Na sistemática de repercussões gerais (RG) e recursos repetitivos (RR), a seleção dos leading cases, pelo STF e o STJ, é um ato inicial, mas de suma relevância.
É nessa etapa que se inicia a delimitação das questões constitucionais ou infraconstitucionais que serão enfrentadas no futuro precedente. É a partir das características de diversidade e profundidade dos fundamentos e argumentos contidos no caso selecionado que a discussão tributária será definida na decisão de afetação ou no reconhecimento da repercussão geral. Em resumo, na seleção, um núcleo de questões jurídico-tributárias que se repetem em outras demandas é individualizado e pinçado.
Portanto, uma das missões dos leading cases é proporcionar a clara disposição dos limites e características da disputa tributária, reunindo também a contraposição dos fundamentos e argumentos. É no recurso-piloto e em suas contrarrazões que se encontram as primeiríssimas bases para o precedente tributário que será produzido.
A identificação da questão jurídica é essencial para delimitar o que será objeto do precedente e, vale lembrar, também para a correta interpretação do precedente e seu raio de incidência, no momento de aplicação aos demais casos.
Além disso, não é nenhuma novidade que o leading case é peça-chave na produção da decisão com caráter de paradigma, já que será o principal responsável por sustentar e protagonizar a linha interpretativa dos contribuintes em relação àquela tese tributária.
Assim, é inegável que a escolha da causa representativa seja relevante, na medida em que influirá na formação do precedente e no resultado decisório.
Em que pese a importância disso, o ato da seleção dos leading cases em RG / RR ainda aguarda melhorias estruturais.
Como temos chamado atenção enfaticamente, a principal fragilidade é que essa etapa não é totalmente pública[1].
A escolha do caso é orientada segundo critérios legais de representatividade e a abrangência argumentativa. Mas embora a lei processual tenha traçado esses critérios, por outro lado deixou de garantir a plena publicidade para a eleição do recurso representativo.
A seleção vem sendo promovida em geral pelos NUGEPs das Cortes – órgãos com finalidade de gerenciar assuntos relacionados a precedentes -, e não há nesse modelo praticado qualquer participação institucionalizada (por meio de amicus curiae) dos possíveis interessados na temática que será objeto de RG / RR.
No entanto, por envolver o interesse de milhares de contribuintes, é necessário que antes de selecionar os leading cases, a Corte torne a sua pretensão pública a todos. O aviso geral, além de alertar os contribuintes interessados sobre um possível precedente vinculante que se avizinha, estabelecerá, em igualdade de condições, a oportunidade para que cooperem com a Corte na busca e seleção dos casos-pilotos.
Hoje, a publicidade que existe é posterior à escolha, além de ser voltada apenas ao contribuinte do caso eleito e ao MP, que são intimados para ciência de que o processo foi indicado para a condução da matéria.
Considerando que não existe a publicidade geral e prévia, a maioria dos contribuintes não conseguem contribuir para a escolha dos leading cases, pelo simples fato de que não tiveram conhecimento de que a Corte, por meio de seus NUGEPs, cogitava iniciar a sistemática de RG / RR para dado tema que apresentou repetitividade. Quando se tem essa notícia, na maioria das vezes, é tarde, os casos representativos já foram selecionados. Ou quando muito, algum contribuinte pode até ter conseguido de alguma forma influenciar na escolha, mas certamente sem que tenha sido concedida igual oportunidade aos demais interessados.
Se a Corte tem a pretensão de produzir um precedente tributário vinculante sobre certa matéria, é necessário que isso seja divulgado antecipada e amplamente a todos, por meios de variados canais oficiais (site da Corte, ofícios enviados às presidências e vice-presidências dos tribunais “a quo” etc.).
Afinal, é direito dos contribuintes que serão atingidos ter a faculdade de influir também nessa fase inaugural por meio de participação institucionalizada, assim como já ocorre na etapa de julgamento do mérito da tese tributária.
Além de ser um direito, o aumento da participação democrática e igualitária poderá melhorar as próprias seleções, tornando-as mais ricas e dialógicas, bem como amenizando riscos de defeitos formais nos processos pilotos.
É bom lembrar que, no direito inglês, uma das funções desempenhadas pelo amicus curiae, intitulada shepardizing[2], destina-se a mapear casos interessantes ainda desconhecidos pelos julgadores. Função parecida poderia ser exercida na escolha de nossos casos-pilotos em RG / RR, já que as associações ou entidades representativas do segmento econômico atingido poderão catalogar e submeter à Corte um rol de recursos qualificados e que reúnam bom potencial para representar a tese tributária.
Com isso, sendo certa e inquestionável a importância da seleção para a construção do futuro precedente tributário, é urgente que essa etapa seja aprimorada com vistas a torná-la 100% pública, igualitária e democrática.
[1] Temos chamado atenção a esse ponto em nossos trabalhos: LÍSIAS, Andressa Senna. A formação dos precedentes no sistema de recursos repetitivos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 40). E ainda: LÍSIAS, Andressa Paula Senna. Recurso repetitivo e repercussão geral: a função do amicus curiae e a participação dos processos repetidos e sobrestados na formação do precedente. Revista de Processo, v. 337, p. 169-192. São Paulo: Revista dos Tribunais, mar. 2023.
[2] BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 114; KRISLOV, Samuel. The amicus curiae brief: from friendship to advocacy. 72 Yale L. J., p. 695, 1963. Disponível em: https://digitalcommons.law.yale.edu/ylj/vol72/iss4/4. Acesso em: 24 abr. 2024.