A licença-paternidade e os desafios da igualdade material

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A licença-paternidade deveria ser equiparada, e consecutiva (antecedente ou posterior) à licença-maternidade; mas o Brasil ainda caminha em passos lentos para essa mudança tão necessária. O Supremo Tribunal Federal retomou nesta quarta-feira (13), no plenário físico, o julgamento da ADO 20[1], destinada a encerrar mais de 35 anos de mora legislativa na regulamentação da licença-paternidade.

Caso o Supremo Tribunal Federal reconheça e imponha ao Congresso Nacional a regular esse direito constitucionalmente reconhecido aos homens (artigo 7, XIX, CF), o Brasil poderá se juntar ao grupo de países, mais desenvolvidos, que há muito reconhecem a necessidade de garantir a licença a pais e mães para cuidar de seus filhos nos primeiros meses de vida[2].

A concessão de licença-paternidade em igual período e consecutivo tem respaldo no artigo 227 da Constituição Federal, que determina que deve ser assegurado às crianças tratamento de absoluta prioridade pela família, sociedade e Estado. No âmbito familiar, o atual cenário legislativo brasileiro impõe majoritariamente a genitora a responsabilidade pela criação dos filhos, pois às mulheres são concedidos 120 dias, e aos homens apenas 5. Conforme bem lembrado pela advogada Ana Carolina Caputo Bastos em sustentação na ADO 20, esse tempo é o mesmo que se celebra o Carnaval no país. Neste tema, ainda é necessário dizer o óbvio: sendo o filho de ambos, também devem ser compartilhados equanimemente entre homens e mulheres direitos e obrigações em sua criação.

Este atraso legislativo de décadas cobra seu preço. Em países que já regulamentaram licenças equiparáveis para pais e mães, ou mesmo que adotam a mais moderna licença-parental, neutra em termos de gênero, a discussão avançou do reconhecimento básico de que a licença-paternidade é uma necessidade de pais, mães, filhos, e da sociedade em geral, para uma preocupação sobre seus diferentes formatos e seus efeitos sobre os muitos objetivos que a implementação da licença almeja alcançar.

Um desses objetivos é indubitavelmente a igualdade de gênero. A regulamentação da licença-paternidade estabelece uma medida mínima de equilíbrio na sobrecarga de cuidado que recai sobre as mulheres, e protege a sua posição no mercado profissional. Essas são premissas básicas quanto à importância da licença-paternidade para as mulheres: o afastamento dos pais do trabalho permitirá que assumam parte da responsabilidade pelos intensos cuidados com o filho, e retirará das mulheres o peso de serem funcionárias que, em algum momento de suas vidas reprodutivas, se afastarão de suas funções profissionais por um período.

No entanto, a experiência comparada demonstra que nem mesmo essas premissas básicas podem ser tidas como realidades pela mera concessão da licença-paternidade. Por exemplo, se a licença for voluntária, e não obrigatória, os números mostram que uma maioria avassaladora dos homens vão optar por não usufruir dela[3]. E não necessariamente porque eles não desejam auxiliar no cuidado com os filhos, mas porque cria-se uma expectativa quase irreversível do mercado de trabalho, de que a licença do pai não será gozada, pelo menos não em sua extensão completa[4]. O problema atinge também as hipóteses em que a licença-parental pode ser livremente dividida entre pais e mães, nas quais as mulheres invariavelmente assumem a maior parcela da licença[5].

Por outro lado, a licença obrigatória concomitante, mesmo que equiparada à licença-maternidade, impõe seus próprios desafios. Aqui, os números revelam que os pais, em sua maioria, assumem consideravelmente menos responsabilidades de cuidado durante o período. Isso se revela não apenas nas expectativas mercadológicas quanto à participação eventual do genitor de licença nas atividades da empresa (que recai de forma muito mais incisiva sobre os pais do que sobre as mães), mas também no fato de que muito mais pais do que mães conseguem, nesse período, investir em seu aperfeiçoamento profissional, seja pelo desenvolvimento de projetos para o trabalho, ou mesmo a obtenção de cursos e certificados.

