Como vimos no primeiro artigo desta série, a Emenda Constitucional 132 inseriu, no rol de competências tributárias da União, o imposto seletivo (IS). Ele poderá ser cobrado sobre as extrações, com particularidades que analisaremos em artigo próprio, ou como um clássico imposto sobre consumo. Em sua formatação clássica, delineada nos incisos I a VI do §6º do art. 153 da CF, terá a função de desestimular o consumo de determinados bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
Embora a menção expressa à extrafiscalidade tenha sido suprimida pela Câmara dos Deputados na análise final da PEC 45, para simplificar o texto constitucional, entendemos que essa característica é intrínseca à materialidade do IS.
Isso porque, de acordo com a redação conferida pela EC 132 ao inciso VIII do art. 153 da CF, trata-se de tributo especial sobre o consumo, voltado especificamente aos “bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”. Diferentemente dos impostos de natureza eminentemente arrecadatória, como, por exemplo, o imposto sobre a renda, o imposto predial e territorial urbano e o imposto sobre a propriedade de veículos automotores, que recaem sobre fatos signos presuntivos de riqueza para financiar as despesas gerais do Estado, o constituinte reservou ao seletivo um propósito claro: incidir sobre determinados bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. A intenção, em interpretação sistêmica, é proteger esses valores essenciais, tornando mais oneroso o consumo de bens ou serviços que os prejudiquem.
A materialidade do IS clássico está alinhada às práticas internacionais. Conforme a OCDE, a tributação especial do consumo tem sido cada vez mais utilizada para “influenciar o comportamento do consumidor nos casos em que o consumo de determinados produtos é considerado prejudicial à saúde ou ao meio ambiente” (Consumption Tax Trends, 2022).
Observa também a literatura internacional de referência: o argumento para o uso da tributação a fim de desencorajar atividades socialmente prejudiciais foi apresentado por Arthur Cecil Pigou (The Economics of Welfare, 1920) e desenvolvido principalmente no contexto da política ambiental. Assim, conforme Sijbren Cnossen (Theory and Practice of Excise Taxation, 2005), enquanto o IVA se presta exclusivamente a arrecadar, os impostos seletivos são desenhados com objetivos específicos, extrafiscais, sendo assim discriminatórios na intenção, pois visam modificar o comportamento dos consumidores em relação a produtos específicos.
Ademais, a finalidade extrafiscal do IS foi registrada em documentos relevantes do processo coletivo que marcou a reforma da tributação do consumo no Brasil, com destaque para a Nota Técnica “Reforma do Modelo Brasileiro de Tributação de Bens e Serviços”, do CCIF, em que o imposto foi descrito como “puramente extrafiscal”. Igualmente, no texto original da PEC 45, o art. 154, III, autorizava a União a cobrar “impostos seletivos, com finalidade extrafiscal, destinados a desestimular o consumo de determinados bens, serviços ou direitos”.
Esse tributo sobre o consumo, portanto, não tem o propósito de arrecadar, mas sim o de induzir comportamentos, integrando o conjunto de ferramentas que a Administração pública federal pode utilizar na consecução de suas políticas públicas voltadas à saúde da população e ao meio ambiente. Trata-se de tributo com efeito regulatório, uma típica norma tributária indutora, na definição do professor Luís Eduardo Schoueri (Direito Tributário, 2012, p. 222).
Como instrumento de política pública, o IS ficará sujeito às rigorosas práticas de governança impostas pela Constituição Federal à Administração pública, que incluem estruturas de (i) gestão e governança, (ii) accountability e transparência, e (iii) avaliação e monitoramento (TCU, Referencial de Controle de Benefícios Tributários, 2022). Vejamos.
Por reconhecer a importância do controle das políticas públicas, em 2021 o Congresso Nacional aprovou a EC 109, para incluir o §16 no artigo 37 da CF e determinar que “os órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, devem realizar avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados, na forma da lei”. Antes mesmo desse reconhecimento no texto constitucional, o Decreto nº 9.203/17 já tratava sobre “a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional”.
O Tribunal de Contas da União (TCU) tem se dedicado, há anos, à governança em políticas públicas. Conceitua políticas públicas como “o conjunto de intervenções e diretrizes emanadas de atores governamentais, que visam tratar, ou não, problemas públicos e que requerem, utilizam ou afetam recursos públicos” (Referencial de Controle de Políticas Públicas, 2020).
