A ilegal revogação do Perse pela MP 1202

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Sob o pretexto de equilibrar as contas e alcançar as metas prometidas, no último dia útil de 2023 o governo federal aplicou um duro (e ilegal) golpe nas empresas do setor de eventos (que abarca hotéis, cinemas, restaurantes, agências de turismo, entre outros), cujos efeitos serão surtidos a partir de abril de 2024.

Para quem não acompanhou as temporadas passadas desta série, vamos recapitular os principais pontos.

A pandemia da Covid-19 provocou enormes perdas para diversos setores produtivos. Como a locomoção e aglomerações foram expressamente proibidas (a partir de abril de 2020), empresas do setor de eventos e hotelarias foram severamente afetadas, enfrentando uma crise até então desconhecida.

Passado pouco mais de um ano, em 3 de maio de 2021 foi publicada a Lei 14.148 criando o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), instituindo um conjunto de medidas com o objetivo de socorrer este combalido setor, sendo a medida mais importante a concessão de alíquota zero, durante o prazo de cinco anos, aplicável aos tributos federais (IRPJ/CSLL/PIS/Cofins).

Ao acreditar no socorro tributário conferido pelo governo federal, o empresariado fez suas contas e, verificando que a inexistência dos aludidos tributos federais daria o fôlego necessário para continuar suas atividades e recompor os massivos prejuízos causados pela pandemia, manteve aberto seu estabelecimento, certo de que só voltaria a pagar os tributos federais a partir de 2027 (como ratificado pelo art. 1º da Lei 14.592/2023).

No entanto, como ocorre usualmente nas tramas veiculadas nos cinemas, no meio do caminho (passados pouco mais de 18 meses), o governo decidiu revogar o auxílio do Perse, determinando por meio da MP 1202 de 29 de dezembro de 2023 que os beneficiários voltem a pagar CSLL/PIS/Cofins a partir de abril de 2024, e a cobrança do IRPJ será reestabelecida a partir de janeiro de 2025.

Para quem não é do meio jurídico, a revogação do Perse pode ser configurada como uma “sacanagem” com o setor de eventos, que havia se programado para exercer suas atividades contando com o não pagamento dos tributos. Afinal, para muitos empreendedores deste setor, será inviável manter seu estabelecimento aberto caso tenham que incorrer nestes gastos já em 2024.

Já para quem pertence ao meio jurídico, especialmente o tributário, o predicado conferido à MP é de “ilegalidade”, a qual surtirá mais uma corrida ao Poder Judiciário. Isso porque, ao conferir alíquota zero de IRPJ/CSLL/PIS/Cofins às atividades elencadas pela Receita Federal (cujos CNAEs encontram-se previstos na Portaria ME 11.266/22), a União conferiu as empresas enquadradas no Perse um benefício irrevogável, que jamais poderia ser alterada pela MP.

Conforme prescreve o art. 178 do Código Tributário Nacional, uma isenção que seja concedida por prazo certo e em função de determinadas condições não poderá ser revogada ou modificada por lei. Ao se deparar com o dispositivo, algumas questões vêm de imediato a mente: i) alíquota zero do Perse é considerada uma isenção? ii) o benefício foi conferido por prazo determinado? e iii) o benefício foi concedido em função de determinadas condições? Caso a resposta aos três itens seja positiva, lei (ou MP) jamais poderia revogar o benefício.

O primeiro ponto já foi devidamente sedimentado pelos Tribunais Superiores, havendo o Supremo Tribunal Federal (STF) asseverado desde 2002 que a alíquota zero é equiparada a isenção (REs 350.446, 353.44, 370.680 entre outros). Inclusive, em 2021 o Superior Tribunal de Justiça afastou uma revogação precoce de alíquota zero aplicável ao setor varejista (REsp 1.725.452), situação na qual o governo tentou uma manobra parecida com a da MP 1.202/23 e saiu perdedor, mantendo o STJ a alíquota zero conferida.

Ultrapassado o primeiro ponto (dado que alíquota zero e isenção são equiparadas), o segundo é resolvido sem maiores divagações, dado que a alíquota zero do Perse vigorará pelo prazo de cinco anos, sendo inequívoco se tratar de concessão por prazo determinado.

O terceiro e último requisito consiste na concessão da isenção sob determinadas condições, sendo sedimentado pelo STF na Súmula 544 que “Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas.”. Para que as empresas do setor de eventos possam se beneficiar do Perse, é preciso que cumpram as seguintes condições: i) A empresa deve encontrar-se em atividade em 18.03.2022, exercendo uma das atividades elencadas beneficiárias do Perse; e ii) possuir registro no Cadastur (para as atividades do anexo II da Portaria 11.266/22).

Embora reste inegável que o benefício do Perse somente abarca aqueles que adimpliram as condições, poderia ainda haver dúvida se tal condição seria onerosa, atraindo a aplicação da Súmula STF 544. Neste sentido, o STJ já asseverou em diversas oportunidades que a onerosidade não se restringe a desembolso financeiro, sendo considerada onerosa a isenção (para fins do art. 178 do CTN) estabelecer o ônus de cumprir condições de atuação (como manter determinado número de empregados, aumentar atividade empresarial – REsp 1.845.082 e 627.998).

Sendo assim, a temporada 2024 do Perse deve se iniciar com uma corrida dos beneficiários ao judiciário, buscando, consequentemente à anulação dos efeitos da MP 1202/23 por força da proteção que lhes conferida pelo art. 178 do CTN, manter a alíquota zero até 2027. Afastado o juridiquês, os empresários devem entrar numa briga para garantir o óbvio – que as regras do jogo não podem ser alteradas no meio do primeiro tempo.