais amigável aos negócios privados.
O terceiro ponto de atenção que pode servir de inspiração na discussão legislativa nacional é a preocupação da OE com as matérias envolvendo a segurança, seja ela a segurança nacional em sentido estrito ou outras acepções da palavra, tais quais a segurança biológica, social e econômica. A OE, embora não tenha uma seção dedicada ao tema, endereça essa preocupação ao longo de todas as suas disposições.
O risco da utilização nociva de tecnologias de IA para a coleta e extravio de informações relevantes por países, empresas ou organizações estrangeiras, sejam agentes que atuem de forma lícita (por exemplo, governos estrangeiros) ou de forma ilícita (como organizações criminosas), é uma questão que deve ser alvo de maior cuidado também em nosso país.
Longe de pretender esgotar o tema, buscou-se nessas linhas expor os pontos que chamaram maior atenção na recente Ordem Executiva. A expedição da OE ato nos EUA reavive e reforça a necessidade de que o Congresso e a Administração Pública federal voltam a debater a atualização da política brasileira de IA.
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1 Disponíveis em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/reg/a-autoridade-competente-do-marco-legal-da-inteligencia-artificial-parte-1-22032023, https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/reg/a-autoridade-competente-do-marco-legal-da-inteligencia-artificial-parte-2-12042023 e https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/reg/inteligencia-artificial-ia-em-contratacoes-publicas-26042023. Acesso em 07/11/2023.
2 O Substitutivo aos Projetos de Leis n°s 5.051, de 2019; 21, de 2020; 872, de 2021 foi apresentado em dezembro de 2022. Posteriormente à última coluna que tratou sobre o tema, houve a reunião para tramitação em conjunto com os PLs n°s 2.338 e 3.592, ambos de 2023 e a proposição foi remetida para exame da Comissão Temporária sobre Inteligência Artificial no Brasil em 17/08/2023, sob a relatoria do Senador Eduardo Gomes. O último andamento ocorreu em 04/10/2023, com a aprovação da realização de audiência públicas. Para ver a integra: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-5051-2019. Acesso em 03/11/2023.
3 A íntegra da Executive Order está disponível em: https://www.whitehouse.gov/briefing-room/presidential-actions/2023/10/30/executive-order-on-the-safe-secure-and-trustworthy-development-and-use-of-artificial-intelligence/.
4 PEREIRA, Anna Carolina Migueis. Burocracia e qualidade regulatória. Jota. 13/09/2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/reg/burocracia-e-qualidade-regulatoria-13092023. Acesso em 07/11/2023.
5 VILICI, Filipe. Fuga de cérebros: Brasil está perdendo talentos em inteligência artificial para exterior, diz ranking. BBC News Brasil. 25/10/2023.