É fato incontroverso que a Regularização Fundiária Urbana (Reurb), instituída pela Lei 13.465/2017, representa avanço inédito para a garantia de segurança jurídica dos ocupantes de imóveis irregulares no Brasil, bem como para o cumprimento do direito fundamental à moradia, assegurado pela Constituição Federal de 1988. Mesmo assim, o país ainda precisa encarar grandes desafios nessa área.
O Brasil tem déficit habitacional de 6 milhões de unidades, além de 16 milhões de pessoas morando nas mais de 11 mil favelas existentes no país. De acordo com o Censo 2022, mais de 236 mil pessoas vivem nas ruas das cidades brasileiras. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), também existem, em todo o país, mais de 5 milhões de moradias irregulares.
No cenário que antecedia a Reurb, havia um emaranhado nada sistêmico de normas e dispositivos legais que muito debilmente contribuía para a melhoria daquilo a que se propunha. Contudo, em que pese se tratar de um novo, unificado e aprimorado modelo para o trato da problemática em questão, a Reurb carece e depende de outras medidas e atitudes, políticas e sociais, para se tornar efetivamente exequível e eficaz.
Um breve histórico é necessário. No início dos anos 1940, o Brasil adentrava definitivamente e de forma acelerada no processo de industrialização e, por consequência, de urbanização. Consideradas a desigualdade social e a notória escassez de recursos da grande maioria da população, o cenário resultou no crescimento exponencial de assentamentos urbanos irregulares. Esse estado de coisas foi o que tornou imprescindível a entrada em vigor do Decreto-Lei 3.365/1941, conhecido como Lei de Desapropriação.
Esse primeiro instrumento normativo, no entanto, provou-se ineficaz. Isto porque estabelecia a legitimação da posse dos assentamentos urbanos irregulares – nos casos em que fosse comprovada a ocupação do imóvel por ao menos cinco anos – sem considerar o nível de complexidade e burocracia do processo para conferência de título de propriedade.
Na esteira da Lei de Desapropriação, a Lei 6.015/1973 instituiu o Sistema Nacional de Registro de Imóveis, que alcançou melhores resultados ao promover a regularização fundiária pela via da usucapião especial urbano. É de se reconhecer que, ao lançar mão desse instituto legal, o país conseguiu reduzir o déficit habitacional. A partir dele, os assentados que comprovassem posse de áreas de até 250 metros quadrados pelo período mínimo de cinco anos conseguiam o registro de titularidade do imóvel.
Infelizmente, contudo, a exemplo do que ocorreu com a Lei de Desapropriação, também o Sistema Nacional de Registro de Imóveis e, mais especificamente, a usucapião especial urbana lidam com procedimentos complexos e burocráticos.
Conhecida como MP do Solo Criado, a MP 2220/2001 foi depois convertida na Lei 10.932/2004, cujo regramento concede o direito real de uso para fins de financiamento de projetos de regularização fundiária. A inovação foi fundamental, pois possibilitou que os municípios vendessem às pessoas e entidades ligadas à construção civil o potencial construtivo que a regularização fundiária evidentemente fomentou.
No mesmo ano, entrou em vigor a Lei 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, que integrou os preceitos contidos nas normas legislativas anteriores. Assim, estabeleceu a possibilidade de regularização fundiária por meio de procedimentos diversos, essencialmente, a legitimação de posse, a usucapião especial urbana e a concessão de direito real de uso.
Outro efeito importante da nova lei foi que, dessa forma, ensejou avanços para o desenvolvimento urbano sustentável, priorizando a participação da sociedade na gestão urbana e do interesse público.
Ainda em 2001, também foi editada a Lei 10.188/2001, que criou o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), que permitiu que famílias de baixa renda alugassem residências por prazo determinado, ao final do qual poderiam adquiri-las. Entretanto, essa iniciativa não alcançou muito sucesso, conforme dados divulgados em 2005 pelo governo federal, que apontou baixo nível de candidatura ao programa pelas famílias às quais se destinava a atender.
Finalmente, em 2009, entrou em vigor aquele que, segundo documento publicado pelo Ministério da Economia em 2020, viria a ser o maior e mais bem-sucedido programa habitacional da história do país até então: o Minha Casa, Minha Vida, instituído pela Lei 11.977/2009. Por meio dele, mais de 4,5 milhões de famílias adquiriram suas casas e mais de 2,6 milhões de imóveis foram regularizados. Mesmo assim, tamanho avanço não conseguiu solucionar o déficit habitacional no país, o que tornou necessária, anos depois, a Lei de Reurb.
A Reurb surgiu com grande leque de possibilidades para a regularização urbana no Brasil. A lei criou instrumentos para garantir a segurança jurídica à posse de imóveis urbanos, com a emissão de títulos de propriedade. Além disso, manteve a usucapião e estabeleceu medidas de desapropriação em favor dos possuidores, o que permite a transferência da propriedade de imóveis urbanos a seus ocupantes, via pagamento de indenização ou até mesmo gratuitamente, em casos de núcleos urbanos de baixa renda.
Além disso, abarcou a chamada “arrecadação de bem vago”, que consiste na transferência da propriedade de imóveis urbanos que não possuem dono conhecido, e o consórcio imobiliário, que constitui importante ferramenta de regularização fundiária de empreendimentos imobiliários.
Outros mecanismos criados pela Reurb preveem a transferência do direito de construir, nos casos em que proprietários de imóveis urbanos sofrerem prejuízo em virtude de regularização fundiária, de modo a compensá-los por isso. Também a tomada de posse de imóveis urbanos em caso de perigo público iminente e a intervenção da administração pública em parcelamentos clandestinos ou irregulares, entre outros.
São estabelecidos ainda pela citada lei a concessão de direito real de uso, a doação e o instituto de compra e venda. Embora esses dois últimos já fizessem parte da ordenação jurídica brasileira para permitir iniciativas municipais de regularização fundiária, não eram, até então, previstos em lei federal. Por fim, a Reurb inovou bastante ao estabelecer, também, a legitimação fundiária, o direito de laje, o condomínio de lotes e o condomínio urbano simples.
No entanto, mais uma vez, mesmo configurando uma novidade importantíssima para o enfrentamento das questões relacionadas ao déficit habitacional no país, a Reurb enfrenta múltiplos percalços e limitações que persistem e entravam de forma bastante acentuada a efetivação do direito fundamental à moradia. A começar pela desigualdade social, altíssimo nível de concentração de renda sob o poder de uma minoria que tem, por contraponto, uma maioria que, desprovida de recursos, se vê obrigada a ocupar áreas públicas ou privadas de forma irregular, muitas das quais inaptas à habitação.
Também há de se destacar as políticas habitacionais inadequadas e a especulação imobiliária. Quando áreas nas quais comunidades se assentam de forma irregular tornam-se mais valorizadas, passam a figurar como objeto de desejo dos especuladores imobiliários, o que faz com que a pressão pela expulsão dos assentados aumente drasticamente.
Ainda há o excesso de burocracia, além da forte resistência de alguns segmentos sociais e institucionais para a efetiva implementação da nova legislação, recursos financeiros limitados e ausência de distribuição justa dos benefícios.
Um aprofundado estudo sobre tal cenário sugere, como medidas concretas a serem adotadas, e de forma sistêmica, um extenso esforço para a conscientização pública acerca da problemática habitacional no Brasil. O objetivo deve ser o aprimoramento da coordenação entre os atores envolvidos no processo de regularização fundiária urbana e aumento de recursos financeiros especificamente voltados para a erradicação do déficit habitacional em nosso país.