Nos primeiros dias de seu segundo mandato, Donald Trump tomou uma decisão que pode remodelar profundamente a política anticorrupção dos Estados Unidos e afetar o cenário global de compliance empresarial. Um decreto presidencial direcionado ao Departamento de Justiça (DOJ) determinou a mudança de foco na aplicação da Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), a legislação que desde 1977 impede empresas americanas de pagar propina para obter negócios e formalizar contratos no exterior.
Sancionada por Jimmy Carter em função de escândalos empresariais transnacionais dos anos 1970, a FCPA sempre foi vista como um entrave por alguns setores do empresariado norte-americano. Em 2017, Trump já expressava abertamente sua insatisfação com a lei, alegando ser “injusto” que empresas dos EUA não pudessem oferecer ou pagar subornos como suas concorrentes estrangeiras. Essa postura não era apenas retórica.
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Em 2020, seu governo começou a estudar mudanças na legislação, e agora, de volta ao poder, Trump decidiu pôr em prática sua versão da teoria da graxa (Grease the Wheels Theory), desenvolvida por Nathaniel Leff, segundo a qual a corrupção seria boa para os negócios.
Esta concepção, que encanta tantos setores à direita e à esquerda do espectro político, foi mais claramente enunciada por Samuel Huntington, para quem, “em termos de crescimento econômico, a única coisa pior do que uma sociedade com uma burocracia rígida, excessivamente centralizada e desonesta é uma sociedade com uma burocracia rígida, excessivamente centralizada e honesta”.
Sob nova direção, uma nova orientação
Foram dois passos. Um decreto baixado por Trump nos primeiros dias de seu segundo mandato, intitulado pomposamente de Designating Cartels and other Organizations as Foreign Terrorist Organizations and Specially Designated Global Terrorists, alterou drasticamente as prioridades do DOJ.
A nova diretriz estabeleceu que casos de corrupção envolvendo apenas empresas e funcionários públicos estrangeiros não mais seriam prioridades dos procuradores da Divisão Criminal do Departamento de Justiça e das Procuradorias Federais nos estados (U.S. Attorneys). O foco passou a ser a realização de investigações sobre corrupção transnacional associada ao narcotráfico e ao crime organizado.
Um segundo decreto, de 10 de fevereiro de 2025, denominado Pausing Foreign Corrupt Practices Act Enforcement to Further American Economic and National Security foi ainda mais explícito, ordenando aos procuradores americanos que não utilizassem a FCPA, para não prejudicar “os objetivos de política externa” da presidência.
A ordem instruiu a procuradora-geral dos Estados Unidos, Pam Bondi, a interromper novas investigações e ações penais relacionadas à FCPA por um período inicial de 180 dias, durante o qual serão revisadas as diretrizes de sua aplicação. O objetivo de Trump, explicitamente declarado, é promover a competitividade econômica dos Estados Unidos, com isso, supostamente protegendo a segurança nacional.
O argumento do governo norte-americano é de que a aplicação da FCPA prejudicaria as empresas do país em relação a concorrentes estrangeiras e interferiria nas prerrogativas presidenciais de condução da política externa. A ordem permite exceções, caso a procuradora-geral Bondi considere necessário, e prevê a possibilidade de extensão do período de suspensão da lei por mais 180 dias. Após a emissão de novas diretrizes, todas as investigações e ações para cumprimento da FCPA deverão ser especificamente autorizadas pela Procuradoria-Geral.
Aqui já se nota a diferença de arranjos institucionais entre o Ministério Público Federal (DOJ, Criminal Division e os 93 U.S. Attorney Offices) norte-americano, e o brasileiro (MPF). Lá não existe propriamente um MP de carreira, e instruções gerais deste tipo são comuns e se inserem no amplo poder hierárquico que o DOJ detém sobre seus integrantes. Estes, em regra, são nomeados sem concurso público e não gozam das garantias de independência funcional e inamovibilidade que são previstas noutros países, como o nosso.
Outro traço diferencial está no próprio alcance da FCPA. Tal lei prevê a responsabilidade criminal de pessoas jurídicas. No Brasil, tais entes só podem ser processados criminalmente por delitos ambientais.
Consequências da aplicação da teoria da graxa
Na prática, a mudança determinada por Trump libera empresas norte-americanas para corromper autoridades e funcionários públicos estrangeiros sem receio de consequências em sua própria jurisdição, desde que essas operações não envolvam relacionamentos com o terrorismo, a criminalidade organizada ou cartéis de drogas.
