A esperança que temos no sistema de justiça multiportas

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O ano caminha pro final e o desejo inerente, ainda que silente de palavras, é de esperança para a próxima temporada. Mergulhada nesse anseio, vasculhei os meus estudos do ano, alguns escritos e outros não, e tenho que a esperança mora na adesão definitiva à ideia de adequação do sistema processual brasileiro aos métodos adequados de solução de conflitos, em substituição ao obsoleto termo “meios alternativos”.

Explica-se. A atividade jurisdicional estatal, além de não ser a única, não deve ser vista como a mais importante para a solução da lide. Cada litígio deve ser submetido à forma mais adequada para a sua solução, trazendo para este cenário a consensualidade e o cidadão como ator na resolução do conflito[1]. Em razão das múltiplas opções para a resolução da lide, cunhou a doutrina do professor Frank Sander, da Faculdade de Direito de Harvard, de chamá-lo de sistema de justiça multiportas, onde convivem algumas formas de solução dos conflitos.

O termo multiportas deve-se a uma metáfora: “como se houvesse, no átrio do fórum, várias portas; a depender do problema apresentado, as partes seriam encaminhadas para a porta da mediação, ou da conciliação (autocomposição), ou da arbitragem (heterocomposição), ou da própria justiça estatal”[2].

O art. 3º do Código de Processo Civil (CPC/15) traz a importância e a garantia dada aos métodos adequados à solução consensual dos conflitos[3]. Tratando-se de autocomposição, as partes podem resolver a lide de forma espontânea, como ocorre na transação, no reconhecimento jurídico do pedido e renúncia do direito, ou de forma estimulada, cabendo aqui a conciliação e a mediação[4]. O CPC/15, no lugar de fomentar a cultura do litígio, buscou incentivar o diálogo e a autocomposição, ao traçar um sistema em que a participação inicial do réu no processo deixa de ser litigiosa, quando ele oferecia a contestação para defesa, para ser voltada ao diálogo[5]. A superação da alcunha ‘alternativos’ para ‘adequados’ fundamenta-se na integração desses métodos dentro do modelo de justiça multiportas, de modo que o “Judiciário deixa de ser um lugar de julgamento apenas para ser um local de resolução de disputas. Trata-se de uma importante mudança paradigmática”[6].

Em elogiável e honrosa iniciativa, em fevereiro de 2022, por meio do Ato Conjunto dos Presidentes do Senado Federal e do STF nº 1, foi instituída a Comissão de Juristas, sob a presidência da ministra Regina Helena Costa, responsável pela elaboração de anteprojetos de proposições legislativas visando a reforma do processo administrativo e do processo tributário brasileiro, esta sob a liderança do professor Marcus Lívio Gomes, propondo normas que incentivam a solução consensual de conflitos em matéria tributária, a redução do contencioso tributário, a desjudicialização, a diminuição da litigiosidade entre fisco e contribuintes, a simplificação de processos e a composição entre as partes. As proposições legislativas seguem em trâmite no Senado Federal.

No mês passado, foi lançada em Brasília a coletânea A Reforma do Processo Tributário, reunindo estudos sobre os projetos de lei apresentados pela Comissão de Juristas. Em trecho citado no volume que aborda a Arbitragem e Mediação em Matéria Tributária menciono a edição da Recomendação CNJ 120/2021 que indica aos magistrados com atuação em demandas que envolvem direito tributário que priorizem, sempre que possível, a solução consensual da controvérsia, estimulando a negociação, a conciliação, a mediação ou a transação tributária, extensível, inclusive, à seara extrajudicial.

A prática da justiça multiportas desponta em diversas iniciativas, como revela o anúncio feito no último dia 8 pela Advocacia-Geral da União (AGU) da criação da Rede Sim de Mediação e Negociação Pública[7], projeto que objetiva a capacitação e fomento de iniciativas visando o fortalecimento da mediação e da negociação no âmbito da Administração Pública.

Também neste mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o julgamento do Tema 1184 – limites para ajuizamento de execuções fiscais, oportunidade em que discutiu outras portas de acesso à justiça, antes da busca pelo Poder Judiciário. Como explicou o procurador da Fazenda Nacional Paulo Mendes de Oliveira, é necessário responder ao questionamento se, antes do ajuizamento da execução fiscal, deveriam os credores buscar soluções mais eficientes (adequadas) para a cobrança das dívidas, como o protesto, conciliação e mediação. Eis aqui outra perspectiva advinda do sistema de justiça multiportas.

Indo adiante, sem esquecer que precisamos continuar pesquisando modelos de aprimoramento do sistema pátrio aptos a reduzir a litigiosidade em matéria tributária e, ao mesmo tempo, assegurar os direitos estabelecidos na Constituição Federal, os precedentes vinculantes em matéria tributária despontam, também, como aliados ao processo de redução da alta litigiosidade tributária quando, e se, bem empregados, desde o processo de formação nos Tribunais Superiores, até a aplicação no âmbito do processo administrativo tributário.

Humberto Ávila tem razão ao dizer que a segurança jurídica em sua dimensão dinâmica requer a preocupação com a ação no tempo, a permitir que o cidadão possa, sem frustração, assegurar, no futuro, os efeitos jurídicos da liberdade exercida no passado[8] – problemática essa que certamente desafia a aplicação das decisões definitivas vinculantes, os chamados precedentes vinculantes, que vieram importados do sistema da Common law e agora “lutam” pela sua admissão dentro da nossa civil law.

Assim, sem a pretensão de pensar que há uma solução simples e única para a implementação do sistema de precedentes, aspecto importante é a compreensão de que o modelo de precedentes foi aprimorado por meio do CPC/15 objetivando que demandas repetitivas e idênticas possam ter soluções mais céleres e eficientes. Outro efeito pretendido é o desencorajamento do ajuizamento de ações judiciais que tenham entendimento firmado de forma desfavorável ao postulante, atribuindo caráter vinculante principalmente aos julgamentos proferidos pelas Cortes Superiores – Superior Tribunal de Justiça, em sede de recursos repetitivos e Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral.

Concluindo, quisera eu, dentro uma quimera, dizer que a solução estaria no processo administrativo fiscal; mas, fato é que não está. A esperança, pra mim, é vocábulo que não condiz com a satisfação unilateral dos envolvidos. É mais do que isso, a lembrança que estamos todos afetos, em ônus e bônus, ao mesmo sistema vigente, ideia essa que condiz com os pilares do sistema de justiça multiportas.

[1] FONSECA, Rafael Campos Soares da. Sistema multiportas no Novo Código Civil e a crise da execução fiscal. In: BUISSA, Leonardo e BEVILACQUA, Lucas (Coord). Processo Tributário. 2. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 125.

[2] CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 894.

[3] GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios. Curso de direito processual civil, vol. 1. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 318.

[4] MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil: teoria do processo civil, volume 1 [livro eletrônico]. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters do Brasil, 2020, p. 237.

[5] OLIVEIRA, Ana Claudia Borges de. Da Possibilidade de Rejeição de Mediador Indicado pela Fazenda Pública Federal. In: COSTA, Regina Helena et al (Coord.). Arbitragem e Mediação em Matéria Tributária. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2023, p. 539-552.

[6] CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 13ª ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 637.

[7] AGU anuncia criação de rede de mediação e negociação na Administração Pública — Advocacia-Geral da União (www.gov.br)

[8] ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 4. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 357.