No final do mês de agosto, foi realizado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo o evento “O Futuro dos Processos Estruturais no Brasil”[1], que reuniu professores especialistas no tema para discutir os rumos do processo estrutural no país.
O seminário foi organizado pelo professor Ricardo de Barros Leonel, em parceria com os pós-doutorandos João Paulo Lordelo Guimarães Tavares e Luís Eduardo Oteiro Hernandes. Um ponto de convergência na fala de todos(as) os(as) palestrantes foi o entendimento de que a consolidação dos processos estruturais depende, hoje, da criação de incentivos concretos para os demais sujeitos processuais vinculados às funções essenciais à justiça.[2]
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Durante sua exposição, o professor titular Sérgio Cruz Arenhart destacou que, mesmo diante de um projeto legislativo ambicioso sobre processo estrutural, os avanços serão limitados se não houver estímulos e incentivos reais para a atuação nesse tipo de processo.
A principal crítica do professor é que, na atual conjuntura, segundo os critérios estabelecidos pelo CNJ, um magistrado recebe a mesma pontuação funcional por uma sentença simples, como uma ação de despejo, ou por um caso estrutural de enorme complexidade, como o desastre de Mariana. Segundo Arenhart, isso desincentiva o engajamento e a atuação dos demais sujeitos do processo e, por consequência, questiona-se a capacidade das funções essenciais à justiça atuarem em processos estruturais.
Para mudar esse cenário, o PL sobre Processo Estrutural”[3] dispõe, nos arts. 4°, I e II; arts. 5°, §6º e arts. 13, caput e §3º, que é preciso garantir ao Judiciário, ao Ministério Público, à Advocacia Pública, à Advocacia Privada e à Defensoria Pública estrutura adequada, formação de equipes especializadas, criação de painéis de magistrados e tratamento diferenciado pelas corregedorias. Sem essas medidas, a lógica e a racionalidade desse tipo de processo continuarão restritas a experiências isoladas. Sem esses estímulos, é muito difícil implementar tanto as técnicas quanto a própria concepção do processo estrutural.
Esse diagnóstico ajuda a compreender o alcance das recentes iniciativas normativas que buscam incorporar essa racionalidade das técnicas processuais estruturais ao funcionamento das instituições essenciais à justiça.
Gestão de processos estruturais exige normas internas que definam estratégias e incentivem atuação institucional
Nesse sentido, a Recomendação de Caráter Geral 5/2025, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)[4], e a Portaria Normativa 194/2025, da Advocacia-Geral da União (AGU)[5], estabelecem diretrizes para que a atuação em processos estruturais seja conduzida de forma coordenada, especializada e, sobretudo, reconhecida no plano interno de suas respectivas carreiras.
Esses atos normativos constituem marcos relevantes para a noção de court management, ao favorecer a implementação e orientar as formas de atuação das instituições e sujeitos processuais vinculados à função essencial à justiça. A relevância é evidente tanto para os membros do Ministério Público quanto para os integrantes da AGU diante de problemas jurídicos e litígios estruturais. Essa prática normativa soma-se à Recomendação 163/2025 do CNJ, já analisada em artigo anterior publicado no JOTA.[6]
Ambos os atos normativos estabelecem a atuação coordenada e específica em processos estruturais por parte dessas instituições. E apontam caminhos para que esses casos deixem de depender apenas do esforço individual de seus membros, passando a ser tratados como prioridade institucional ao disciplinar as formas de atuação interna e externa.
Trata-se de um avanço que também se justifica à luz do princípio da juridicidade, que rege a administração pública e impõe a conformação da atuação institucional não apenas às leis, mas a todo o ordenamento jurídico, o que inclui Regulamentos, Portarias, Resoluções, Recomendações, dentre outros atos normativos.
A importância de atos normativos que disciplinam as técnicas processuais estruturais perante os sujeitos processuais e as funções essenciais à justiça
De um lado, a Recomendação de Caráter Geral 5 do CNMP[7] visa a aprimorar a atuação institucional e a efetividade da tutela dos direitos e interesses sociais pelo Ministério Público.