Pesquisas revelam – e o fato é chocante o suficiente para sair das notas de rodapé – que enquanto as mulheres retornam do período de licença com currículos menos atraentes, ainda que por nenhum outro motivo do que o fato do seu afastamento, os homens muitas vezes retornam ao trabalho com currículos fortalecidos, justamente em razão do tempo que dedicam a atividades de cunho profissional durante o período da licença[6].

Essas preocupações com a licença concomitante são mais sutis e menos quantificáveis do que o debate sobre a obrigatoriedade da licença, mas ambos merecem mais atenção e cuidado do que têm recebido, mesmo na nossa Suprema Corte. A ADO 20 foi proposta em 2012, com o modesto objetivo de ampliar a licença-paternidade em alguns poucos dias. Mas no julgamento, iniciado em 2020 no plenário virtual, se discutiu desde o início a equiparação ao modelo da licença-maternidade que, em sua forma tradicional, é de 120 dias logo após o nascimento, e obrigatório. Parece haver um consenso não escrito no sentido de que essa equiparação significaria o gozo concomitante das licenças[7].

É esse também o modelo que pautou o debate no Congresso Nacional por mais de uma década. O PL 6753-2010 previa a alteração da CLT, para fazer constar que “Ao empregado é assegurada a licença-paternidade por todo o período da licença-maternidade ou pela parte restante que dela caberia à mãe, em caso de morte, de grave enfermidade, ou do abandono da criança, bem como nos casos de guarda exclusiva do filho pelo pai[8].

Não há dúvidas de que a equiparação entre a licença-maternidade e a licença-paternidade, ainda que gozadas concomitantemente, seria um imenso avanço em relação à realidade atual. Mas a experiência comparada demonstra que a equiparação formal em muito elude a igualdade material que é um dos objetivos centrais da regulamentação e que, se a regulamentação não for implementada de forma inteligente, as preconcepções sociais de desigualdade de gênero se replicam sobre a licença-parental, mantendo as mulheres sobrecarregadas e profissionalmente desvalorizadas[9].

Nos parece adequado terminar este artigo citando duas grandes mulheres. Catherine MacKinnon declarou que “a igualdade é um conceito frequentemente alardeado e supostamente aplicado, mas raramente questionado genuinamente[10]. O objetivo aqui não é defender, necessariamente, a aprovação do modelo de licença-paternidade que entendemos mais adequado, mas chamar atenção ao fato de que a discussão merece crescer em complexidade. A sociedade brasileira já precisou esperar quase 40 anos pela regulamentação da licença-paternidade.

Essa lamentável e longuíssima espera deveria servir para que, pelo menos, pudéssemos aprender com os equívocos já praticados, e usufruir dos modelos que demonstraram a maior capacidade de efetivamente reduzir a desigualdade de gênero, sem diminuir os demais benefícios. Nas palavras de Ruth Bader Ginsburg “⁠as mulheres terão alcançado a verdadeira igualdade quando os homens compartilharem com elas a responsabilidade de criar a próxima geração[11].

[1] ADO 20, Rel. Min. Marco Aurélio (sucedido pelo Min. André Mendonça). O julgamento foi iniciado em 30/10/2020; em 08/11/2023, foi realizada audiência para a realização de sustentações orais. Continuidade do julgamento agendada para 13/12/2023.

[2] Os dados da OECD (Organization for Economic Co-operation and Development) de 2022 mostram que, no Top-10 de países que fornecem maiores licença-paternidade exclusiva e paga, estão Coréia do Sul, Japão, França, Luxemburgo, Portugal, Bélgica, Islândia, Espanha e Noruega. Mas essa lista exclui outros países que adotam exclusivamente o modelo da licença-parental, que pode ser dividida entre pais e mães, como Finlândia e Hungria. OECD.Stat, Employment: Length of maternity, parental and home care leave, and paid father-specific leave. Disponível em: https://stats.oecd.org/index.aspx?queryid=54760, acesso em 10/12/2023.

