Depois que a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) aprovou a Lei 17.853/2023, que autoriza a privatização da Sabesp, cabe acompanharmos a continuidade do processo de desestatização a cargo do governo paulista.
O texto legal, ainda que bastante sucinto, possui muitos problemas e causa relevante insegurança jurídica não só ao processo de privatização mas, principalmente, à futura regulação e operação da Sabesp. Até o presente momento não parece que estamos diante de um modelo de aplicação de boas práticas regulatórias em infraestrutura.
Um indício forte de que a preocupação com as melhores práticas regulatórias não era o objetivo principal do Executivo paulista se deu com a decisão de tramitar o tema na Alesp em regime de urgência. Tratar a regulação de infraestrutura desprezando o debate informado e a toque de caixa pode até encurtar prazos, porém produz resultados ruins na prestação do serviço, o que se faz sentir especialmente no longo prazo.
Para um governador que construiu fama de bom técnico servindo a governos de diversas orientações ideológicas, fica o ônus de assegurar que a futura regulação dos serviços de água e esgoto não repetirá o padrão até aqui verificado: uma mistura apressada de intransparência e insuficiente acurácia técnica.
Trato, neste e em mais dois artigos subsequentes,de algumas fragilidades jurídicas do processo de privatização até o presente momento. Os riscos que aponto certamente não são suficientes para diminuir o afã daqueles que torcem pela privatização, mas indicam a criação de um passivo regulatório de respeito, daqueles capazes de propiciar um bom estoque de pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro na Arsesp.
As URAEs como poder concedente?
O primeiro tema que abordo é a caracterização e função das Unidades Regionais de Água e Esgoto (URAE) na privatização da Sabesp. Com base no art. 3º, VI, b, da lei federal de saneamento, o estado instituiu[1] quatro desses órgãos, os quais, em conjunto, abrangem todo o território estadual.
A unidade regional de saneamento é uma figura nova e não muito bem regulada no direito brasileiro. Apesar de ser considerada uma forma de prestação regionalizada dos serviços de saneamento, ela não corresponde a uma região no sentido geográfico do termo; ela é um simples agrupamento de municípios que sequer têm de ser territorialmente contíguos. Esse agrupamento tem a finalidade de permitir o subsídio cruzado entre eles. As URAEs paulistas não têm personalidade jurídica e possuem estrutura decisória cujo poder de voto é baseado na população dos entes que a compõem (o que faz com que o estado e o município de São Paulo tenham enorme poder na deliberação da URAE 1).
A URAE 1 corresponde aos municípios atendidos pela Sabesp e, em princípio, é para essa que o Estado voltaria sua atenção. Todos os municípios do bloco original da URAE 1 aderiram a ela, ainda que o município de São Paulo não o tenha feito no prazo legal inicialmente estipulado[2]. Sem a participação paulistana, a URAE da Sabesp perde praticamente metade da sua receita.
Não está totalmente claro se a adesão extemporânea do município de São Paulo será considerada válida; para tanto, temos de considerar que o prazo constante do marco legal do saneamento é um prazo que pode ser abertamente ignorado. Há quem argumente que, na ausência de penalidade expressa pelo descumprimento, teríamos um prazo impróprio. Se assim o for, talvez a previsão do marco legal que estabelece prazos para universalização em 2033 também pode ser vista como pouco vinculante. Afinal de contas, por que um prazo seria mandatório e o outro não?
Não é difícil imaginar muitas teses jurídicas a respeito do caráter impróprio dos prazos do marco legal de saneamento sendo criadas às vésperas de 2033, diante de situações em que os prazos de universalização não venham a ser cumpridos. Talvez estejamos assistindo à primeira contribuição para a formação de tais teses.
Sobre o caráter vinculante dos prazo legal de adesão às URAEs, vale notar dois recentes entendimentos sobre a regra, expressos no âmbito da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI 7.470), que trata da regulamentação das URAEs paulistas.
O primeiro, da Procuradoria-Geral da República: não há impedimento à adesão fora do prazo, mas haveria, sim, uma impossibilidade de recebimentos de recursos federais por parte daqueles que aderiram fora do prazo, por força do art. 50, VIII da Lei 11.445/07. A prevalecer tal entendimento, a futura Sabesp não poderia receber recursos do BNDES, por exemplo.
O segundo entendimento, do ministro do STF André Mendonça, na apreciação do pedido de decisão liminar: o prazo adicional amplia a autonomia municipal, dando aos municípios mais tempo para decidir sobre o tema sobre a adesão à URAE. Essa defesa da grande autonomia municipal, que pode ignorar prazos claros da lei federal, certamente será invocada quando os municípios quiserem tomar outras decisões sobre o serviço de que são titulares.
