A incidência monofásica do imposto seletivo

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Este é o quarto de uma série de artigos sobre o imposto seletivo (IS), em que já analisamos sua materialidade, a extrafiscalidade e os tipos de alíquotas, sempre com enfoque na formatação clássica, delineada nos incisos I a VI do §6º do art. 153 da CF e voltada a modular o consumo de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. 

Como visto nos artigos anteriores, o imposto seletivo clássico é um tributo especial sobre o consumo, voltado aos bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Não tem finalidade arrecadatória, mas sim de induzir comportamentos, de modo a reduzir o consumo desses bens e serviços.  

É um instrumento de política pública, cuja instituição e cobrança deverão observar as boas práticas de governança, com a realização de análises ex ante e ex post.  

Essas avaliações também devem abranger a definição do tipo apropriado de alíquota, que pode ser ad valorem, ad rem, ou uma combinação de ambas, a  depender do bem ou serviço. 

Ademais, para que o novo sistema tributário seja neutro, transparente, simples e equânime, bem como para que não haja o acúmulo de resíduos tributários, é necessário que o desenho do IS, que também impactará as bases de cálculo do IBS e da CBS, preveja a cobrança do imposto na etapa apropriada das cadeias de produção e distribuição. É esse o tema deste quarto artigo. 

A partir da experiência internacional na cobrança do IS, a OCDE constatou que o imposto costuma ser exigido uma única vez sobre o produto sujeito à tributação especial, quando colocado em livre circulação (OECD Consumption Tax Trends 2022).  

Assim, ainda que se considere ocorrido o fato gerador na primeira etapa da cadeia, de produção ou importação, as movimentações do produto são realizadas com suspensão do IS (por exemplo, do estabelecimento produtor para o distribuidor), e controladas por um sistema de entrepostos em que todos os agentes da cadeia são registrados, até que o produto seja liberado para o consumo. Nesses casos, cabe ao agente que colocou o produto em circulação efetuar o recolhimento do IS. 

Conforme obra editada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), de autoria de Victor Thuronyi (Tax Law Design and Drafting, Vol. 1, 1996), a legislação relacionada ao IS deve prever claramente o seu fato gerador, que pode corresponder, por exemplo, à produção ou importação de um bem ou serviço nocivo à saúde ou ao meio ambiente. Entende-se por fato gerador, para esse fim, a ocorrência de todas as condições legais necessárias para que o imposto se torne devido, o que, no caso, corresponde ao ato de produzir ou importar o bem ou serviço nocivo.

Thuronyi destaca, porém, que o momento da ocorrência do fato gerador do IS não necessariamente coincide com o momento da sua exigibilidade. Isso porque, sendo um tributo especial sobre o consumo, pode ser cobrado apenas quando o produto entra em livre circulação, isto é, quando está apto a ser consumido, ou, excepcionalmente, quando registrada uma perda, como, por exemplo, em caso de roubo de cargas sujeitas à tributação especial. Entendemos ter sido essa a linha adotada pela EC 132/23, embora com menos detalhamento. Conforme o inciso VIII do art. 153, o fato gerador do IS corresponde à “produção, extração, comercialização ou importação de bens e  serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”.  

Ainda que se considere ocorrido o fato gerador nos momentos acima referidos, contudo, a cobrança do IS pela União deverá observar a diretriz do inciso II do §6º do mesmo artigo, segundo o qual o imposto “incidirá uma única vez sobre o bem ou serviço”. 

Em outras palavras, a lei complementar, ao detalhar os aspectos da hipótese de incidência do IS, deverá disciplinar o momento de sua exigibilidade com atenção para a cadeia de circulação do bem ou serviço, de modo que a União não cobre o imposto mais de uma vez. 

Essa tarefa do legislador infraconstitucional pode ser mais ou menos complexa, a depender do produto sujeito à tributação especial. A cobrança do IS sobre cigarros, por exemplo, tende a ser mais simples em comparação com outros produtos, pois há poucos produtores e distribuidores, e a cadeia é relativamente linear e bem definida, facilitando a identificação dos pontos de tributação. 

Já em outras situações, a missão será desafiadora, considerando a existência de cadeias intermediárias de produção e que um mesmo produto pode ter diferentes utilizações, conforme exemplos que analisaremos adiante. 

Preocupa ainda mais a incidência na extração, pois o produto extraído pode ser usado como matéria-prima para a produção de bem sujeito ao IS clássico, onerando-o duplamente, ou, pior, esse mesmo produto pode ser insumo de bens destinados à promoção da saúde ou do meio ambiente – mas este é assunto para o nosso próximo e último artigo. 

Diante dessas e outras inquietações, já durante a tramitação da PEC 45/2019 foram apresentadas diversas emendas para evitar a dupla incidência do IS sobre um mesmo produto. Cite-se, por exemplo, a Emenda 44, do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR), que propunha a não cumulatividade do IS, e a Emenda 316, do senador Laércio Oliveira (PP-SE), que previa a apuração monofásica. 