O ato normativo é motivado pela necessidade de fortalecer a atuação do Ministério Público diante de problemas estruturais, o que exige reorganização institucional ou restruturação de políticas públicas. A recomendação do CNMP prevê uma atuação especial nos processos estruturais nas seguintes áreas: “saúde, infância e juventude, violência contra a mulher, segurança pública, educação, sistema prisional, meio ambiente natural, artificial e do trabalho, consumidor e urbanismo”.
Embora positiva na intenção, essa delimitação apresenta o risco de engessar a classificação de problemas estruturais diante da atuação do Ministério Público. Isso poderia levar à compreensão de que determinados problemas jurídicos não listados na recomendação não seriam considerados estruturais, de modo que não justificariam o uso de técnicas processuais estruturais para sua resolução.
Superada essa ressalva, a recomendação busca orientar os membros do Ministério Público quanto ao chamado “ciclo estrutural de atuação”, que se desenvolve por meio da instauração de procedimentos administrativos estruturais, compostos pelas fases de diagnóstico, plano, execução, monitoramento, revisão e, por fim, encerramento da análise vinculada ao litígio estrutural.
A Recomendação do Ministério Público destaca a consensualidade e a via extrajudicial como pilares da atuação em processos estruturais. Essa é uma premissa necessária e que deve sempre pautar a o uso de técnicas processuais em litígios estruturais.
Nesse sentido, o art. 4º da Recomendação incentiva a elaboração de planos estruturais com participação institucional e comunitária. Já o art. 5º define como prioridade de atuação a via extrajudicial diante de litígios estruturais, em especial, com o emprego de técnicas de mediação, negociação, construção de consensos e compromissos significativos, sem prejuízo da via judicial quando necessária.
A recomendação orienta que o Ministério Público empregue procedimentos administrativos estruturais para viabilizar a implementação local de decisões de alcance nacional ou regional, assegurar transparência e ampla publicidade dos planos estruturais nos portais institucionais e, por fim, adotar – o que o professor Sérgio Cruz Arenhart talvez considere mais importante – indicadores de correição e produtividade compatíveis que considerem a complexidade e o impacto social de cada medida estrutural.
Já a Portaria Normativa AGU 194, de 2025 estabelece as atividades e fluxos entre os órgãos de contencioso e de consultoria da AGU para atuação em processos estruturais que envolvam a União, suas autarquias e fundações públicas. Define como prioridade a prevenção e a resolução consensual desses litígios, com ênfase nos métodos autocompositivos.[8]
Em consonância com outros atos normativos que regulam a atuação do Judiciário, do Ministério Público e da própria Advocacia Pública, reafirma-se a necessidade da via “consensual” como premissa ao trâmite adequado do processo estrutural.
Em relação à Portaria Normativa da AGU, embora seja substancialmente mais extensa que a Recomendação do CNMP, ainda suscita dúvidas quanto à forma de atuação da instituição e abre espaço para uma análise mais minuciosa sobre a condução dos processos estruturais.
Isso porque a Portaria dispõe, no artigo 2°, que as atividades podem ser aplicadas mesmo sem reconhecimento judicial do caráter estrutural do processo, caso sejam identificadas características similares. No entanto, o ato normativo da AGU define como processo estrutural o processo “cujo caráter estrutural tenha sido expressamente reconhecido pelo Poder Judiciário”.
Ao que parece, o caráter estrutural não deve se vincular ao reconhecimento do seu caráter estrutural, sob pena de prejudicar a atuação inclusive do órgão público, pois é possível o reconhecimento do caráter estrutural, inclusive, na fase recursal ou mesmo na fase executiva do processo. Assim, se a AGU atuar estrategicamente apenas após o reconhecimento do caráter estrutural, essa postura tardia pode ser prejudicial à defesa e aos interesses da União.
A atuação da AGU em processos estruturais divide-se em três fases: requisição de subsídios após o reconhecimento judicial, auxílio na elaboração ou modificação do plano estrutural e assistência no monitoramento de sua execução. Em relação aos planos estruturais, a portaria fixa prazos, prevê comunicação com instâncias superiores e define o plano como documento técnico voltado à organização e ao cumprimento eficiente das obrigações.
