A Lei 10.256/01 reinseriu as contribuições ao Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural) no ordenamento jurídico após a declaração de inconstitucionalidade do art. 1° da Lei 8.540/92, com a redação atualizada até a Lei 9.528/97.
Posteriormente, as contribuições reinseridas pela Lei 10.256/01, tiveram a constitucionalidade analisada pelo STF, respectivamente nos Temas 669, 651 e 281, as quais foram validadas.
Diante desse histórico conflituoso acerca da tributação do setor do agronegócio, haja vista envolver várias peculiaridades e discussões, um tema atual que merece debate é a aplicação ou não do tema 69 à “receita bruta da comercialização” da agroindústria.
Como é de saber, a Suprema Corte ao julgar o Tema 69 definiu o conceito constitucional de “receita bruta” e “faturamento”, sob a ótica do art. 195, I, b da CF/88, assentou dever incidir a tributação apenas sobre grandezas próprias e não de terceiros.
Após o julgamento do Tema 69, em 2021, o STF analisou o Tema 1048, a respeito da exclusão do ICMS da base de cálculo da CPRB. Por ser a CPRB uma contribuição substitutiva, a qual também incide sobre a receita bruta, esperava-se respeito ao precedente vinculante formado no Tema 69 e a aplicação de seus fundamentos.
Entretanto, o Supremo inovou e criou um “novo” conceito de receita bruta para se aplicar à CPRB. Assim, afastou o conceito do art. 195, I, b da Carta Magna e fomentou ainda mais a insegurança jurídica.
Nesse sentido, a respeito da exclusão do ICMS da base de cálculo do Funrural, a discussão cinge em qual dos dois conceitos de receita bruta é o mais adequado para aplicar às contribuições substitutivas da agroindústria, isto é, o conceito do Tema 1048 ou do Tema 69.
Isto posto, a análise deve ser feita considerando o fundamento constitucional da base de cálculo da agroindústria, a discussão no passado que ensejou na declaração de inconstitucionalidade de sua contribuição e o julgamento recente que validou a contribuição novamente inserida pela Lei 10.256/01.
Nesse contexto, um dos primeiros julgados do STF sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo do Funrural de uma agroindústria se deu nos autos do ARE 1346959/PE, em 21/02/2022, na decisão monocrática do ministro Dias Toffoli.
Recentemente, em 26/07/2023, nos autos do RE 1.445.433/PR, o ministro Alexandre de Moraes também proferiu uma decisão monocrática sobre a mesma controvérsia.
As decisões monocráticas, uma de 4 páginas e outra de 11 páginas, demonstram não haver ocorrido um amplo debate e efetivo contraditório acerca da temática.
Oportunamente, antes de adentrar nos comentários a respeito das decisões monocráticas propriamente ditas, ARE 1346959/PE e RE 1.445.433/PR, cabe realizar uma breve introdução relativamente à contribuição ao Funrural da agroindústria e às discussões as quais envolveram suas bases de cálculo para melhor compreensão do tema em questão.
O Funrural, nada mais é do que uma contribuição substitutiva para o setor do agro, na qual, em vez de o produtor rural pagar as tradicionais contribuições incidentes sobre a remuneração e a folha de pagamento, do art. 22, I e II da Lei 8.212/91 (CPP e RAT), substitui esse pagamento por uma alíquota incidente sobre a receita bruta da produção.
Além do Funrural, temos no nosso ordenamento jurídico outras contribuições substitutivas como: simples nacional, equipe de futebol profissional e a CPRB.
No que tange a agroindústria, a qual tem o objeto social a industrialização de produção própria ou a produção própria e adquirida de terceiros, diferentemente dos demais produtores rurais, a sua contribuição sobre a receita bruta da comercialização é obrigatória. Por conseguinte, não há facultatividade para a tributação em folha de pagamento.
Houve dois julgamentos relativos à contribuição da agroindústria, o primeiro foi em 1996, nos autos da ADI 1.103/DF, em que a Corte Maior declarou a inconstitucionalidade da contribuição, por entender ser necessária Lei Complementar, uma vez que não havia na Carta Magna a previsão de tributação incidente sobre o “valor estimado da produção”. O segundo julgamento, em dezembro de 2022, Tema 281 (R.E 611.601), em que foi analisada a constitucionalidade do art. 1° da Lei 10.256/01, que recolocou a agroindústria na condição de contribuinte, inserindo o art. 22-A na Lei de Custeio.
