Em decisão precursora proferida pelo ministro Alexandre de Moraes, numa conjuntura de grave ameaça ao Estado democrático de Direito no Brasil, o STF consignou entendimento no sentido de que a dignidade da pessoa humana, a proteção à vida de crianças e adolescentes e a manutenção do Estado democrático de Direito estão acima dos interesses financeiros dos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada.
É urgente, razoável e necessária a definição – legislativa e/ou judicial – dos termos e limites da responsabilidade solidária civil e administrativa das empresas; bem como de eventual responsabilidade penal dos responsáveis por sua administração (Inquérito 4781/DF).
De fato, o grande poder de indução comportamental algorítmica que hoje se concentra nas mãos das big techs tem demandado respostas às mais inquietantes questões de fundo a marcarem a atual era de transformação digital.
A conclamação do eminente ministro do Supremo Tribunal Federal merece ser atendida em todas as suas dimensões, até porque à sua lucidez no comando do processo eleitoral, enquanto presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), se credita a própria preservação do Estado democrático de Direito no Brasil.
Trata-se, na verdade, de uma advertência, sustentada em lúcida e necessária constatação de uma realidade disruptiva, própria a uma era de progressiva virtualização dos espaços de interação humana: a verificação de que a tecnologia não é neutra e não representa uma simples imanência, cujo sentido seria livremente determinável por todos quantos dela fazem uso.
Ao contrário, a tecnologia está permeada de propósitos determinados por quem a detém e a controla, e podemos dizer, inequivocamente, que dois ramos do Poder Judiciário se destacaram em evolução hermenêutica cônscia desta realidade: a Justiça Eleitoral e a Justiça do Trabalho.
Não fosse a escorreita compreensão da Justiça Eleitoral acerca da forma de manipulação de uma sociedade em rede, em prol do atendimento a interesses diversos, notadamente os de ordem política e econômica, restaria impossibilitada a afirmação de marcos regulatórios voltados à preservação do Estado democrático de Direito.
Acaso a jurisprudência da Justiça Eleitoral não tivesse evoluído na compreensão do fenômeno da gamificação do comportamento humano, inerente à inteligência artificial, sucumbiríamos, mais uma vez, a sérias manipulações da democracia, como a notabilizada no escândalo do Facebook e da Cambridge Analytica.
Amadurecimento institucional similar se verificou na Justiça do Trabalho, na qual, até recentemente, imperava uma jurisprudência alheada de conhecimento mais vertical acerca do que representa, verdadeiramente, a plataformização do trabalho humano.
Hoje, contudo, prevalece no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho (TST) entendimento no sentido de que a regência algorítmica do trabalho humano pode representar uma forma de subordinação que se enquadra ao disposto no art. 3º, da CLT, a depender de cada caso concreto. Das 7 Turmas do TST que já julgaram a matéria, 4[1] reconhecem a possibilidade de existência de vínculo de emprego em contexto de trabalho plataformizado.
Tanto a Justiça Eleitoral quanto a Justiça do Trabalho vislumbraram que, sem a afirmação de valores como liberdade, igualdade e trabalho, o processo histórico de significação do mundo fatalmente deixará de ser protagonizado pelo ser humano, sujeitando-se a realidade à livre manipulação por aqueles que hoje detêm o controle algoritimizado do fluxo informacional.
Assim é que, em um jogo controlado por modelos de aprendizagem de máquina, as fake news passam a ser decisivas em processos eleitorais. O consumo passou a ser ditado pela timeline das redes sociais. Os golpes aplicados através de pirâmides financeiras passam a ser exponenciados, notadamente os operacionalizadas através de criptomoedas. O mercado financeiro passa a sofrer inversões financeiras estritamente especulativas, rigidamente controladas por bots de trading. A plataformização do trabalho humano passou a representar uma das formas prevalentes de exploração humana, isso sem qualquer respeito aos direitos sociais.
Não há dúvida de que, com o recente avanço da inteligência artificial substanciada na aprendizagem de máquina, opera-se progressiva ruptura das condições de preservação das relações intersubjetivas de significação do mundo e de hierarquização dos valores que marcam a tradição humana.
