A manifestação digital de vontade segundo a reforma do Código Civil

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No segundo artigo da série sobre a reforma do Código Civil, é hora de explorar a prova da manifestação de vontade em atos e contratos. Como não poderia deixar de ser, a proposta de modificação alberga a digitalização, na mesma linha do último artigo, em que se analisou os contratos digitais. São temas afins e intrínsecos, já que a vontade é elemento fulcral de todo e qualquer negócio jurídico desde que o mundo é mundo.

A firma deitada no documento é a prova mais contundente da anuência do emitente quanto às obrigações ali assumidas. A autenticidade da assinatura é presumida, mas até hoje cartórios executam serviços de reconhecimento de firma, em clara inversão da presunção de autenticidade. A novel legislação tem por objetivo incorporar ao Código Civil as previsões estabelecidas na Lei 14.063/2020, que, por sua vez, é sustentada pela Infraestrutura de Chaves Públicas (ICP-Brasil) disciplinada em 2001, pela Medida Provisória 2.200-2, com uma adição que merece debate: a necessidade de assinatura qualificada para criar, modificar ou extinguir posições jurídicas.

Antes de penetrar nesse aspecto, é condição necessária que se descreva as assinaturas digitais, que podem ser simples, avançadas e qualificadas, uma gradação determinada de acordo com a confiança que delas se manifesta. A simples e a avançada possuem, no texto projetado, a mesma redação do artigo 4º, I e II da Lei 14.063/2020: simples é a assinatura que permite identificar o signatário e que anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário, como seu CPF ou RG digitais; avançada é aquela reconhecida como autêntica entre as partes, associada de forma direta (unívoca) ao signatário, utilizando dados que permitam ao signatário, com elevado nível de confiança, operar a assinatura de maneira exclusiva (como associação com dados bancários), algo visto no sistema gov.br

Já a qualificada é aquela que conta com a guarida da ICP-Brasil, presumindo-se tais assinaturas verdadeiras com relação a seus signatários. O projeto de alteração no Código Civil estatui que esse tipo de assinatura comprova a autoria do documento, vinculando-o ao respectivo titular. 

É natural que o legislador permita que as assinaturas digitais confirmem maior ou menor grau de segurança quanto à sua autenticidade, sobretudo quando se está no âmbito da legislação civil, essencialmente privada. A inclusão da disciplina no Código Civil, em vez de na legislação extravagante, faz sentido à luz do aspecto pragmático da legislação codificada como repositório, um lugar em quem quer encontrar tudo a respeito da materialização de vontade, encontrará. 

O tema não passou imune à litigância nos tribunais. Debates de toda a espécie existem – i.e., assinatura digital fora do ICP-Brasil em título não conferia força executiva, validade da assinatura digital versus da realizada por próprio punho –, e há um consenso razoável no sentido de que a assinatura qualificada é a mais indicada para resguardar a vontade das partes.

Nesse sentido, a legislação civil projetada deixa isso ainda mais claro e agudo quando estabelece que a criação, modificação e extinção de posições jurídicas só produzirão efeitos diante de terceiros por meio da assinatura qualificada. Mas isso tem impactos quanto à formalidade dos pactos – que, geralmente, são marcados pela liberdade das formas.

Segundo André Luiz Freire, posições jurídicas dizem respeito à estrutura dos direitos subjetivos, poderes, deveres, ônus e sujeições de determinado ou determinados agentes. Na vida dos direitos, tais fatores são fundamentais: a um direito de alguém corresponde o dever de outrem; se alguém tem um poder, outrem deve se sujeitar a tal poder, algumas das relações jurídicas fundamentais de Hohfeld.

Apenas a lei e o contrato obrigam alguém a partir da constituição, modificação ou extinção de direitos, deveres, sujeições, privilégios, não-direitos, imunidades. É da essência das manifestações de vontade que elas criem (por exemplo, a doação), modifiquem (por exemplo, a novação) e extingam (por exemplo, a renúncia) direitos. É adequado se afirmar que pactos, em geral, se prestam precisamente àquilo cujo efeito a legislação projetada demanda exclusivamente a assinatura digital qualificada, que, na prática, representa um atesto de terceiro a respeito da validade daquela assinatura.

A assinatura de próprio punho cria, modifica e extingue direitos sem qualquer atesto por terceiros. Uma confissão de dívida não demanda reconhecimento de firma para que seja considerada válida, tanto quanto a renúncia de determinado direito. O que a novel legislação consolida, agora, é a imposição de mais uma etapa para a validade de declarações de vontade perante terceiros – rectius, que repercutam diretamente na esfera jurídica de terceiro, já que todos os pactos, por mais que tenham efeitos diretos sobre as partes (princípio do relativismo contratual), devem ser observados por toda a sociedade, o que caracteriza inevitavelmente um efeito seu. Então o que se quer, na alteração do Código Civil, não é burocratizar a validade da declaração de vontade, senão, justificadamente, aquele que impacta diretamente terceiros, como a ata da reunião de sociedade em que não compareceram todos os sócios.

A confissão de dívida, destarte, poderá contar com qualquer assinatura digital para ser considerada válida, mas a procuração para que o mandatário vote em assembleia de sociedade anônima, o compromisso de venda e compra de bem imóvel e o contrato de financiamento bancário deverão ser qualificadas. A tarefa deverá ser o estabelecimento de uma tipologia dos pactos quanto aos efeitos diretos sobre as esferas de terceiros e a necessidade de assinatura qualificada. 

No contexto do Poder Público, tem-se que cada ente deverá editar e publicar um ato que disponha sobre o nível mínimo exigido para que seja considerada válida a assinatura eletrônica em cada um dos documentos que interajam com o referido ente público. Ainda, após a publicação do ato, o ente deverá deixar claro à sociedade qual assinatura entendeu como válida para que a população possa ter acesso e iniciar a sua utilização. 

Fato é que a legislação, ainda que trate de forma completa e determinada sobre as assinaturas digitais, resta evidente que tal decerto renderá inteligência da doutrina e dos tribunais para que se defina na inteireza tão importante aspecto das declarações de vontade.

[1] FREIRE, André Luiz. “A teoria das posições jurídicas de Wesley Newcomb Hohfeld”, Tomo Teoria Geral e Filosofia do Direito, Edição 1, abril de 2017, Enciclopédia Jurídica da PUC-SP.