Ocorre que a Portaria Normativa da AGU indica, em seu início, a consensualidade como prioridade nos processos estruturais, mas, ao longo de seu conteúdo, limita-se a estabelecer procedimentos para cumprimento das decisões judiciais que reconhecem o caráter estrutural da demanda.
Em vez de criar mecanismos institucionais voltados à mediação, negociação ou construção de soluções consensuais para o reconhecimento do caráter estrutural, o ato normativo confere ênfase excessiva à decisão judicial que reconhece o caráter estrutural da demanda, quando esse tipo de processo deveria privilegiar mecanismos consensuais.
Com isso, a atuação da AGU torna-se essencialmente reativa e vinculada ao cumprimento formal das decisões, esvaziando a diretriz inicial de valorização da consensualidade e relegando os métodos autocompositivos a uma menção retórica, sem efetiva tradução prática.
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Afinal, a decisão estrutural não se limita a impor obrigações de fazer ou não fazer, mas envolve a construção de soluções complexas e dialogadas. A via consensual, nesse contexto, assegura a priorização dos interesses de todos os envolvidos — inclusive da própria União —, enquanto a excessiva valorização da decisão judicial meramente dialógica pode gerar falsos diálogos[9] que, em última análise, acabam por contrariar e prejudicar os interesses da União representados judicial e extrajudicialmente pela AGU.
Por fim, recomenda-se que outros sujeitos processuais que desempenham funções essenciais à justiça também editem atos normativos – como recomendações, portarias ou resoluções etc. – para orientar sua atuação em processos estruturais, a exemplo das Defensorias Públicas, das Procuradorias dos Estados e dos Municípios e – por que não – da própria advocacia privada, por intermédio do Conselho Federal da OAB e dos Conselhos Seccionais.
[1] O Futuro dos Processos Estruturais no Brasil. Orgs.: Ricardo de Barros Leonel, João Paulo Lordelo Guimarães Tavares e Luís Eduardo Oteiro Hernandes. Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 29 ago. 2025. Disponível em: https://www.youtube.com/live/ZyqVNVjxZCw?si=e5QQJnbM8xQ2AH58
[2] Brasil. Direito USP. O futuro dos processos estruturais no Brasil reuniu especialistas em torno do projeto em tramitação. 29 ago. 2025. Disponível em: https://direito.usp.br/noticia/35494769117e-o-futuro-dos-processos-estruturais-no-brasil-reuniu-especialistas-em-torno-do-projeto-em-tramitacao-
[3] Brasil. Senado Federal. Projeto de Lei n° 3 de 2025. Disciplina o processo estrutural. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9889342&ts=1753304264858&rendition_principal=S&disposition=inline
[4] Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/recomendacao-de-carater-geral-n-5/cn-de-6-de-agosto-de-2025-646788167
[5] Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-normativa-agu-n-194-de-10-de-setembro-de-2025-654667545
[6] Sobre o tema, ver: DELLÊ, Felipe. ANDREATINI, Lívia Losso. Da decisão à gestão nos processos estruturais: o papel do CNJ na administração judiciária de litígios complexos. Jota. 11/07/2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/da-decisao-a-gestao-nos-processos-estruturais.
[7] Corregedoria Nacional do MP expede recomendação para que o MP brasileiro adote boas práticas para a atuação em processos estruturais. 07 ago. 2025. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/18794-corregedoria-nacional-do-mp-expede-recomendacao-para-que-o-mp-brasileiro-adote-boas-praticas-para-a-atuacao-em-processos-estruturais.
[8] AGU define regras para atuar em processos estruturais no Judiciário. 10 set. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/agu-define-regras-para-atuar-em-processos-estruturais-no-judiciario
[9] Sobre o tema, ver: DELLÊ, Felipe. O objeto do processo constitucional: estudos sobre os princípios da demanda, dispositivo e da congruência no controle de constitucionalidade. In: Revista de Processo, vol. 48, n. 343, versão eletrônica, 2023.