“Não podemos criar o que não conseguimos imaginar” é uma conhecida frase da poeta afro-americana Lucille Clifton, mas poderia ter saído da boca de um professor de economia para explicar os desafios de regular o digital. Quando pensamos em plataformas, os aplicativos de mobilidade e as redes sociais possuem naturezas, dinâmicas e estruturas diferentes – uma diversidade que a regulação deve considerar. O que todas têm em comum são dois fatores: dados e ideias.
Dados não são o novo petróleo
Vamos começar pelos dados. Uma das grandes diferenças nos mercados do século 21 está no armazenamento dos dados que resultam das nossas escolhas e características. Não é que antes essas informações não existissem ou não fossem importantes, longe disso, mas com os avanços tecnológicos, hoje há capacidade de coletar, armazenar e processar um volume antes impensável. E isso mudou o jogo. Mudou mercados, criou mercados, alterou empresas e práticas comerciais.
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Charles Jones e Christopher Tonetti, em artigo publicado na American Economic Review em 2020, intitulado “Nonrivalry and the Economics of Data”, ajudam a compreender a economia dos dados. O conceito econômico mais importante – e que faz toda a diferença – é a chamada “não rivalidade”. O que isso significa?
Quando tomamos um sorvete, por exemplo, a rivalidade no consumo existe porque eu não posso tomar o mesmo sorvete que você (você até pode comprar um sorvete igual ao meu, mas não é exatamente o mesmo). Um exemplo na direção oposta pode ajudar: segurança nacional. Dentro do país, o fato de você ser protegida pelas nossas forças armadas não impede que eu também o seja e, portanto, não impacta a minha satisfação em ser protegido. Assim, a segurança nacional é um bem não rival.
A rivalidade pode se manifestar também nos fatores de produção. Quando recruto as horas trabalhadas de alguém, utilizo um computador ou uma máquina, nenhuma outra empresa pode utilizá-los. Mas com os dados, é diferente: as empresas podem utilizar, simultaneamente, os mesmos dados sobre os nossos hábitos e características (por meio, por exemplo, de algoritmos de machine learning) como insumo produtivo.
Essa natureza dos dados traz uma oportunidade: ao, por exemplo, dobrarmos a quantidade de trabalhadores, máquinas e equipamentos utilizados por uma empresa, é possível mais que dobrar a sua produção. Isso é o que os economistas chamam de “retornos crescentes de escala”. O mesmo não ocorre com outros fatores: cada litro adicional de petróleo contribui de maneira decrescente para o crescimento da empresa. E por mais que isso pareça repetitivo falar em pleno 2025, é exatamente por isso que precisamos sempre lembrar: dados não são o novo petróleo. Nunca foram.
Ideias: um conhecimento livre?
Agora vamos falar sobre as ideias. Ideias são conjuntos de instruções utilizadas para produzir um bem econômico, enquanto os dados seriam as demais formas de informação. Por exemplo, o algoritmo que utiliza as nossas informações para oferecer uma experiência diferenciada em um site é uma ideia, ao passo que os seus hábitos de consumo capturados por meio de identificadores digitais são dados.
Ideias também são não rivais e, desde o artigo seminal de Paul Romer, “Endogenous Technological Change”, publicado em 1990 no Journal of Political Economy, a literatura tem estudado o papel das ideias como um dos principais motores do crescimento econômico. Mas há uma esfera importante e que separa, ao menos parcialmente, ideias de dados: podemos excluir quem não queira pagar pelos dados (assim como com um sorvete).
Mas com as ideias é diferente: uma vez disseminadas, a sua utilização não é balizada pelo pagamento por elas. Ou seja, o livro que contém a ideia é excludente, assim como o computador do engenheiro que desenhou um novo processo produtivo, mas uma vez de posse de ambos, a utilização das ideias torna-se livre.
Essa característica das ideias também ajuda a entender debates que marcaram a própria história da internet. Autores como Lawrence Lessig, em Free Culture (2004), e Yochai Benkler, em The Wealth of Networks (2006), mostraram como a circulação livre de conhecimento e cultura sempre foi um motor de inovação e colaboração, reforçando os chamados “retornos crescentes de escala”. Não por acaso, durante anos a sociedade civil reivindicou uma rede mais aberta e colaborativa, na qual o livre fluxo de informações e criações fosse entendido não como ameaça, mas como combustível para crescimento e inclusão social.
E por que tudo isso importa?
Compreender economicamente como funcionam dados e ideias é fundamental para pensar a regulação de plataformas no Brasil. Muitos dos impasses regulatórios decorrem justamente de não sabermos quando estamos lidando com ativos que precisam de controle de acesso e proteção e quando estamos diante de bens cujo valor depende da circulação e recombinação.
No debate sobre dados sensíveis, esse conflito surge quando percebemos que, embora as pessoas não queiram seus dados expostos, muitos aceitariam contribuir com pesquisas para tratamento e prevenção de doenças.
Isso também tem a ver com a discussão sobre direitos autorais no PL 2338/2023 sobre inteligência artificial, em que se discute se ideias extraídas de obras podem ser livremente usadas para treinar algoritmos, sem discutir o que está sendo protegido e o que está sendo circulado.
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No campo concorrencial, ao mesmo tempo em que acesso privilegiado a bases de dados pode reforçar barreiras de entrada, modelos de negócio digitais produzem ganhos coletivos ao permitir a circulação de ideias e que surjam novas atividades a partir dessas plataformas.
No fundo, o que está em jogo é imaginar coletivamente os caminhos da economia digital. Voltando para Lucille Clifton: se só criamos o que conseguimos imaginar, precisamos também garantir que dados e ideias circulem de forma aberta e responsável e, assim, garantir que a imaginação coletiva continue a gerar desenvolvimento e inclusão.