A evolução jurisprudencial da dispensa de licitação para empresas estatais

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A dispensa de licitação prevista no art. 24, VIII, da Lei 8.666/93 e, posteriormente, no art. 75, IX, da Lei 14.133/2021, constitui mecanismo jurídico que permite a contratação direta entre entes públicos, suscitando intenso debate doutrinário e jurisprudencial acerca de seu alcance e aplicabilidade.

O dispositivo legal autoriza que pessoas jurídicas de direito público interno adquiram bens ou serviços de órgãos ou entidades integrantes da Administração Pública, criados especificamente para esse fim, observando-se a compatibilidade de preços com o mercado. Contudo, a interpretação dessa prerrogativa legal quando aplicada às empresas públicas e sociedades de economia mista que exploram atividade econômica em regime de concorrência tem gerado posicionamentos divergentes na doutrina e na jurisprudência.

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A tensão entre o dever constitucional de licitar e a possibilidade legal de privilegiar estruturas públicas específicas coloca em evidência dilemas que tocam o núcleo do direito administrativo contemporâneo: como compatibilizar a eficiência da máquina pública com a preservação da livre concorrência e da isonomia entre agentes econômicos?

O presente artigo objetiva analisar criticamente essa evolução interpretativa, examinando os fundamentos das correntes restritiva e extensiva, bem como os precedentes jurisprudenciais que consolidaram uma abordagem teleológica da norma. Mediante análise de decisões judiciais, acórdãos de tribunais de contas e orientações normativas, pretende-se demonstrar a transição paradigmática na aplicação do instituto, identificando os critérios contemporâneos para sua utilização legítima.

A hipótese de dispensa de licitação para contratação entre entes públicos encontrava-se originalmente disciplinada no art. 24, VIII, da Lei 8.666/93, que estabelecia como requisitos: (i) a natureza pública da entidade contratada; (ii) a criação da entidade antes da vigência da Lei de Licitações (20/06/1993); (iii) a finalidade específica de fornecimento de bens ou serviços à Administração; e (iv) a compatibilidade de preços com o mercado.

Com o advento da Lei 14.133/2021, o instituto foi reproduzido no art. 75, IX, mantendo-se a essência dos requisitos, porém sem a exigência expressa de criação anterior à lei. Essa modificação normativa, embora sutil, representa significativa alteração no alcance da dispensa, ampliando potencialmente seu campo de aplicação para entidades constituídas posteriormente ao marco temporal original.

A razão do dispositivo reside na proteção de estruturas públicas concebidas para fornecer insumos ou serviços à própria Administração, mediante contratação direta, preservando sua viabilidade operacional e financeira. Trata-se de reconhecimento legal da especialização funcional de determinados entes públicos na prestação de serviços específicos ao aparelho estatal.

A interpretação restritiva sustenta que a dispensa de licitação somente se aplica às contratações realizadas entre entes públicos voltados à prestação de serviços típicos do Estado ou ao apoio direto à Administração, afastando sua incidência em relação às empresas estatais que atuam em regime concorrencial.

Essa posição, defendida por Marçal Justen Filho (2021, p. 1058-1060), fundamenta-se nos princípios constitucionais da isonomia (art. 5º, caput, CF/88) e da livre concorrência (art. 170, IV, CF/88), em consonância com o tratamento diferenciado previsto no art. 173, §1º, da Constituição Federal para as estatais exploradoras de atividade econômica.

O fundamento teórico reside na necessidade de preservar a igualdade de condições competitivas entre o setor público e privado, evitando a concessão de privilégios contratuais que possam distorcer o mercado. Argumenta-se que autorizar contratações diretas com estatais concorrenciais violaria o princípio da obrigatoriedade da licitação (art. 37, XXI, CF/88) e conferiria vantagem competitiva injustificada a empresas que, embora públicas, operam sob lógica empresarial.

O Tribunal de Contas da União consolidou durante décadas entendimento restritivo, estabelecendo que empresas públicas ou sociedades de economia mista dedicadas à produção de bens, prestação de serviços ou comercialização em regime de competição não poderiam ser contratadas com dispensa fundamentada no art. 24, VIII, da Lei 8.666/93. (Acórdão 2203/2015 – Primeira Câmara, Acórdão 6931/2009 – Primeira Câmara, Acórdão 2063/2005 – Plenário).

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Nesse sentido,  no Acórdão TCU 1.591/2011 – Plenário assinalou que entidades da Administração que também atendem particulares – citando o caso da Cobra Tecnologia S.A., subsidiária do Banco do Brasil – não poderiam beneficiar-se da dispensa do inciso VIII do art. 24 da Lei 8.666/93. A única exceção admitida nesse precedente foi a contratação intraestatal com fundamento em outro dispositivo da Lei 8.666/93 (inciso XXIII do art. 24), aplicável à contratação direta entre empresa controladora e sua subsidiária, observados o preço de mercado e a pertinência do objeto contratual.

A Advocacia-Geral da União, por meio da Orientação Normativa 13/2009, atualizada em 2025 para abranger a Lei 14.133/2021, expressa o entendimento de que empresa pública ou sociedade de economia mista que exerça atividade econômica não se enquadra como órgão ou entidade da Administração para fins da hipótese de dispensa em análise. Com isso, a AGU adere expressamente à linha de interpretação restritiva, que limita a contratação direta apenas a entidades voltadas à prestação de serviços públicos ou de apoio à Administração.