Para tratar esses problemas, o Estado possui diferentes alternativas de ação, incluindo os tributos extrafiscais, “usados para se alcançar objetivos diferentes da arrecadação de receita pública”, como “desincentivar determinados comportamentos ou o consumo de bens específicos, tornando seu custo maior por meio de um aumento de tributo” (TCU, Referencial de Controle de Incentivos Fiscais, 2022).
É justamente o caso do IS, recém-criado pela EC 132.
De acordo com as boas práticas de governança, identificado um determinado problema público, deve ser iniciada pela Administração a análise ex ante, passando pelas etapas de (i) diagnóstico do problema; (ii) caracterização da política, com seus objetivos, ações, público-alvo e resultados esperados; (iii) desenho da política; (iv) estratégia de construção de confiabilidade e credibilidade; (v) estratégia de implementação; (vi) estratégias de monitoramento, de avaliação e de controle; (vii) análise de custo-benefício; e (viii) impacto orçamentário e financeiro, conforme o Guia Prático de Análise ex ante, publicado em 2018 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em conjunto com a Casa Civil.
A análise ex ante, embora complexa, é de extrema relevância, pois, de acordo com o referido guia do Ipea e da Casa Civil, tem o papel de “orientar a decisão para que ela recaia sobre a alternativa mais efetiva, eficaz e eficiente”.
Todos esses conceitos convergem para concluirmos que a União poderá cobrar o IS somente quando, comprovadamente, estiver diante de um bem ou serviço que cause prejuízos à saúde ou ao meio ambiente, que represente um problema público a ser tratado, e a tributação for a alternativa mais efetiva, eficaz e eficiente para tratá-lo.
Nesse sentido, para que não haja desvio de finalidade na cobrança do IS, sua instituição deve ser precedida de todas as etapas da análise ex ante, com destaque para a identificação do prejuízo à saúde ou ao meio ambiente causado por um determinado bem ou serviço (diagnóstico), preferencialmente fundado em razoável consenso científico.
Ainda previamente à instituição do IS, ressalta-se a importância do adequado desenho da política pública, embasado em estudos que justifiquem o uso da tributação especial como forma de reduzir os malefícios decorrentes do consumo. Esse desenho deve também considerar o estudo da maneira mais apropriada de se quantificar o IS, que deve ser cobrado na exata medida do necessário para que os objetivos da política pública sejam alcançados, pois trata-se de tributo extrafiscal, e não arrecadatório.
Assim, por exemplo, se o problema público a ser enfrentado envolver os malefícios à saúde decorrentes de fumar, uma vez constatada essa situação, deve ser avaliado se o aumento dos preços por meio da tributação é a melhor opção para reduzir o consumo de produtos do fumo, em contraposição ou complementação a alternativas como a conscientização da população. Sendo o IS a melhor alternativa, deve-se ainda calcular como os preços serão afetados para se alcançar a redução de consumo pretendida.
Tão importante quanto a análise ex ante, as políticas públicas, inclusive quando implementadas por meio de instrumentos tributários, devem ser submetidas à análise ex post. Ou seja, é necessário avaliar se os resultados esperados estão sendo alcançados. De acordo com a Casa Civil Presidência da República e outros órgãos federais, como o Ipea, “a análise ex post, ao incorporar técnicas de gerenciamento, permite acessar os pontos críticos de uma política pública, propondo aprimoramentos ou mesmo dizer se tal política deve ser suspensa ou substituída” (Guia Prático de Análise Ex Post, 2018).
Após a instituição do IS, portanto, a manutenção da cobrança e os aspectos quantitativos da incidência devem ser periodicamente revisados, para que o imposto não se distancie da função constitucional de induzir aqueles determinados comportamentos. Esse desvirtuamento prático, a ser constatado pela análise ex post, pode decorrer, por exemplo, do desenho inapropriado da incidência tributária e de mudanças nos hábitos de consumo da população.
Conclui-se, assim, que o IS é um instrumento coadjuvante para a realização de políticas públicas no Brasil, sem intuito arrecadatório, designado à indução de comportamentos mais saudáveis e ecologicamente responsáveis. Sua eficácia, entretanto, está condicionada à rigorosa adesão às práticas de governança pública, que incluem a análise ex ante detalhada e a avaliação ex post periódica.
Assim, a implementação e a manutenção do IS devem ser criteriosas, para assegurar que o tributo permaneça alinhado aos seus objetivos extrafiscais de mitigar o consumo de bens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. A cobrança do IS nesses moldes não apenas reflete uma evolução na política tributária brasileira, mas também se alinha às tendências internacionais de utilizar a tributação como ferramenta para promover um consumo mais consciente e sustentável.