A previsão de implementação da interoperabilidade dos vouchers de refeição e alimentação é uma medida altamente positiva para impulsionar a competitividade no setor. Reduzirá custos tanto para restaurantes, quanto para outros estabelecimentos que aceitam vouchers. A abertura desses arranjos terá também, sobretudo, impacto direto no bolso de trabalhadores brasileiros, uma vez que tende a reduzir os preços de refeições e alimentos.
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No entanto, para que essa iniciativa seja efetiva, é necessário que seja instituído um arcabouço adequado de disciplina desses arranjos, para que regulador competente leve a cabo a efetiva abertura da infraestrutura, aproveitando, assim, as valiosas lições já aprendidas no mercado de arranjos de pagamento.
Atualmente, o modelo predominante no mercado de vouchers é o de arranjo fechado. Isso é precisamente o que contribui para uma concentração significativa de empresas, minando a competitividade nesse setor, caracterizado por altas barreiras à entrada de novos participantes e poucos estímulos à inovação. Como resultado, os varejistas frequentemente arcam com taxas de aceitação mais elevadas, que são repassadas aos preços finais dos alimentos e refeições. Quem perde é a esmagadora maioria de trabalhadores assalariados que se utilizam de vouchers para se alimentar. Vale notar que hoje as taxas cobradas por operadoras de voucher podem ultrapassar 6%, patamar bem mais elevando que a taxa média de mercado cobrada de transações de débito (próxima a 1,1%), segundo os dados do Banco Central. Importante notar que isso em boa medida ocorre porque, em arranjos fechados, não existe interoperabilidade entre os participantes.
A interoperabilidade é o que permite que diferentes participantes (como credenciadoras e emissores de cartões) acessem a infraestrutura de bandeiras em condições não discriminatórias para a oferta de serviços de pagamento. Na prática, isso permite a abertura de arranjos e a competição entre vários emissores e credenciadoras. Ao contrário do que se observa hoje no mercado de vouchers, a interoperabilidade resulta em arranjos abertos que operam no modelo full acquirer, ou seja, com a separação das funções de bandeiras, emissoras e credenciadoras.
A interoperabilidade não se confunde com a portabilidade. A portabilidade é o direito do trabalhador de migrar para outra operadora de vouchers. No entanto, apesar de ser também um instrumento de competição, a portabilidade não implica a abertura do arranjo a novos participantes, nem a adoção do modelo full acquirer.
Hoje a bandeira do voucher atua como a única operadora do benefício, sendo responsável pelo processamento e liquidação das transações, controlando todas as etapas do processo de pagamento, além de definir as condições comerciais para participação no arranjo. Outras instituições de pagamento credenciadoras podem apenas capturar a transação, por meio das maquininhas de cartão, mas não têm a capacidade de processar e liquidar a transação, o que arrefece a rivalidade no mercado.
Medidas recentes foram adotadas pelo governo para aprimorar a supervisão dos arranjos de vale-alimentação e vale-refeição, com o objetivo de promover competição e a eficiência, bem como para reduzir os custos para estabelecimentos e consumidores. Por exemplo, o Decreto nº 10.854/2021 estabeleceu a interoperabilidade entre as operadoras de vouchers e arranjos abertos. Nessa mesma direção, a Lei nº 14.442/2022 alterou a Lei nº 6321/1976 para incorporar essa disposição do mencionado decreto em relação à interoperabilidade. Apesar dos avanços trazidos por tais alterações normativas, aprimoramentos ainda são necessários para garantir uma efetiva abertura desse mercado. Sem isso, os pretendidos benefícios a varejistas, trabalhadores e trabalhadoras não se concretizarão.
Para promover a verdadeira interoperabilidade no mercado de vouchers, é, em suma, essencial abrir efetivamente o arranjo. Para tanto, é fundamental conduzir uma discussão aprofundada sobre o conceito de interoperabilidade no contexto dos vouchers, o que envolve estabelecer regras e métricas adequadas em relação ao volume de transações.
Felizmente, não é necessário reinventar a roda e criar um modelo de implementação aberto e interoperável do zero, uma vez que já existe um padrão em vigor que pode ser facilmente adaptado. Já houve aprendizados valiosos provenientes da abertura do setor de cartões de crédito: por meio da Lei 12.865/2013, a interoperabilidade foi estabelecida como princípio do Sistema Brasileiro de Pagamentos, permitindo a entrada de novos atores econômicos capazes de capturar, processar e liquidar transações de diversas bandeiras de cartão.
Para viabilizar a operacionalização da interoperabilidade no setor de cartões, em 2015, o regulador estabeleceu, por meio da Circular BCB nº 3.815 (que foi posteriormente revogada pela Resolução BCB nº 150), que os arranjos deveriam disponibilizar aos agentes interessados: (i) regulamentos contendo os critérios e condições mínimas de participação; (ii) contratos e toda a documentação necessária para a integração do participante, incluindo aspectos procedimentais e tecnológicos; e (iii) procedimentos de homologação de novos participantes, com suas etapas e prazos máximos de conclusão. A implementação desses requisitos efetivou a interoperabilidade, o que resultou na redução das tarifas de aceitação de cartões e na expansão do número de estabelecimentos que aceitam essa forma de pagamento.
O mesmo potencial de transformação pode ocorrer no setor de vouchers de refeição e alimentação, se for adotada uma estrutura semelhante de abertura. De acordo com o recentemente publicado Decreto nº 11.678, a responsabilidade de estabelecer diretrizes para orientar a regulamentação dos vouchers fica a cargo do Conselho Monetário Nacional (CMN). Caberá, portanto, ao CMN guiar a criação de um regime regulatório bem elaborado e implementado, a fim de garantir que esses arranjos no mercado de vouchers sejam verdadeiramente interoperáveis.