A instância ética da semiologia tem cedido lugar a uma relação estritamente objetiva, através da qual o sentido de verdade das proposições passa a ser definido maquinalmente para o homem, enquanto mero receptáculo vazio a acolher conteúdos processados por uma potente lógica computacional. A rede social nudge o comportamento humano. Nas palavras de Zuboff, “novos protocolos automatizados são planejados para influenciar e modificar o comportamento humano em escala da mesma forma que os meios de produção são subordinados a um novo e mais complexo meio de modificação do comportamento”.[2]
Plataformas eletrônicas promovem a gestão do labor humano, em modelos precarizantes desguarnecidos de garantias trabalhistas ou previdenciárias, mas que se sustentam em uma estratégia comunicacional que manipula o discurso do empreendedorismo, algo que pode ser ilustrado, data venia, a partir do equivocado suposto sobre o qual se assenta a admissão da Reclamação Constitucional 64018, no sentido de que “a decisão reclamada, ao reconhecer vínculo de emprego entre o entregador e a plataforma, em um juízo de cognição sumária, parece desconsiderar as conclusões do Supremo Tribunal Federal”.
Na verdade, a relação jurídica apreciada pela Justiça do Trabalho não se deu entre “o entregador e a plataforma”, e sim entre um trabalhador que subsiste realizando serviços de entrega e uma empresa que tem como objeto comercial a exploração de trabalho humano através de plataforma eletrônica.
Plataforma eletrônica não é um ente, mas sim uma tecnologia empregada por uma empresa. Há que se ter cautela com o jogo linguístico. Como bem pontuado por Weizenbaum, os computadores são instrumentos que “moldam a reconstrução imaginativa da realidade pelo homem e, por conseguinte, instruem-no sobre a sua própria realidade”[3].
Imperativo, assim, que os julgamentos afetos ao fenômeno da inteligência artificial não prescindam de homologia no trato ético de uma tecnologia que, independentemente de estar sendo empregada em processos eleitorais ou laborais, encontra-se substanciada numa mesma lógica computacional.
A heurística da deep learning é voltada a uma eficiência monopolística na gestão dos dados. “O ciclo de feedback positivo gerado por quantidades crescentes de dados significa que as indústrias orientadas à IA tendem naturalmente ao monopólio”[4]. No jogo da IA, ganha sempre o mais forte, ou seja, aquele que detém os dados e a gestão algorítmica apta a impor uma colonização de dados através de modelo data driven. Como ponderam Agrawal, Gans & Goldfarb[5], “a IA melhorará inegavelmente a produtividade. O problema não é a geração de riqueza, mas a distribuição”.
Um jargão passa a representar lugar comum na era da IA: “os dados são o novo petróleo”[6]. A geração de riqueza passa a estar intimamente vinculada à capacidade de gerir dados, pois os colonizadores mais eficientes em tal gestão tenderão ao domínio monopolístico. “Com dados abundantes, a predição da máquina pode funcionar bem. A máquina conhece a situação, no sentido que fornece uma boa predição”[7]. Como pontua Harari[8], “a riqueza e o poder poderão se concentrar nas mãos da minúscula elite que é proprietária desses algoritmos todo-poderosos, criando uma desigualdade social e política jamais vista”.
Explicado, assim, o fato de as quatro marcas de empresa mais valiosas do mundo representarem empresas de tecnologia, com desenvolvimento de ponta no uso da IA. Nas palavras de Lee, “a afinidade natural da IA por monopólios levará a uma economia do tipo o vencedor leva tudo”[9].
Tal tecnologia tem sido colocada a serviço de uma progressiva equiparação semiótica entre trabalho e mercadoria, fomentando uma desagregação social que passa a representar a tônica da crise da modernidade.
A forma como está sendo metabolizada socialmente a atual revolução tecnológica está umbilicalmente atrelada ao aumento da informalidade e do subemprego, bem como ao fenômeno da fragmentação das entidades sindicais e das demais instâncias de formatação de consciência de classe ou de categoria, potencializando-se uma autofágica cultura concorrencial entre trabalhadores dispostos a canibalizarem a própria dignidade, na busca de uma sobrevivência abdicada de patamares civilizatórios mínimos.
