John Stuart Mill escreveu em “Sobre a Liberdade” que, onde há uma classe dominante, a tendência é de que a política criminal seja moldada para atender os interesses dessa classe. Tendo em vista as naturezas institucional e estrutural do racismo no Brasil, podemos dizer que o mesmo acontece com o conflito entre raças neste país.
Esse fato é facilmente constatado quando observamos, por exemplo, que 86% dos mortos em ações policiais no Rio de Janeiro em 2020 são negros. De igual forma, 71% dos reconhecimentos equivocados incriminam erroneamente pessoas negras. Diversos outros estudos e estatísticas revelam que o aparato policial no Brasil atua mediante critérios de seletividade racial. Em outras palavras: em regra, os agentes da segurança pública no Brasil não são antirracistas, para não dizer abertamente que são, de fato, racistas.
Esses números não são coincidência. Pelo fato de o Brasil ser um país muito desigual, existem sentimentos de domínio e subordinação entre indivíduos de diferentes classes, raças e gêneros, de forma que o outro é visto como um rival ou até mesmo como uma ameaça, resultando em uma sociedade em que a desconfiança e o medo permeiam as relações interpessoais.
Policiais e agentes da Justiça no geral não estão imunes a esses sentimentos, porque nascem, crescem e vivem nessa sociedade e, quando iniciam a carreira pública, levam consigo para a prática profissional os ideais racistas que aprenderam ao longo da vida.
Nesse sentido, uma educação desvinculada de preceitos críticos voltados à noção de justiça racial é um dos principais fatores que desencadeiam esse cenário de racismo institucional que caracteriza a segurança pública no Brasil.
Por exemplo: delegados de polícia que, durante a faculdade de Direito, aprenderam somente técnicas para aplicação mecânica e acrítica de normas jurídicas a casos concretos, não compreendem que vivem numa sociedade profundamente hierarquizada, o que os levam a replicar essas hierarquias no combate ao crime, porque nunca se tornaram capazes de entender o Direito como um possível instrumento de emancipação social.
Também, são poucos, ou quase nenhum, os concursos públicos na área policial que cobram disciplinas propedêuticas, como filosofia do Direito, teoria do Direito, sociologia jurídica, entre outras. Dando sempre preferência para disciplinas dogmáticas como direito constitucional, administrativo, penal, entre outras. Isso faz com que as disciplinas propedêuticas sejam classificadas como irrelevantes e o debate sobre justiça racial acabe se mostrando estranho à atividade policial, visto que não se exige de futuros profissionais da segurança que conheçam os fundamentos estruturantes da sociedade que irão proteger.
Como se não bastasse, a educação brasileira é marcada pelo forte apelo ao individualismo liberal, de maneira que as diversas formas de pertencimento à sociedade são irrelevantes para o exercício de direitos fundamentais. Essa visão impede que policiais e guardas municipais tenham conhecimento dos diversos funcionamentos dos mecanismos responsáveis pela reprodução de desigualdades sociais, fazendo com que atuem de maneira a privilegiar o status quo da raça dominante.
Há também uma forma peculiar de racismo que é praticada pela própria política criminal brasileira. A noção de que os crimes patrimoniais e o tráfico de drogas merecem maior reprimenda em relação à delinquência econômica gera como consequência, que secretarias de segurança estaduais estabeleçam como pauta prioritária a repressão de negros e pobres. Afinal, cria-se o conceito de que furtos, roubos e pequenos traficantes merecem maior atenção da polícia em relação a políticos corruptos e empresários sonegadores de impostos, os quais causam um dano coletivo demasiadamente maior do que os primeiros delitos, que atingem interesses puramente individuais.
É como se os agentes da Justiça fossem ensinados apenas sobre o formalismo das leis, cenário que tem como consequência uma maior dificuldade de formação de uma consciência crítica necessária para a construção coletiva de ações transformadoras, até porque a estrutura normativa é repassada para eles como uma forma de funcionamento necessário das relações humanas.
Uma formação antirracista de profissionais da segurança pública vai de encontro com todos esses contextos, porque permite que esses agentes, uma vez investidos em funções públicas de autoridades, baseiem suas condutas no firme propósito de diminuir a marginalização e as desigualdades sociais, levando à superação da espiral de violência e opressão que atualmente entremeia a relação de negros com as forças do Estado.
A consciência antirracista proporciona o papel emancipador da polícia, porque, com ela, policiais irão agir não para se substituírem na função de opressores, mas sim na diminuição das tensões raciais construídas ao longo dos séculos pela sociedade brasileira.