As inundações ocorridas no Rio Grande do Sul mobilizaram o país de forma sem precedentes. Mais de 400 municípios do estado foram atingidos, o que representa a quase totalidade do território gaúcho, fazendo com que esse seja o maior desastre regional já ocorrido no país. Pesquisadores alertam que as mudanças climáticas tornarão tais eventos mais intensos e frequentes. Diante deste cenário, é preciso discutir o aperfeiçoamento da legislação brasileira pertinente às mudanças climáticas.
O Brasil dispõe de uma lei promulgada em 2009, que trata da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC). A Lei 12.187/2009 dispõe sobre os objetivos da PNMC. Dentre os seus diversos dispositivos, estabelece as diretrizes para as medidas de adaptação, ou seja, as iniciativas que devem ser adotadas pelo Poder Público para reduzir a vulnerabilidade das cidades, face aos efeitos decorrentes das mudanças climáticas.
A governança da PNMC, prevista na referida lei, se dá por colegiados: Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima; Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima; Fórum Brasileiro de Mudança do Clima; Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais (Rede Clima); e a Comissão de Coordenação das Atividades de Meteorologia, Climatologia e Hidrologia.
A coordenação da PNMC, foi inicialmente regulamentada através do Decreto 7.390/2010, que indicou o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima para tal função. Em 2018 esse dispositivo jurídico foi revogado pelo Decreto 9.578/2018, sem qualquer aperfeiçoamento quanto a governança.
A gestão por meio de um comitê interministerial dificulta e torna ineficiente a governança. Em primeiro lugar porque de fato é difícil alcançar um mínimo consenso entre ministérios com diferentes atribuições e perspectivas sobre tema tão impactante. Em segundo lugar porque o capital político decorrente do sucesso de qualquer iniciativa fica diluído entre os ministérios, o que reduz o estímulo para que eles invistam energia no assunto.
Neste sentido, há 15 anos, vale assinalar, a governança da PNMC vem sendo questionada por órgãos públicos. Em 2009, o Tribunal de Contas da União (TCU)[1] auditou as ações que vinham sendo adotadas em relação às mudanças climáticas e confrontou o modelo de gerenciamento adotado. Dentre suas diversas conclusões, o trecho abaixo sublinha a forma pulverizada pela qual as questões climáticas vêm sendo abordadas no país:
Constatou-se que o tratamento das questões relacionadas ao tema mudanças do clima, no âmbito federal, dava-se de forma pulverizada, entre diversos atores. Avaliou-se que tal situação poderia estar afetando a atuação nessa área, uma vez que os resultados ainda eram tímidos, em especial, ante a constatação da falta de estudos, verificando os riscos a que se expõe o país aos efeitos desse fenômeno. Observou-se que a PNMC não previa os mecanismos necessários para a execução das ações propostas, não possuía um modelo de gerenciamento de suas ações, bem como não divulgava as ações e os resultados obtidos.
Em 2016, o Ministério do Meio Ambiente[2], expressamente, reconheceu a “obsolescência” da estrutura de governança da PNMC e recomendou sua unificação em um único órgão:
A obsolescência da atual estrutura de governança da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) é notória, sendo necessária e urgente a sua completa revisão. O arranjo atual ainda apresenta fragilidades que deverão ser avaliadas e dimensionadas a fim de que o País possa aumentar ainda mais seu protagonismo nos contextos nacional e internacional do esforço de combate à mudança do clima. […] A governança deverá ser unificada, de forma que um único órgão possa assumir a coordenação de todo esforço nacional na área de mudança do clima, o que inclui o apoio técnico que subsidia as negociações internacionais e o monitoramento e apoio à implementação das políticas nacionais e dos compromissos internacionais assumidos […].
Finalmente, em 2019, a Comissão de Meio Ambiente do Senado[3] identificou a ineficiência do modelo de governança da lei:
Não se pode dizer, portanto, que a estrutura de governança da PNMC tenha sido efetiva como norteadora de políticas públicas e de programas governamentais. Não se percebia, nesse modelo, uma liderança política clara que promovesse a necessária convergência das ações de governo com os objetivos e metas da PNMC. Em alguns momentos, essa liderança política, em mais alto nível, partiu do Ministério do Meio Ambiente, mas com as limitações inerentes a um órgão setorial que nunca representou um peso político expressivo na configuração de governo. A ausência dessa efetiva liderança fez com que, nos últimos anos, as iniciativas governamentais relacionadas ao clima, no âmbito federal, tenham se dado de forma fragmentada, conduzidas de maneira um tanto entrópica por diversos atores governamentais e dissociadas de diretrizes e estratégias comuns.
Estudos realizados por instituições privadas brasileiras também apontaram a debilidade da governança climática brasileira.