Dada a dimensão da economia norte-americana e a quantidade de empresas multinacionais que se sujeitam a essa legislação, a suspensão da FCPA enfraquece severamente os mecanismos de controle que há décadas garantiam maior integridade no comércio exterior e nos negócios internacionais.
Obviamente, as jurisdições locais poderão processar empresas estrangeiras, inclusive as norte-americanas, que cometam corrupção ativa em seus territórios. Esses casos tendem a aumentar, por uma sensação de laissez-faire. O impacto será sentido de maneira mais intensa em países com instituições frágeis, onde a corrupção já é um problema estrutural e onde há baixíssima responsabilização.
O enfraquecimento da fiscalização da FCPA significa, essencialmente, que empresas norte-americanas terão liberdade para operar em um ambiente de subornos, sem medo de sanções de seu próprio governo.
No Brasil, a Lei Anticorrupção Empresarial (Lei 12.846/2013), a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), o Código Penal e a Lei de Lavagem de Dinheiro são os principais veículos da promoção da integridade corporativa. Mas haverá países na África, na América Latina e na Ásia que nem sequer terão um marco normativo equivalente para lidar com essa nova “festa da propina”.
Um passo atrás no regime global contra a corrupção
Pode-se dizer que a FCPA foi um dos principais veículos de consolidação do regime global anticorrupção, que é formado por mecanismos unilaterais e multilaterais e normas de origem nacional, supranacional e internacional, num amálgama de tratados, leis e órgãos que operam de forma coordenada em torno de certos valores universalmente consagrados.
Além das implicações internas e transnacionais da medida, a suspensão da eficácia da FCPA coloca os Estados Unidos em conflito com compromissos internacionais, como os previstos na Convenção Antissuborno da OCDE, concluída em Paris em 1997, da qual o país é signatário. O Working Group on Bribery (WGB) da OCDE monitora a implementação dessa convenção e pode reagir duramente a essa flexibilização da legislação norte-americana, considerando seus impactos sistêmicos, para além do território estadunidense.
A justificativa para essa mudança – a competitividade – não é suficiente para invalidar as obrigações internacionais de enforcement que resultam dos tratados internacionais dos quais os Estados Unidos são partes, como a já mencionada Convenção de Paris de 1997, a Convenção de Mérida de 2003 e os acordos bilaterais de cooperação em matéria penal (MLATs).
Trump argumenta que empresas dos EUA estariam em desvantagem porque concorrentes internacionais poderiam pagar subornos sem restrições. Considerando que as empresas dos 38 Estados Partes da OCDE e da Convenção de Paris de 1997 não estão autorizadas a pagar subornos para obter contratos, o alvo de Trump parece estar nas empresas chinesas que operam nos mercados mundiais de mineração, tecnologia, energia e infraestrutura.
Conclusão
Se essa nova abordagem se consolidar, veremos um enfraquecimento substancial da capacidade dos EUA de liderar iniciativas globais contra a corrupção. Mais do que um retrocesso legislativo, essa decisão sinaliza uma mudança de valores na política externa americana, privilegiando interesses econômicos imediatos em detrimento da ética nos negócios internacionais, da livre concorrência e da integridade corporativa.
Será interessante observar como organismos internacionais e outras potências econômicas reagirão a essa nova realidade. A “festa da propina” anunciada por Trump pode gerar resistências diplomáticas e até retaliações regulatórias. Enquanto isso, empresas e agentes públicos ao redor do mundo devem se preparar para um ambiente onde a corrupção pode se tornar ainda mais presente, o que realça o papel dos departamentos de compliance corporativa num cenário de riscos aumentados.
Ressuscitar a teoria da graxa parece uma boa ideia para um empresário pouco preocupado com as regras do jogo. O slogan de campanha de Donald Trump dizia Make America Great Again, mas suas ações parecem seguir o caminho de Make Accountability Go Away. Uma forma americana de aplicar a Lei do Jeitinho.
Mais do que um contrato vivo, torna-se possível criar um contrato saudável e duradouro.
ARAS, Vladimir. Mecanismos internacionais anticorrupção. In: SALGADO, Daniel de Resende; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de; ARAS, Vladimir (orgs.). Corrupção: aspectos sociológicos, criminológicos e jurídicos. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 129–199.
Huntington, Samuel. Political order in changing societies. New Haven: Yale University Press, 1968.
LEFF, Nathaniel. Economic development through bureaucratic corruption. American Behavioral Scientist, n. 8, p. 8-21, nov. 1964