A necessidade de atualizar o Direito Empresarial em prol da segurança jurídica

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Como amplamente noticiado, o presidente do Senado Federal, Senador Rodrigo Pacheco, instituiu Comissão para Atualização do Código Civil, cabendo a função de presidi-la ao ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça. Integram a Comissão quase quarenta juristas de todas as regiões do país, com as mais variadas formações acadêmicas e práticas profissionais, sendo a vice-presidência ocupada pelo ministro Marco Aurélio Bellizze e as relatorias-gerais pelos professores Rosa Maria de Andrade Nery e Flavio Tartuce, além de contar com outros quatro magistrados integrantes do Superior Tribunal de Justiça.

De modo a otimizar os trabalhos, na primeira fase, a Comissão foi dividida em subcomissões às quais coube elaborar proposta de atualização de cada Livro do Código Civil, além de uma subcomissão especializada em direito digital. No âmbito do Direito de Empresa, os trabalhos couberam aos eminentes professores Moacyr Lobato (MG), Daniel Carnio (SP), Marcus Vinicius Furtado Coelho (PI) e ao autor destas linhas. Uma subcomissão plural, com advogados especializados, magistrados de primeira e segunda instâncias com competências focadas em matéria empresarial – todos docentes em reputadas Faculdades e comandados pela professora Paula Forgioni, que honra as melhores tradições da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), ocupando a sua cátedra de Direito Comercial.

A subcomissão entregou à Presidência da Comissão e ao Senado Federal a sua primeira proposta de atualização do Código Civil na parte de Direito Empresarial. Seguindo a orientação da Presidência, a Comissão como um todo e as subcomissões em particular deveriam focar os esforços de atualização do Código Civil na incorporação da jurisprudência consolidada pelos tribunais e avançar, com escopo de propiciar o mais elevado grau de segurança jurídica nas relações reguladas pelo Código, além da evidente atualização dos institutos à luz das mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas – muitas delas verdadeiramente disruptivas – que seria o aggiornamento propriamente dito da base da nossa legislação civil.

Parece haver consenso em que o Código Civil em vigor, malgrado tenha vigência de apenas 20 anos, foi pensado e conformado muito antes, nas décadas de 1960 e 1970, sendo submetido a um longo processo legislativo. Alguns dos seus conceitos são inspirados em normas europeias anteriores, eventualmente datadas da década de 1940. Hoje atravessamos o que a sociologia vem chamando de Era da Aceleração, restando notória a desatualização do Código Civil em relação às demandas e mesmo às práticas sociais brasileiras nesta década de 2020, o que tem levado os tribunais a um esforço constante de adaptação por via hermenêutica das normas do Código. O próprio Supremo Tribunal Federal já foi chamado a efetuar leitura constitucional do Código Civil e promoveu atualizações em matérias sensíveis. Com o auxílio da jurisprudência formada nos tribunais locais e através da criação de precedentes – formalmente vinculantes ou não –, o Superior Tribunal de Justiça vem diuturnamente atualizando as disposições do Código Civil. Todavia, parece mister sistematizar as alterações já implementadas e promover a atualização dos nossos institutos civis aos novos tempos.

Nessa tarefa, tem lugar de destaque a atualização do Livro de Direito de Empresa. Não é ocioso lembrar que mais de 95% das empresas brasileiras em funcionamento regular ocupam formas societárias reguladas pelo Código Civil. Tais empresas promovem a maioria absoluta dos empregos formais brasileiros e a maior parte dos recolhimentos dos tributos relacionados à circulação e ao consumo de bens e serviços e à seguridade social. Sem embargo da relevância econômica das sociedades anônimas para determinados investimentos e para o mercado de capitais em geral, no Brasil, o empreendedorismo é exercido através de outras formas societárias mais simples.

De um tempo a esta parte – a lei de liberdade econômica é um exemplo notável – tem-se procurado restaurar no ambiente empresarial e dos negócios a força vinculante dos contratos, de modo que as partes, os sócios e contratantes em geral, possam ter previsibilidade quanto às relações jurídicas entabuladas. Se a segurança jurídica pode ser compreendida de modo simplório através de vetores correlatos, tais como cognoscibilidade, estabilidade, confiabilidade e calculabilidade ou previsibilidade, é imperativo que, salvo hipótese de violação manifesta de normas legais de ordem pública, as avenças sejam cumpridas e a elas seja dada força executiva pelos órgãos públicos e especialmente pelo Poder Judiciário, sendo excepcional o revisionismo. Como se diz no mercado, o melhor indício da boa fé dos contratantes é dar cumprimento aos contratos celebrados.

