A fórmula da insegurança jurídico-regulatória brasileira

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A PEC 45/2019 foi a grande discussão brasileira sobre reformas estruturais nos últimos 12 meses. Na verdade, há 30 anos a reforma tributária é esperada pelo setor produtivo, uma vez que o sistema tributário brasileiro é amplamente conhecido como caro, complexo e caótico, somando um passivo tributário de aproximadamente 75% do PIB no Brasil.

Além do passivo elevado, o Brasil possui uma carga tributária global de aproximadamente 35% do PIB, a 19ª maior carga no mundo. Desse modo, o país compete diretamente com países desenvolvidos quando se refere a tributação, mas competimos com países subdesenvolvidos quando tratamos de retorno dos impostos pagos à população.

Ter um sistema tributário eficiente, simples e barato é condição necessária para o desenvolvimento de longo prazo de qualquer país. O desenvolvimento de uma nação depende de diversos fatores, como capital humano, integração a mercados internacionais, estabilidade fiscal e segurança jurídica-regulatória.

Segundo o World Justice Project, o Brasil encontra-se na posição 139 dentre 142 países quando se trata de segurança regulatória. O índice proposto e acompanhado pelo WJP1 mede basicamente a segurança e estabilidade do país na aplicação de regras propostas, sejam estas legais ou infralegais.

A insegurança vista pelo mundo em relação a respeito a contratos e a aplicabilidade dos normativos brasileiros é muito bem precificada pelo Custo-Brasil, cujo valor total gira em torno de R$ 1,5 trilhões por ano ao setor produtivo brasileiro e custo do ambiente jurídico e regulatório precário chega a R$ 200 bilhões.

Ao somar o Custo Brasil do sistema tributário brasileiro ao ambiente jurídico-regulatório, temos um custo anual próximo de R$ 500 bilhões ao setor produtivo. Isto é, caso o sistema tributário e jurídico-regulatório brasileiro convergisse para a média dos países da OCDE, o PIB brasileiro poderia ter um incremento de R$ 500 bilhões por ano, ou 5 p.p. a mais no seu crescimento.

Ao analisar o peso do Custo Brasil sob a ótica da trajetória de crescimento, o PIB brasileiro passaria de um crescimento médio de 1% a.a. para 4,5% a.a.. Desse modo, nos próximos 20 anos, o Brasil poderia dobrar o seu PIB caso os problemas do sistema tributário e da insegurança jurídico-regulatória fossem resolvidos.

O efeito da reforma tributária no saneamento básico

A aprovação final[2] da PEC 45/2019 no Congresso Nacional trouxe um novo agravante ao ambiente jurídico-regulatório brasileiro, sendo explicito em relação ao setor de saneamento básico.

Na regulação discricionária aumentos na carga tributária são repassados diretamente à tarifa, pois são despesas não gerenciáveis pelo concessionário. Na regulação contratual, essa dinâmica não é tão simples, uma vez que toda alteração de tarifa pressupõe uma aprovação pelo regulador para que a nova tarifa possa ser posta em prática.

A regulação contratual possui como premissa fundamental o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, pactuado em leilão mediante competição pela menor tarifa, maior outorga ou uma combinação entre os dois instrumentos.

A premissa de manutenção do equilíbrio do contrato é fundamental para que os investimentos, normalmente vultosos, possam ser executados e o serviço público seja devidamente ofertado à população, o que é um direito constitucional dos brasileiros.

O Brasil ocupa a terceira pior posição no mundo quando se trata de segurança jurídico-regulatória, segundo o WJP. Os problemas enfrentados pelo setor de saneamento básico são ótimos para retratar o porquê dessa péssima colocação.

Todos os contratos possuem regras de reajuste tarifário para recomposição do poder de compra da tarifa. O reajuste não deveria gerar grandes conflitos, pois o grande tema dessa discussão deveria ser qual o índice a ser aplicado. Após a definição do índice, a regra deveria ser aplicada automaticamente e de forma imperceptível para o regulador, titular ou operador.

Contudo, para o saneamento básico mesmo temas triviais como reajuste inflacionário geram debates colossais, pois há a cultura de não aplicar o reajuste inflacionário pactuado. A problemática envolvida no reajuste tarifário se dá pela politização do setor de saneamento, onde políticos utilizam a tarifa de água como instrumento de suas campanhas, em detrimento da garantia de uma prestação de serviços adequada para a população que o elege, mesmo sendo um direito constitucional do povo brasileiro.

Superado o reajuste, o próximo grande problema refere-se ao reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, ou revisão tarifária extraordinária. Na regulação contratual, o reequilíbrio é garantido ao concessionário quando um evento adverso impacta a estrutura de custos ou receitas da operação, estando este risco alocado ao poder público ou compartilhado entre o privado e o poder público.

Ao analisar a natureza dos eventos adversos ocorridos à luz da matriz de riscos dos contratos, os conceitos de fato do príncipe e fato da administração são inseridos no debate. O fato do príncipe é materializado quando um ato unilateral do poder público tenha impacto direto sobre os contratos. Já o fato da administração se dá quando esse ato unilateral do poder público possui impactos indiretos sobre o contrato.