[3] Os dados não estão unificados, mas entre países que adotam a licença-paternidade voluntária, ou a livre distribuição da licença-parental, a Polônia reporta que 99% das licenças são usufruídas pelas mães; Na França e a Croácia, aproximadamente 4,5% das licenças são usufruídas pelos pais; Na Dinamarca, 11%. Mesmo em países com fortes políticas igualitárias, como a Suécia, os pais não utilizaram mais do que 27% das licenças, mesmo podendo utilizar mais. Eige Europa, Gender Equality Index 2019: Work-life balance. Disponível em: https://eige.europa.eu/publications-resources/toolkits-guides/gender-equality-index-2019-report/parental-leave-policies?language_content_entity=en, acesso em: 10/12/2023.

[4] PARKS-STAMM, Elizabeth; THARP, Derek. Men and Women Use Parental Leave Differently. They’re Judged Differently for It, Too. TIME, 23/05/2023, disponível em: https://time.com/6281701/parental-leave-gender-bias-women-careers/, acesso em 10/12/2023; THARP, D.T., PARKS-STAMM, E.J. Gender Differences in the Intended Use of Parental Leave: Implications for Human Capital Development. J Fam Econ Iss 42, 47–60 (2021). Disponível em: https://doi.org/10.1007/s10834-020-09722-8, acesso em 09/12/2023.

[5] Eige Europa, Gender Equality Index 2019: Work-life balance. Disponível em: https://eige.europa.eu/publications-resources/toolkits-guides/gender-equality-index-2019-report/parental-leave-policies?language_content_entity=en, acesso em: 10/12/2023.

[6] PARKS-STAMM, Elizabeth; THARP, Derek. But what did they do on leave? Differing evaluations of men and women’s completion of work tasks on parental leave. Journal of Occupation and Organizational Psycology, Volume 96, 2, Jun. 2023, pp. 235-241. Disponível em: https://bpspsychub.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/joop.12421, acesso em 09/12/2023; SERON, C.; FERRIS, K. Negotiating Professionalism: The Gendered Social Capital of Flexible Time. Work and Occupations, 22(1), pp. 22-47, 1995. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0730888495022001002, acesso em 10/12/2023.

[7] Votaram pela equiparação, no que couber, entre as licenças maternidade e paternidade, imediatamente ou após o fim do prazo para o Congresso Nacional, os Ministros Barroso, Fachin, Cármen Lúcia e Rosa Weber, quando o julgamento estava sendo realizado no Plenário Virtual. Em 13/12/2023, o Ministro Barroso reafirmou seu voto no Plenário Físico, no sentido de que, passados os dezoito meses de prazo concedidos ao Congresso para sanar a mora, equiparar-se-ão as licenças maternidade e paternidade.

[8] PL 6735/2010, de autoria do Senador Antônio Carlos Valadares – PSB/SE. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao/?idProposicao=465832, acesso em 09/12/2023.

[9] DUVANDER, Ann-Zofie, et al. Gender Equality: Parental Leave Design and Evaluating Its Effects on Fathers’ Participation. In: Parental Leave and Beyond: Recent International Developments, Current Issues and Future Directions, Ann-Zofie Duvander et al., Bristol University Press, 2019, pp. 187–204. Disponível em: JSTOR, https://doi.org/10.2307/j.ctvfrxngh.17, acesso em 11/12/2023.

[10] MACKINNON, Catharine A. Equality. Daedalus, vol. 149, n. 1, 2020, pp. 213–21. Disponível em: JSTOR, https://www.jstor.org/stable/48563042, acesso em 10/12/2023.

[11] A citação é atribuída a uma entrevista concedida por Ginsburg à New York City Bar Association em 2001. Disponível em: https://www.usatoday.com/story/news/politics/2020/09/19/ruth-bader-ginsburg-quotes-supreme-court-metoo-equality/5837815002/, acesso em 13/12/2023.