A interpretação restritiva experimentou significativa revisão com o Acórdão 1940/2015 do TCU, que admitiu a viabilidade de contratação direta de instituição financeira oficial para realização do pagamento de salários de servidores, atividade reconhecidamente de caráter mercantil.

O tribunal ponderou que, no setor bancário, a legislação sobre portabilidade dificulta a formação de um ambiente competitivo efetivo, tornando inviável a realização de uma licitação em condições de plena igualdade entre os interessados.

Todavia, condicionou a contratação à demonstração da vantajosidade da contratação direta frente à realização de uma licitação. Esse entendimento representa inflexão importante na jurisprudência do TCU, sinalizando que nem todas as atividades econômicas exercidas por estatais estariam automaticamente excluídas da dispensa, especialmente quando fatores externos comprometem a eficácia da competição ou quando a estatal oferece vantagens específicas à administração.

O leading case da interpretação extensiva consolidou-se com a decisão unânime da 2ª Turma do STF no Mandado de Segurança 34.939/DF (2019), relatado pelo ministro Gilmar Mendes, que anulou acórdão do TCU e reconheceu a legalidade da contratação direta da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos para a execução de serviços de logística.

Na fundamentação, o relator destacou que a ECT havia atendido aos requisitos legais da hipótese de dispensa de licitação e que, embora a atividade de logística não configure serviço exclusivo da União, mantém relação direta com a função postal, justificando regime diferenciado de contratação. Assim, o acórdão estabeleceu que a análise não deveria restringir-se à natureza concorrencial da atividade, mas sim à aderência da estatal à sua missão institucional e ao atendimento das exigências previstas em lei.

A orientação jurisprudencial mais recente, portanto, estabelece critérios específicos para aplicação de uma interpretação extensiva: (i) demonstração de vantajosidade concreta da contratação direta; (ii) observância rigorosa aos requisitos legais formais; (iii) compatibilidade de preços com valores praticados no mercado; (iv) vinculação entre a atividade contratada e a finalidade pública da estatal; e (v) ausência de prejuízo relevante à competição.

O panorama jurisprudencial contemporâneo indica uma tendência de interpretação intermediária, que não libera irrestritamente a dispensa para qualquer estatal concorrencial, mas a reconhece quando justificadamente vantajosa e atendidos os critérios legais. Observa-se transição de interpretação exclusivamente formal para abordagem teleológica, focada na finalidade da norma e no interesse público concreto.

Nessa esteira, é relevante verificar a pertinência entre a atividade contratada e a finalidade pública que justificou a criação da estatal. Isso significa que a contratação direta só se legitimaria quando o objeto do ajuste guardar conexão efetiva com a missão institucional da empresa, tal como definida em lei ou em seu estatuto.

A ausência dessa vinculação descaracteriza a justificativa para a dispensa, pois a estatal passaria a concorrer em áreas alheias à sua finalidade pública, em desigualdade de condições com os agentes privados. Em suma, a relação de pertinência entre objeto e finalidade atua como filtro essencial para assegurar que a dispensa de licitação permaneça dentro dos limites de sua razão jurídica e não se converta em instrumento de favorecimento indevido.

Esse entendimento encontra respaldo na jurisprudência do STF, especialmente no Mandado de Segurança 34.939/DF. Sem se prender à dicotomia entre serviços públicos e atividades econômicas, o Tribunal reconheceu que havia relação direta entre os serviços de logística e a missão institucional dos Correios, voltada à prestação do serviço postal e de atividades correlatas. Por essa razão, ainda que desempenhados em ambiente concorrencial, considerou legítima a dispensa de licitação.

A prática administrativa atual adota, assim, critério de equilíbrio, no qual a licitação continua sendo a regra, mas admite-se a dispensa em favor de estatais, inclusive de atuação econômica, quando comprovada a adequação aos parâmetros legais, demonstrada vantajosidade e preservada compatibilidade de preços com o mercado.

A análise da evolução interpretativa da dispensa de licitação para contratação entre entes públicos revela significativa transformação paradigmática, transitando de interpretação estritamente formal para abordagem teleológica centrada no interesse público concreto.

A jurisprudência do STF e a revisão pontual do TCU construíram entendimento de que a natureza concorrencial da atividade exercida pela estatal não constitui óbice absoluto à aplicação da dispensa, desde que demonstrada a pertinência entre objeto da contratação e finalidade da estatal e a vantajosidade da contratação.

Essa evolução reflete adaptação do direito administrativo às complexidades da estrutura estatal contemporânea, reconhecendo que empresas públicas podem simultaneamente exercer atividades concorrenciais e desempenhar funções de interesse público específico. O critério determinante passou a ser a demonstração concreta de que a contratação direta atende melhor ao interesse público, observados os parâmetros de economicidade e eficiência.

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A nova Lei de Licitações, ao reproduzir o instituto sem algumas restrições formais da legislação anterior, sugere consolidação dessa interpretação mais flexível. Contudo, permanece essencial a observância rigorosa aos requisitos materiais e formais, especialmente a demonstração de vantajosidade e compatibilidade de preços, para evitar distorções no mercado e assegurar a legitimidade das contratações públicas.

A tendência jurisprudencial indica que o futuro da interpretação da dispensa caminhará para análises cada vez mais contextualizadas, privilegiando a finalidade pública da norma sobre critérios exclusivamente formais, sem descuidar das salvaguardas necessárias à preservação da competitividade e transparência nas contratações públicas.