A proposta de atualização do Livro de Direito de Empresa procura revigorar a força dos contratos – inclusive e especialmente dos contratos sociais – e simplificar a prática de atos societários em geral, resolvendo questões que afligem os operadores do Direito e muito sensivelmente os empresários. Demais disso, procura-se reafirmar a autonomia patrimonial das sociedades e a limitação da responsabilidade patrimonial dos sócios. Na verdade, sugere-se a adoção ou explicitação de uma principiologia específica para o direito da empresa, com escopo de estimular o empreendedorismo:

Art. 966-A. As disposições deste Livro devem ser interpretadas e aplicadas visando o estímulo ao empreendedorismo e ao incremento de ambiente favorável ao desenvolvimento dos negócios no país, sendo observados os seguintes princípios:

I – Liberdade de Iniciativa;

II – Liberdade de Organização da Atividade Empresarial, ainda que sob formas não expressamente designadas como empresariais pela legislação;

III – Autonomia Privada;

IV – Autonomia Patrimonial, nos termos do parágrafo único do Art. 49-A deste Código;

V – Limitação da Responsabilidade dos Sócios, ressalvadas as hipóteses em que o sócio assumir expressa e voluntariamente a responsabilidade ilimitada, devendo ser consideradas excepcionais e restritivas as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica previstas na legislação;

VI – Primazia da Força Vinculante das Normas Contratuais (Pacta Sunt Servanda), que somente poderão ser afastadas na hipótese de violação manifesta de normas legais de ordem pública;

VII – Majoritário, no âmbito das deliberações societárias;

VIII – Preservação da Empresa, nos termos do Art. 47 da Lei 11.101/2.005;

IX – Função Social da Empresa.

X – Liberdade, Simplicidade e Instrumentalidade das Formas;

Há diversas providências específicas de igual relevo: são excluídos alguns tipos societários que a prática empresarial condenou ao desuso por serem ineficientes; são incorporados expressamente os meios eletrônicos para as comunicações societárias e simplificadas as formalidades exigidas para a respectiva prática; revoga-se a superada restrição ao estabelecimento de sociedades entre cônjuges, independentemente do regime de bens adotado; legisla-se sobre acordos de cotistas e sobre a possibilidade de criação de cotas preferenciais nas sociedades limitadas, demandas antigas do mercado especializado, dentre outras.

Merece especial destaque a adoção de um sistema de prevalência do contrato no ambiente das dissoluções de sociedades, as quais sugerem diversos temas nos quais a jurisprudência dos tribunais locais oscilara muito ao longo dos últimos vinte anos, trazendo imensa sensação de insegurança para o ambiente negocial. Diante da oscilação da jurisprudência dos tribunais locais, muitas vezes errática, a doutrina também é extremamente dispersa quanto às soluções. O Código de Processo Civil de 2015 parece ter intensificado o problema ao ampliar os poderes do juiz para interferir nos métodos e parâmetros de avaliação dos haveres. Como dizem os próprios empresários, não se está diante da escolha entre sistemas certos ou errados em termos de apuração de haveres, mas sim da busca por previsibilidade, de modo que os empresários/sócios possam conformar os seus comportamentos com segurança, sendo certo que o sistema jurídico deve estimular a formação e manutenção de sociedades empresárias, respeitando as alocações de riscos estabelecidas nos contratos sociais e desestimulando as dissoluções. Em termos simples, sempre respeitando-se a autonomia privada, a liberdade de organização da atividade empresarial e o direito de alguém não se manter como sócio em uma determinada empresa, do ponto de vista dos interesses da comunidade, os estímulos jurídicos e econômicos devem ser dirigidos ao respeito às alocações de riscos contratadas e a promover a manutenção das sociedades ao invés de promover a sua dissolução, tarefa que usualmente consome relevantes custos de transação em ambientes de litígios.

A inovação da proposta vem com um capítulo específico acerca dos contratos empresariais – isto é, aqueles celebrados entre empresários. A Lei de Liberdade Econômica havia dado um passo importante no sentido de revigorar a força vinculante dos contratos no ambiente empresarial, no qual presume-se a celebração de contratos paritários e simétricos entre contratantes devidamente informados, sempre com respeito à boa fé e à função social do contrato. A proposta pretende avançar neste sentido, tendo como norte, ainda e sempre, a segurança jurídica e a força vinculante dos contratos, regulando temas importantes como as negociações pré-contratuais, as cláusulas penais nos contratos empresariais e o sigilo empresarial.

A proposta da subcomissão de Direito Empresarial será submetida à elevada apreciação dos demais integrantes da Comissão, que certamente trarão aportes valiosos, e posteriormente do Parlamento, a quem cabe, mercê da sua legitimidade democrática, em última análise, a atualização do nosso corpo legislativo. Como se usa dizer informalmente, o Código Civil é uma espécie de Estatuto da vida privada das pessoas, de máxima relevância para a estabilidade das relações pessoais e sociais. Espera-se que a Comissão e o Parlamento possam desenvolver seus trabalhos com prudência e sabedoria, atualizando e quiçá melhorando o sistema jurídico brasileiro.