Adota-se o discurso pelo qual sobreleva-se a importância da rede de comunicação virtual ou de conexão empresarial como algo a ser protegido para além do trabalho humano, por estas redes instrumentalizado.
Vivenciamos um momento de confluência histórica do movimento de recrudescimento das fronteiras à dialeticidade interpessoal, contraditoriamente antagonizada com a progressiva liberalidade na circulação de capitais (mercado globalizado) e dos dados informacionais (conectividade virtual), numa patente prevalência da instrumentalidade sobre a essencialidade, foço semiótico marcado pela sobreposição da significação poiética do mundo, em detrimento à significação ética, o que tem potencializado a desestruturação do enlace societário e a disfuncionalidade das instituições e do próprio Estado democrático de Direito.
Assim se delineia a conjuntura na qual o STF afeta ao plenário o julgamento de uma Reclamação Constitucional que tratará muito mais do que a autoridade dos julgados referidos na decisão interlocutória (ADC 48, ADPF 324, RE 958.252, ADI 5835 e RE 688.223). Tratará sim, ao fim e ao cabo, das condições de preservação da autoridade dos próprios julgamentos da corte que, em contenção às ameaças ao Estado democrático de Direito, bem reconheceu o poder de indução comportamental inerente à tecnologia de inteligência artificial.
[1] 2ª Turma (Processo RR-536-45.2021.5.09.0892; 3ª Turma (Processo RR – 100353-02.2017.5.01.0066); 6ª Turma (Processo RR-10502-34.2021.5.03.0137); 8ª Turma (RRAg-100853-94.2019.5.01.0067
[2] Zuboff, S. (2020). A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intríseca. (Zuboff, 2020, p. 31)
[3] Weizenbaun, J. (1976). O Poder do Computador e a Razão Humana. Rio de Janeiro: Edições 70. (Weizenbaun, 1976, p. 174).
[4] Lee, K.-F. (2019). Inteligência Artificial. Como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos, nos relacionamos, trabalhamos e vivemos. Rio de Janeiro: Globo.
[5] Agrawal, A., Gans, J., & Goldfarb, A. (2019). Máquinas Preditivas: A Simples Economia da Inteligência Artificial. (W. Campos, Trad.) Rio de Janeiro: Alta Books. (Agrawal, Gans, & Goldfarb, 2019, p. 224).
[6] Loureiro, R. (2018). Os dados são o novo petróleo. Fonte: Istoé Dinheiro: <https://www.istoedinheiro.com.br/os-dados-sao-o-novo-petroleo/>.
[7] Agrawal, A., Gans, J., & Goldfarb, A. (2019). Máquinas Preditivas: A Simples Economia da Inteligência Artificial. (W. Campos, Trad.) Rio de Janeiro: Alta Books.
[8] Harari, Y. N. (2016). Homo Deus. Uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras.
[9] Lee, K.-F. (2019). Inteligência Artificial. Como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos, nos relacionamos, trabalhamos e vivemos. Rio de Janeiro: Globo.
Delgado, M. G. (2023). Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: JusPodivm.
Dupuy, J.-P. (2011). O tempo das catástrofes: quando o impossível é uma certeza. São Paulo: É Realizações.
Gadamer, H.-G. (2012). Hermenêutica em Retrospectiva. Rio de Janeiro: Vozes.
Han, B.-C. (2022). Infocracia: Digitalização e crise da Democracia. Rio de Janeiro: Vozes.
Hoffmann-Riem, W. (2021). Teoria Geral do Direito Digital. Rio de Janeiro: Forense.
Lima Vaz, H. C. (2000). Escritos de Filosofia. Introdução à Ética Filosófica II. São Paulo: Loyola.
Pezzoti, R. (2020). Amazon é a marca mais valiosa do mundo; Microsoft passa Google em ranking. Fonte: uol: <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/06/30/amazon-e-a-marca-mais-valiosa-do-mundo-microsoft-passa-google-em-lista.htm
Polya, G. (1995). A arte de resolver problemas: um novo aspecto do método matemático. Rio de Janeiro: Interciência.
Sejnowski, T. J. (2019). A Revolução do Aprendizado Profundo (1a ed.). (C. Gaio, Trad.) Rio de Janeiro: Alta Books.