A livraria da estação

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“- Signore, me dispiace.

Non c’è più posti disponibili

sul Treno per Parma oggi.

– Grazie, signorina.

– Di niente”.

Tamanha foi a frustração que Ataulfo sequer reparou no superlativo de beleza dos olhos azuis da ragazza, que não eram verdes. Saiu a vagar pela Estação Central de Milão quando uma onda magnética o levou a uma livraria. O acaso manobrou para que, logo após uma estante sob o título “Narrativa erotica, encontrasse Il governo dei giudici“, de Sabino Cassese[1].

O autor, cuja importância para o direito público dispensa comentários, redigiu o texto para uma conferência que, no dia 28 de setembro de 2020, proferiu para a Académie de Sciences Morales et Politiques em Paris.

A escolha do tema, ao que se pode perceber da introdução, derivou da atualidade da quase centenária publicação de Édouard Lambert (Le Gouvernement des juges et la lutte contre la législation sociale aux État-Unis[2]), na qual o autor faz uma análise da jurisprudência da Suprema Corte norte-americana no início do século passado no que concerne ao exame da constitucionalidade da legislação social[3].

Após narrar a revolução silenciosa que transpôs os juízes do estado de impotência, sentido no Antigo Regime, e nas primícias da Revolução Francesa, para um poder pleno, com habilitação reconhecida para o julgamento das decisões administrativas e das leis, traz à ribalta a atual configuração da magistratura no espaço público.

Centralizando a sua análise no modelo italiano, aborda o autor a questão tanto com relação aos juízes como aos membros do Ministério Público[4]. Descortina pontos críticos: a péssima qualidade das leis, excessivos tipos penais, abundância de advogados, a má seleção de magistrados, a dominação do Conselho Superior da Magistratura por grupos, a Corte de Cassação congestionada por um número anormal de recursos, uma carga elevada de trabalho do Ministério Público por força da obrigatoriedade da ação penal, a ligeireza dos magistrados na limitação do precioso direito à liberdade pessoal e a excessiva tendência dos promotores e tribunais em ditar a agenda da política e estabelecer critérios desta em setores cruciais), evidenciando, em seguida, que a independência da magistratura se transformou em autogoverno.

Adverte o autor dos perigos da inclinação política da magistratura, expondo as tentações ao aparecimento em jornais e televisões, para notar que uma busca da espetacularização vem consistindo em fator de quebra da imparcialidade. Isso sem contar que um assíduo recurso ao encarceramento preventivo, para aplacar o alarme social, tem, igualmente, produzido um populismo judiciário, enquanto aproximadamente três quartos dos acusados, ao depois de uma média de quatro anos, têm a sua inocência reconhecida.

Por isso, aponta o autor que, na Itália, dos anos 1990 em diante, assiste-se a um nítido declínio da confiança do público com relação aos juízes e procuradores, especialmente com o temor de que do cenário do juiz sujeito à lei se passe ao da lei sujeita ao juiz.

A linguagem clara – e, sobremodo envolvente, de Cassese – galvanizou a curiosidade de Ataulfo, sobrevindo-lhe a certeza de que a humanidade somente valerá a pena enquanto existirem livrarias.

[1] Roma: Laterzi & Figli, 2020.

[2] Em 2005 sobreveio uma republicação pela Dalloz com prefácio de Frank Moderne. É possível, todavia, obter o acesso ao texto da primeira edição na Biblioteca Digital da Unesp (https://bibdig.biblioteca.unesp.br).

[3] Uma exposição crítica das decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre a intervenção estatal na ordem econômica, que ficou conhecida como a doutrina do devido processo econômico, é, igualmente e numa maior extensão (1890 a 1937), alvo da análise de Christopher Wolf (La transformación de la interpretación constitucional. 1ª ed. Madri: Civitas, 1991, pp. 201-226. Versão para o espanhol por María Gracia Rubio de Casa e Sonsoles Valcárcel).

[4] Importante frisar, para uma melhor compreensão, que, pela Constituição da República Italiana, as normas constitucionais sobre a organização do Ministério Público (Pubblico Ministero) estão inseridas no Titolo IV – La Magistratura, Sezione I – Ordinamento Giurisdizionale (art. 107.4 e o art. 108.2) e na Sezione II – Norme sulla Giurisdizione (art. 112), bem assim, no plano infraconstitucional, os dispositivos sobre o seu funcionamento constam do Real Decreto nº 12, de 30 de janeiro de 1941, que dispõe sobre o ordenamento jurisdicional (arts. 69 a 84). Por essa razão, alguns autores, dentre os quais Fausto Cuocolo (Principi di Diritto Costituzionale. Milão: Giuffrè Editore, 1996, pp. 705-706), afirmam que o Ministério Público faz parte da magistratura, mas como órgão autônomo e independente, não devendo os seus membros serem considerados como juízes, resultando daí a distinção entre magistratura requerente e magistratura judicante.