Apesar de o marco legal do saneamento não ser claro sobre titularidade de serviços nas unidades regionais, o governo do estado apresentou, em material de divulgação institucional, que haveria “cotitularidade com efetividade entre os municípios e o governo do estado”. Essa visão tem sido reiterada em declarações da secretária de Infraestrutura e Meio Ambiente.
Embora a lei federal classifique como formas de gestão associada apenas os consórcios públicos e convênios de cooperação – instrumentos de associação que não foram usados na criação das URAEs paulistas –, o decreto paulista sobre o tema declara que a “adesão à estrutura de prestação regionalizada implica o reconhecimento da necessidade de gestão associada para o exercício da titularidade”[3]. Temos uma associação sem os instrumentos legalmente previstos para formalizá-la, pois.
Talvez a redação do decreto paulista tenha levado a PGR a afirmar categoricamente a titularidade compartilhada entre estado e municípios em sua manifestação na ADI 7.470, afirmando que as unidades regionais são uma forma de gestão associada do serviço. Esse também foi o entendimento do ministro André Mendonça ao apreciar o pedido liminar em tal ação, ocasião em que considerou as URAEs como formas de “condomínio” (as aspas são do ministro), deixando marcada a relação de deveres recíprocos entre estado e municípios.
Se assim é, cabe indagar se o estado de São Paulo se preparou para ter virado, de súbito, cotitular do serviço de saneamento não só na URAE 1, mas igualmente nas outras 3 URAEs, passando a dividir com todos os municípios paulistas não só os direitos, mas também os deveres ínsitos à condição de “dono” do serviço.
Se o material institucional produzido pelo governo Tarcísio de Freitas, no qual se afirma a cotitularidade do estado nas URAEs, realmente expressa um entendimento refletido e atento às consequências de tal posicionamento, temos uma verdadeira revolução na gestão do saneamento em todo o estado, com aumento brutal das obrigações e despesas às custas dos cofres estaduais.
Tomara que o devido impacto orçamentário e financeiro tenha sido realizado. Além disso, é inegável a necessidade de finalização do plano estadual de saneamento como condição de validade do contrato de concessão da Sabesp[4], senão mesmo de todos os demais contratos de serviços de água e esgoto no estado. Torçamos também para que as providências cabíveis sejam tomadas.
A respeito do funcionamento da URAE no âmbito do processo de privatização, ao que tudo indica, a ideia do governo Tarcísio é a de que haja uma deliberação da URAE 1, presumidamente válida para todos os municípios dela participantes, a fim de que todos os quase 400 contratos de programas sejam transformados em um único contrato de concessão, detalhando em anexos específicos os planos de investimentos de cada município.
Não é absolutamente claro que possa haver a conversão de quase 400 contratos de programa em um único contrato de concessão. O art. 14 da Lei 14.026/20 admite, quando da privatização das empresas estaduais de saneamento, a transformação dos contratos de programa em novos contratos de concessão (atenção para o uso do plural). A conjunção de instrumentos contratuais, no caso paulista, decorreria de uma interpretação que pressupõe que os quase 400 municípios, titulares do serviço, terão o mesmo e único vínculo contratual, o que pode limitar bastante o exercício de suas competências de titularidade.
Talvez o governo do Estado esteja entendendo que a URAE, ao congregar os municípios, substitui ou elimina o poder decisório dos municípios individualmente considerados, o que é uma presunção um pouco ousada. Estamos realmente certos de que, até 2060, serão a URAE e a Arsesp – e não os prefeitos – que tomarão decisões sobre o saneamento nos municípios em que a Sabesp atua?
Temos uma privatização gigantesca que se inicia com a questão da titularidade estabelecida em termos um pouco heterodoxos. Não seria melhor usar um modelo mais claramente aderente à lei e que elimine as incertezas sobre exercício das competências da titularidade?
No próximo texto tratarei do papel do plano de investimentos no processo de desestatização. Longe de ser apenas uma compilação dos deveres da futura Sabesp privada e algo que deva ser analisado sob perspectiva econômico-financeira, ele encerra questões jurídicas bastante relevantes.
[1] Lei estadual nº 17.383/21.
[2] Lei estadual nº 17.383/21 concedia prazo de 180 dias contados a partir de 05 de agosto de 2021. O Município de São Paulo aderiu apenas em agosto de 2023.
[3] Art. 1º, §4º do Decreto nº 66.289/21.
[4] Art. 11, I da Lei nº 11.445/07.