Relatório produzido em 2017 pelo Instituto Clima e Sociedade, em parceria com o Fórum Brasileiro de Mudança do Clima[4], traça o seguinte diagnóstico sobre a PNMC:
O desenho revelado nos quadros acima mostra a governança da PNMC como experimental e dedicada a instrumentos. Isso se diferencia de políticas onde há liderança executiva clara e mecanismos que geram convergência das ações de governo com seus projetos. Não há um poder racionalizante desses arranjos, pois não existe uma estratégia deliberada que fixe a direção, focalize o escopo, defina (os limites) da organização e proveja consistência. Em algum momento, esperava-se que o Plano Climático desempenhasse o papel desejado de integrar ações e instrumentos relevantes no campo das mudanças climáticas. No entanto, foi gradualmente abandonado como um instrumento de ação e coordenação.
A má governança é, portanto, uma fragilidade que prejudica a implementação da PNMC, inclusive no que diz respeito às medidas de adaptação capazes de mitigar a vulnerabilidade das cidades frente às mudanças climáticas. Interessante notar que as manifestações acima transcritas transcendem governos de diferentes matizes ideológicas, não sendo portanto, a inércia na solução deste problema atribuível a um grupo político ou outro.
Em paralelo, recentemente foi sancionada a Lei 14.904/2024, que “estabelece diretrizes para a elaboração de planos de adaptação à mudança do clima, com o objetivo de implementar medidas para reduzir a vulnerabilidade e a exposição a riscos dos sistemas ambiental, social, econômico e de infraestrutura diante dos efeitos adversos atuais e esperados da mudança do clima”.
A referida lei é instrumento que pode reduzir o risco de eventos trágicos com a dimensão do que vimos no Rio Grande do Sul, tendo méritos claros, dentre os quais destaco:
(I) os planos de adaptação estabelecerão medidas para “incluir a gestão do risco da mudança do clima nos planos e nas políticas públicas setoriais e temáticas existentes e nas estratégias de desenvolvimento local, municipal, estadual, regional e nacional”;
(II) a participação dos estados e municípios na sua elaboração, assim como de representantes de setores econômicos e da sociedade civil;
(III) a priorização de setores e regiões mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas;
(IV) a previsão de monitoramento e avaliação das ações previstas;
(V) a fundamentação em “evidências científicas, análises modeladas e previsões de cenários, considerando os relatórios científicos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)”;
(VI) a possibilidade de utilização de recursos do Fundo Nacional de Mudança do Clima que é gerido pelo BNDES, para o financiamento de planos municipais de adaptação às mudanças do clima.
O texto original do Projeto de Lei, de autoria da deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP), era mais ambicioso, pois estabelecia o prazo de um ano para a elaboração do plano nacional de adaptação, determinando, ainda, que o mesmo deveria prever prazos para a elaboração dos planos estaduais e municipais. A inexistência de prazo na citada lei para a construção do plano nacional de adaptação é ruim porque limita o seu enforcement quanto a esse aspecto, podendo fazer com que os seus formuladores não imprimam a velocidade que o tema exige.
Neste ponto voltamos ao problema de base da PNMC. A governança ineficiente pode ser um obstáculo à execução da Lei 14.904/2024. Isto porque o art. 4º da lei determina que “o arranjo institucional para formulação e implementação dos planos de adaptação de que trata esta lei fundamenta-se nos órgãos do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) e nos instrumentos previstos na PNMC”. Em outras palavras, não há a designação de um órgão específico da administração pública para coordenar a elaboração do plano nacional de adaptação. Seguiremos com uma governança pulverizada entre órgãos vinculados ao Sisnama e os órgãos colegiados de que trata a PNMC.
A redução do risco de novos desastres climáticos, decorrente da elaboração de um plano nacional de adaptação às mudanças climáticas alinhado com a melhor ciência, poderá esbarrar na inexistência de uma governança adequada da PNMC.
Assim, diante do acúmulo de indesejáveis efeitos colaterais decorrentes da frágil governança da PNMC, é urgente promover o seu aperfeiçoamento. A indicação de um órgão da administração pública federal que tenha inequívoca autonomia funcional para coordenar sua implementação representará um grande avanço.
Idealmente, a governança deverá ser transversal aos diversos ministérios e órgãos do governo federal e não pulverizada entre eles. Caberá a esse articulador harmonizar as políticas de competência da União com estados e municípios, mantendo, ainda, um sistemático diálogo com representantes do setor produtivo e da sociedade civil. A consolidação dos dados e informações em um único órgão da administração pública também proporcionará uma melhor escolha de políticas, regulamentações e investimentos voltados às medidas de mitigação e adaptação das mudanças climáticas.
Enfim, é preciso ordenar a governança do clima no país se quisermos, efetivamente, reduzir os riscos decorrentes das mudanças climáticas. Cabe à sociedade civil pressionar os formuladores de políticas públicas para que eles assumam as suas responsabilidades nesse processo.
[1] Tribunal de Contas da União. Meio Ambiente. Brasília: Tribunal de Contas da União, 2009, p.1.
[2] Relatório de gestão e de resultados 2010-2016. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, p. 22-23.
[3] Comissão de Meio Ambiente. Avaliação da política nacional sobre mudança do clima. Brasília: Senado Federal, 2019, p. 158.
[4] UNTERSTELL, N. Como se governa a política nacional de mudança do clima no Brasil hoje? Rio de Janeiro: Instituto Clima e Sociedade, 2017.