Na oportunidade, foram debatidos 3 (três) pontos e o Supremo entendeu que: (i) a “receita bruta proveniente da comercialização” se insere na acepção do termo “receita bruta” do art. 195, I, b da CF/88; (ii) é possível a cobrança da contribuição substitutiva à folha de pagamento anterior à EC no 42/03, desde a EC 20/98; (iii) ser admissível a utilização da mesma base de cálculo para incidência de múltiplas contribuições sociais.
Desse modo, percebe-se que apenas recentemente foi encerrado o debate acerca da validade das contribuições do setor do agronegócio inseridas pela Lei 10.256/11.
A partir desses pressupostos, na análise das decisões monocráticas, objeto do presente artigo sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo do Funrural, nos autos do ARE 1346959/PE e do RE 1.445.433/PR, os ministros entenderam pela inclusão do ICMS na receita bruta proveniente da comercialização da produção da agroindústria.
Nas duas decisões monocráticas, os ministros Dias Tofolli e Alexandre de Moraes, afastaram as razões de decidir do Tema 69 e aplicaram os fundamentos do julgamento do Tema 1048.
Dentre os fundamentos que legitimaram a inclusão do ICMS na base de cálculo da CPRB são: (i) o caráter de benefício fiscal impede a exclusão do ICMS por ampliar o benefício fiscal, assim como, por ser admitidas apenas as exclusões expressas em lei; (ii) a facultatividade na adoção do regime autoriza a inclusão, pois, ao aderir ao regime, o contribuinte deve aceitar as regras envolvidas; (iii) aplicação do conceito de receita bruta da Lei 12.973/14.
No entanto, existem diversos fundamentos para realizar a distinção entre a CPRB e a contribuição da agroindústria, haja vista a tese consignada no Tema 1048, ter sido aplicada sem as devidas ponderações e sem evidenciar as realidades específicas da tributação do art. 22-A da Lei 8.212/91.
A distinção pode ser iniciada pela exposição de motivos de ambas as leis, a saber, o Funrural foi instituído para incentivar a formalização do emprego no campo, afastar as burocracias trazidas pela tributação da folha de salário, evitar inadimplência pela sazonalidade das receitas no agronegócio e facilitar a atividade fiscalizatória.
Diferentemente, a exposição de motivos da CPRB teve a intenção de combater planejamentos tributários nocivos, tendo em vista o aumento da terceirização que mascarava a relação de emprego. Conseguintemente, houve queda na arrecadação das contribuições previdenciárias, e ao final, os empregados ficavam sem ter de quem cobrar seus direitos, evitando, dessa forma, a relação empresa-empresa.
Sobre o argumento de benefício fiscal, não se aplica ao Funrural, pois a tributação foi transferida para a receita bruta por opção do legislador, com a intenção de aumentar a arrecadação e gerar mais empregos formais. Uma vez que, além de ser mais onerosa a contribuição sobre a receita bruta, nunca foi feito um estudo de impacto orçamentário pela renúncia de receita desse suposto incentivo.
Com relação à facultatividade na adoção do regime, a qual foi uma das justificativas do judiciário para incluir o ICMS na base de cálculo, não se aplica à agroindústria, uma vez que a contribuição sobre a receita bruta é obrigatória e inexiste facultatividade, diferentemente da CPRB que, desde 2015, possui adoção facultativa.
Outrossim, a contribuição da agroindústria, exposta no art. 22-A da Lei 8.212/91, foi inserida pela Lei 10.256/01, devido à declaração de inconstitucionalidade da contribuição pela ADI 1103, haja vista que o termo “receita bruta” ainda não havia sido inserido no nosso ordenamento jurídico à época.
Já a CPRB, que é derivada da MP 540/11, convertida na Lei 12.546/11, apenas foi autorizada no nosso ordenamento jurídico após a EC 42/03, ao introduzir o §13 no art. 195 da Lei Maior, o qual atualmente foi revogado pelo §9° com a EC 103/19.
Compreende-se, portanto, que as razões de decidir do Tema 69 seriam as mais adequadas para se aplicar às agroindústrias, devido à semelhança de base de cálculo com o PIS e a Cofins, e, pelo próprio STF ter se manifestado ao julgar o Tema 281, de modo a afirmar que a “receita bruta proveniente da comercialização” está inserida na acepção do termo “receita bruta” e “faturamento” do art. 195, I, b da Magna Carta.
Por fim, percebe-se que o STF, ao entender pela legitimidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da contribuição ao Funrural, com a aplicação do conceito de receita bruta da Lei 12.973/14, não cumpriu o papel de sua competência, isto é, não interpretou se a constituição autoriza ou não a inclusão do ICMS, mas sim, adentrou na interpretação de leis infraconstitucionais, que é de atribuição do STJ.