A ineficácia técnica da norma geral antielisiva

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A Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001, alterou o Código Tributário Nacional (CTN) para, dentre outras modificações, inserir um parágrafo único no art. 116 do referido Códex.

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Convencionou-se chamar esse dispositivo de “norma geral antielisiva”, pois permite à autoridade fiscal, por ocasião da expedição do lançamento ou lavratura do auto de infração, desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

A parte final desse dispositivo condiciona essa desconsideração, promovida pela autoridade fiscal, à observância de procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.

Verifica-se então que a eficácia da denominada “norma geral antielisiva” encontra-se subordinada à edição de uma lei ordinária que veicule os procedimentos a serem observados pela autoridade fiscal na desconsideração dos atos ou negócios jurídicos considerados simulados.

Essa condição é denominada pela ciência do direito de “eficácia técnica”.

Segundo ensina Paulo de Barros Carvalho, “diremos ausente a eficácia técnica de uma norma (ineficácia técnico-sintática) quando o preceito normativo não puder juridicizar o evento, inibindo-se o desencadeamento de seus efeitos, tudo (a) pela falta de outras regras de igual ou inferior hierarquia, consoante sua escala hierárquica, ou, (b) pelo contrário, na hipótese de existir no ordenamento outra norma inibidora de sua incidência[1].

O caso do parágrafo único no art. 116 do CTN enquadra-se na situação descrita acima no item “a”. A falta da lei ordinária referida no parágrafo único no art. 116 do CTN implica em ineficácia técnica de todo o preceito, o que impede à autoridade fiscal de desconsiderar validamente atos ou negócios tido por ela como simulados, até que seja editada a referida lei.

Diante dessa situação, questiona-se se tal lei ordinária deveria ser editada, exclusivamente, pela União, ou se Estados, Distrito Federal e Municípios poderiam instituir, per si, os procedimentos para a desconsideração por leis ordinárias estaduais e municipais, de acordo com suas necessidades e visando atender suas peculiaridades.

O art. 116 do CTN é uma norma geral de direito tributário, pois seus enunciados foram veiculados por lei complementar, editada com fundamento no art. 146, inciso III, alínea “b” da Constituição Federal[2]. E sendo norma geral de direito tributário, sua observância deve ser realizada por todos os entes da federação, inclusive a União.

Por sua vez, a lei ordinária referida na parte final do parágrafo único no art. 116 do CTN não é norma geral de direito tributário. Até porque é lei ordinária e não complementar. Logo, verifica-se tratar de uma outorga de competência para as entidades federativas disciplinar o procedimento de desconsideração de atos e negócios jurídicos tidos como simulados para fins tributários.

Nesse sentido, Maria Rita Ferragut[3] afirma que “a legislação complementar ora tratada confere às pessoas políticas competência para a criação de lei ordinária contemplando o procedimento a ser adotado para a desconsideração de atos jurídico dissimulados”. E conclui que “como tal lei ainda não foi criada, a ausência de regulamentação gera a ineficácia técnica de natureza sintática do parágrafo único do art. 116 e, portanto, sua inaplicabilidade”.

Nesse procedimento temos que deverá ser prevista a possibilidade de o contribuinte defender o ato ou negócio jurídico por ele praticado, a fim de demonstrar a inexistência de simulação com vistas a lesar os interesses da arrecadação tributária. Isso levará à instauração de um processo administrativo-tributário e, consequentemente, à imprescindível observância, no processo decisório (desconsiderar ou não o ato ou negócio jurídico), do devido processo legal previsto na Constituição, com todas as garantias dele decorrentes.

Conforme leciona Rodrigo Dalla Pria, “(…) sempre que o sujeito passivo se encontrar na posição de acusado por ilícitos fiscais imputados a ele unilateralmente pelo ente tributante, terá lugar a abertura de processo administrativo-tributário, a ser instaurado sob pleno regime de contraditório e ampla defesa e com todas as garantias inerentes, incluindo: (i) o direito a um julgador tributário natural, imparcial e autônomo; (ii) o direito de ter sua pretensão apreciada por decisão devidamente fundamentada; (iii) o direito ao duplo grau de jurisdição administrativo-tributária; entre outros”[4].

Em consonância com a ideias aqui expostas, o Estado de Santa Catarina editou a lei ordinária nº 13.441/05, acrescendo o art. 20-A à Lei nº 3.938/66, para disciplinar o procedimento de desconsideração de atos ou negócios jurídicos tidos como simulados pelas autoridades fiscais deste Estado-membro.

O § 1º do art. 20-A prescreve que o ato ou negócio jurídico somente poderá ser desconsiderado pela autoridade fazendária se houver procedimento fiscalizatório em curso, mediante representação ao Diretor de Administração Tributária, na qual conste: (i) relatório circunstanciado do ato ou negócio jurídico praticado; (ii) caracterização da simulação constatada; e (iii) elementos de prova.

O § 2º estabelece que o sujeito passivo deverá ser intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, apresentar os esclarecimentos e provas que julgar necessários.

Por fim, o § 3º determina que desconsideração do ato ou negócio jurídico será declarada, se for o caso, em despacho fundamentado do Diretor de Administração Tributária, que deverá acompanhar a Notificação Fiscal.

Para orientar a aplicação desse procedimento, a Gerência de Tributação do Estado de Santa Catarina editou a Nota Técnica n° 008/2012[5], onde, dentre outras considerações, recomenda aos auditores fiscais “prudência, ponderação e absoluta correção técnica, procedendo à desconsideração de ato ou negócio jurídico apenas quando estiver absolutamente seguro da correção do procedimento. Em particular, recomenda-se atenção em relação à interpretação econômica do direito tributário, à prevalência da substância sobre a forma e a exigência de tributo com base na analogia o que é expressamente vedado pelo § 1º do art. 108 do Código Tributário Nacional”.

Ante o exposto, conclui-se que a eficácia do parágrafo único no art. 116 do CTN é condicionada à edição, pelos entes federativos brasileiros, de lei ordinária que estabeleça os procedimentos para a desconsideração pela autoridade fiscal dos atos ou negócios jurídicos considerados simulados para fins tributários, com respeito às garantias processuais constitucionalmente previstas.

Sem a edição dessa lei ordinária, tal desconsideração não é juridicamente válida, tendo em vista a inaplicabilidade do parágrafo único no art. 116 do CTN.

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[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 30. ed. – Sã o Paulo : Saraiva Educação, 2019, p. 126.

[2] Art. 146. Cabe à lei complementar: (…) III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: (…) b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

[3] FERRAGUT, Maria Rita. Responsabilidade tributária. 4ª ed., rev., atual. e ampl. – São Paulo : Noeses, 2020, p. 202-203.

[4] PRIA, Rodrigo Dalla. Direito processual tributário. 2. ed., rev. e atual. – São Paulo : Noeses, 2021, p. 664.

[5] http://legislacao.sef.sc.gov.br/Consulta/Views/Publico/Frame.aspx?x=/html/Notas_tecnicas/frame_notas_tecnicas.htm