Os pleitos pela não cumulatividade não foram acolhidos na tramitação da PEC 45, mas foi acatada sua incidência monofásica, ainda que essa palavra não tenha sido expressamente utilizada no texto constitucional. São monofásicos os tributos cuja cobrança ocorre em uma única fase da cadeia de produção ou distribuição, ou seja, que são cobrados uma única vez sobre o bem ou serviço, exatamente como previsto no art. 153, §6º, II em relação ao IS. 

E como, afinal, a incidência monofásica do IS pode ser conciliada com os desafios acima mencionados, relacionados às diferentes utilizações de um mesmo produto, às cadeias intermediárias, e à incidência na extração? Em muitos desses pontos, a nosso ver, a experiência internacional pode ser uma ótima referência para a lei complementar do IS. 

Comecemos pelos produtos com diferentes utilizações. Entre os países membros da OCDE, por exemplo, alguns combustíveis derivados do petróleo são tributados pelo IS, para desestimular a sua utilização como fonte de energia para motores.  

O combustível, contudo, nem sempre é utilizado em motores de automóveis e indústrias. Muitas vezes é necessário para cuidar da saúde da  população, como é o caso do óleo combustível de aquecimento, um derivado do petróleo que pode ser utilizado em sistemas de aquecimento residenciais.  

Na Europa, onde os invernos são rigorosos e o aquecimento é questão de saúde pública, o óleo combustível destinado às residências, embora sofra a incidência do IS, fica sujeito a alíquota inferior àquela cobrada sobre os combustíveis utilizados em motores, a exemplo do diesel, por força da Energy Taxation Directive (ETD). A diferença de tributação é significativa: de acordo com a última revisão da ETD, em 2021, os combustíveis fósseis convencionais devem ficar sujeitos a alíquota mínima mais alta, de € 10,75/GJ, quando utilizados em motores, e reduzida, de € 0,9/GJ, quando usados para aquecimento. 

A realidade no Brasil é outra, tanto do ponto de vista climático, como em  relação ao sistema de tributação dos combustíveis, já sujeitos à CIDE prevista na Lei 10.336/01 (CIDE-Combustíveis), que não foi extinta pela EC 132/23. Ainda assim, o exemplo acima, extraído da experiência europeia, é importante por demonstrar que, em alguns casos, a quantificação do IS pode variar de acordo com a destinação do produto sujeito à tributação especial. Para que essa modulação seja possível, o imposto não pode ser cobrado indiscriminadamente já na primeira etapa da cadeia, de produção ou importação, pois, nesse momento, tende a ser inviável definir qual será sua futura utilização. 

Para fins meramente exemplificativos, tomemos como exemplo um produto em relação ao qual não identificamos registros de tributação especial no mundo. Suponhamos, assim, que o Brasil decida cobrar o IS sobre o alumínio, por demandar alto consumo energético em sua produção e reciclagem, e por ser  usado na fabricação de itens que contribuem para o acúmulo de resíduos sólidos  quando não devidamente reciclados, como é o caso das latas para alimentos.  

Nessa hipótese, ao desenhar a política pública, a União deveria considerar que o alumínio tem diferentes utilizações. Desempenha, por exemplo, papel crucial na indústria de construção, em que é utilizado em esquadrias, fachadas de prédios e estruturas de suporte que contribuem para a eficiência energética dos edifícios, graças à sua leveza e capacidade de refletir calor. O alumínio também é usado na fabricação de componentes para veículos e bicicletas, promovendo a mobilidade sustentável por meio da redução do peso dos veículos e, consequentemente, do consumo de combustível e emissões de gases de efeito estufa. 

Tal como no caso real da tributação dos combustíveis fósseis na Europa, portanto, a hipotética cobrança do IS sobre o alumínio demandaria análise cuidadosa para evitar a oneração indevida de produtos que geram benefícios, e não prejuízos, à saúde ou ao meio ambiente, como é o caso das esquadrias e bicicletas. O desenho inadequado da política pública, em situações como essa, desincentivaria o consumo de bons produtos, de forma inversa aos objetivos do art. 153, VIII da CF. 

Suponhamos, em mais um exemplo, que a União decidisse cobrar o IS tanto sobre o alumínio como sobre as latas. Novamente seria desrespeitada a Constituição, pois, na contramão do art. 153, §6º, II, as latas seriam duplamente oneradas pelo imposto, já cobrado em etapa anterior e intermediária da cadeia de produção, correspondente à fabricação do alumínio. 

Em suma, a implementação meticulosa do IS no Brasil é essencial para evitar a dupla oneração de um mesmo bem ou serviço e para evitar efeitos indesejados nas cadeias produtivas, como a cobrança do imposto sobre insumos utilizados na fabricação de bens que promovem a saúde e, ou, o meio ambiente. É necessário, assim, o desenho preciso da política pública em que se insere a cobrança do IS, considerando as particularidades de cada produto e sua cadeia de produção.