Com a aprovação final da reforma tributária e a exclusão do setor de saneamento do regime específico e das previsões de alíquotas reduzidas, o setor passará de uma alíquota nominal de PIS/Cofins de 9,25% para algo em torno de 27,5%, dada o último pronunciamento público do Ministro da Fazenda.[3]

A alíquota final ainda será definida por uma das Leis Complementares que deverão ser promulgadas ao longo do ano de 2024. Além da incerteza sobre a própria promulgação das leis regulamentadoras, existe uma preocupação do mercado em relação a alíquota final do IVA brasileiro, que em visões mais pessimistas do mercado poderia chegar a 39% dado o desafio fiscal.

É importante destacar que o Brasil alcançar um sistema tributário não cumulativo, com o regime de IVA sendo amplamente aplicado, é uma vitória para o país, que provavelmente passará a ter um sistema mais simples. Contudo, iniciar o novo sistema assumindo a liderança mundial em tributação por IVA, não parece ser uma vitória a ser comemorada. Em outras palavras, pagamos o maior preço pelo sistema médio mundial.[4]

A Hungria é o país com a maior alíquota de IVA atualmente no mundo, com 27% de alíquota. A alíquota média mundial de IVA é de 19,5%. Ao analisar somente os BRICs, o país com a maior alíquota é a Rússia com 20%, enquanto a média desse grupo é de 17%. Assim, com a reforma tributária, o Brasil iniciará o seu IVA assumindo a primeira colocação mundial de tributação nessa modalidade, com uma alíquota de 27,5% no melhor dos casos ou 39% no pior deles.

Nenhuma majoração de carga tributária é ilesa em relação a economia. No caso do setor de saneamento básico, a alíquota final recém-divulgada pelo Governo, de 27,5%, elevaria a tarifa média de saneamento básico em 25,17%, de forma a manter o equilíbrio dos contratos. Caso o cenário mais pessimista pelo mercado se confirme, de 39%, o aumento na tarifa média seria de 48,77%, coeteris paribus.

De forma clara, a aprovação da reforma tributária gerou um fato do príncipe para todos os 5.570 municípios brasileiros, garantindo um aumento generalizados de tarifas de saneamento básico de pelo menos 25,17%, mas podendo chegar a 48,77%. O Fato do Príncipe causado pela aprovação da reforma tributária, garantiu o maior aumento tarifário generalizado na história do país de uma tarifa de um serviço público.

Além do impacto direto mencionado, todos os custos atrelados a serviços dentro da operação de saneamento podem ser impactados em cascata, configurando um fato da administração.

Os efeitos perversos da reforma tributária sobre o setor de saneamento básico, cujos indicadores de atendimento no Brasil ainda remetem a níveis medievais, com mais de 100 milhões de brasileiros sem acesso a coleta e tratamento de esgoto e mais 30 milhões de brasileiros sem acesso a água tratada, podem ser irreversíveis para diversas cidades brasileiras.

Os processos de reajuste tarifário, que são o “B-A-BA” de qualquer ambiente jurídico-regulatório minimamente respeitável, são um caos e representam um grande problema para os concessionários. Já em relação aos processos de reequilíbrio, o problema é infinitamente maior, uma vez que o Brasil possui mais de 90 agências reguladoras infranacionais, cuja estrutura técnica e administrativa não é homogênea ao longo do território nacional.

O Novo Marco do Saneamento Básico, Lei 14.026/2020, buscou endereçar tanto os níveis medievais de atendimento à população, como a heterogeneidade de estrutura e qualidade técnica das agências infranacionais, ao atribuir à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) a edição de normas de referência para o setor de saneamento básico e a missão de capacitar os reguladores infranacionais.

Nesse sentido, a ANA vem cumprindo o seu trabalho de maneira hercúlea, mantendo a agenda regulatória em dia, destacando-se a qualidade e maturidade dos normativos já publicados ou que já tiveram os seus processos de consulta pública iniciados.

A agência vem atuando incansavelmente para capacitar a sua própria equipe técnica e os reguladores infranacionais, buscando conhecimento de fronteira e profissionais renomados a nível internacional para desenhar e melhor arcabouço regulatório para o setor, sendo o resultado desse esforço observado pela qualidade das suas normas produzidas.

Todo o esforço empregado para garantir a segurança jurídico-regulatória do setor desde a aprovação do novo marco do saneamento será posto a testa a partir de janeiro de 2024, quando poderão emergir as primeiras conversas sobre o primeiro processo de revisão tarifária extraordinária em massa da história do Brasil causado pelos impactos gerados pela aprovação da reforma tributária.

A regulação econômica nunca foi tão importante na história do Brasil, estando agora o país que possui mais de 100 milhões de brasileiros sem acesso a esgoto e que ocupa a terceira pior posição do mundo em ambiente jurídico-regulatório em teste, esperando que não assumamos a liderança invertida em um indicador tão triste.

[1] World Justice Project.

[2] Ainda aguardando sansão presidencial.

[3] Jornal da manhã da Jovem Pan News no dia 18/12/2023.

[4] A avaliação da vantajosidade ou do Custo Benefício dessa mudança legal não é foco do presente texto, podendo ser explorada em trabalhos futuros.