A primeira Defensor Legis do ano recorda o propósito deste espaço: mais do que a divulgação do trabalho, das discussões e teses envolvendo o Poder Legislativo, a partir de uma ótica interna, a coluna almeja fomentar o novo olhar sobre o papel e a importância das legislaturas como lugar para o debate dos diferentes interesses e visões sobre o que é melhor para a sociedade.
Mesmo com suas disfunções, as Casas Legislativas têm importância vital nos sistemas político-democráticos e no constitucionalismo. Daí a questão trazida na coluna de hoje: a curadoria das leis e o reconhecimento da capacidade judiciária e dos órgãos de representação judicial do Poder Legislativo.
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No final de 2023, observou-se uma ampla cobertura sobre a PEC 8/2021, que propõe alterar a Constituição para dispor sobre os pedidos de vista, declaração de inconstitucionalidade e concessão de medidas cautelares nos tribunais.
Aprovada no plenário do Senado no último dia 23 de novembro, a PEC pretende, em resumo:
1) fixar um prazo de até seis meses para o julgamento de ações com pedido de medida cautelar deferido;
2) determinar a observância da cláusula de reserva de plenário para a concessão de medida cautelar que: a) suspende a eficácia de lei ou ato do presidente da República, do Senado, da Câmara ou do Congresso; b) suspende a tramitação de proposição legislativa que viole as normas constitucionais do devido processo legislativo; ou c) afete políticas públicas ou crie despesas para qualquer poder;
e 3) limitar a possibilidade de decisões monocráticas só ao presidente do STF e unicamente em relação aos pedidos de medida cautelar formulados durante o recesso, no caso de grave urgência ou perigo de dano irreparável, com prazo de 30 dias corridos para seu referendo, contados após o reinício dos trabalhos judiciários, sob pena de perda de eficácia da decisão concedida.
Dos diversos textos publicados sobre a PEC 8/2021, acabou passando desapercebida dos comentários a nova redação que se pretende dar ao art. 103, § 3º, e a inclusão do § 3º-A no mesmo artigo, frutos da Emenda nº 1 de Plenário, apresentada pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Convém entender bem a problemática que a “emenda Pacheco” pretende sanar.
Nos termos da redação original da CF, art. 103, § 3º, quando o STF apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o advogado-geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado. O texto constitucional não prevê limites ou exceções.
Quanto ao alcance de tal competência, o STF entendeu que o dispositivo não se aplica às ações em que se questiona a omissão (ADI 23-QO), que é irrelevante a natureza federal ou estadual da lei ou ato normativo impugnado (a CF não fez distinções e o AGU atua em ambos os casos) e que não existe contradição entre o exercício da função do AGU nos termos do art. 131 da CF e sua atuação como “curador especial”, em atendimento ao princípio da presunção de constitucionalidade de que gozam as normas. Foi o que restou assentado na ADI 97-QO julgada em 1989.
O relator desse julgado, o ministro Moreira Alves, pontuou que essa função especial do AGU (em defender a constitucionalidade do ato impugnado de modo ineludível) é diferente do papel do procurador-geral da República, cuja missão é zelar pela observância da Constituição. Justificando a previsão constitucional, afirmou: “(…) houve por bem a Constituição atual dar esse curador especial à presunção de constitucionalidade do ato normativo impugnado porque, não raras vezes, o legitimado passivamente não assume a defesa da constitucionalidade desse ato, adstringindo-se a prestar informações objetivas de andamento do processo de sua elaboração, ou – o que, vez por outra, ocorre – se desinteressa de sua defesa, ou, até, sustenta sua inconstitucionalidade, por motivos políticos de mudança de governo”.
O entendimento de que a defesa do ato normativo pelo AGU é indeclinável foi reafirmado na ADI 72-QO. Nesses primeiros anos após a promulgação da Constituição, não era dado ao AGU argumentar pela procedência da ação direta.
Mas já naquela época Gilmar Ferreira Mendes – em seu Controle de Constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos (1990, p. 260-261) – entendia haver nisso uma ofensa a um dever de fidelidade à Constituição. Na sua visão, nos casos em que o presidente da República for o autor da ação direta, caberia ao AGU demonstrar a inconstitucionalidade, não o contrário. Exigir que o AGU defenda ato manifestamente inconstitucional implicaria reconhecer que a Constituição teria instituído, nas suas palavras, a “Advocacia da Inconstitucionalidade”.
Seja como for, como explicado acima, a literalidade do art. 103, § 3º, da CF, não deixou qualquer brecha para que o AGU se abstenha de defender a constitucionalidade do ato normativo impugnado. No entanto, a jurisprudência do STF acabou cedendo, e criou exceções que desobrigam o AGU desse dever.
Em 2001, por ocasião da ADI 1.616, sob a relatoria do ministro Maurício Correa, a corte assentou que: “O múnus a que se refere o imperativo constitucional (CF, artigo 103, § 3º) deve ser entendido com temperamentos. O advogado-geral da União não está obrigado a defender tese jurídica se sobre ela esta corte já fixou entendimento pela sua inconstitucionalidade”.
A lógica subjacente ao novo entendimento é que a iterativa jurisprudência do STF ilidiria a presunção de constitucionalidade a ser defendida. Trata-se da suposição de que a discussão anterior já teria esgotado os argumentos possíveis, dada a causa de pedir aberta nos processos de controle concentrado (e a conjectura de que o debate foi exaustivo).
Desde então, por criação jurisprudencial, reduziu-se o alcance do art. 103, § 3º, da CF, e o AGU ficou desobrigado da defesa de ato normativo com conteúdo contrário a entendimento já assentado pelo STF. Tal entendimento foi reafirmado na ADI 3.916, de 2010. Vez ou outra até aparecem alguns acórdãos em sentido contrário, como as ADIs 1.254-AgR, 3.413, e, mais recentemente, 4.667. Mas, na prática, os diversos AGUs vêm considerando o julgamento da ADI 1.616, que relativizou a curadoria das normas.
Mantendo que essa é a melhor orientação, Martins e Mendes afirmam: “(…) sustentar a obrigatoriedade de defesa do ato impugnado, em havendo decisão anterior da Suprema Corte cujos fundamentos determinantes indicam a ilegitimidade do ato impugnado, implicaria admitir a existência de um ‘Advogado da Inconstitucionalidade’. Essa anomalia institucional é rigorosamente incompatível com os imperativos, a natureza e os efeitos da decisão típica do controle abstrato de normas – contrariando, de resto, o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais”.[1]
Entretanto, existe um contraponto: mesmo em se tratando de um processo objetivo, é necessário o contraditório. O ato normativo impugnado não pode ficar sem defesa. Se se reputa uma “anomalia institucional” que caiba ao AGU a defesa inquestionável da lei ou ato impugnado em todos os casos, então convém atribuir essa obrigação aos próprios órgãos ou entidades responsáveis pela edição do ato. Foi isso que pretendeu a “emenda Pacheco” à PEC 8/2021.
No caso do Congresso Nacional, a tal defesa será exercida pelos órgãos próprios de assessoramento e representação judiciais de suas Casas (§ 3º-A).
Passados mais de 35 anos da edição da Constituição, já não persistem as condições de precariedade mencionadas pelo ministro Moreira Alves no julgamento da ADI 97-QO acima mencionada para justificar a atuação do AGU. As Casas Legislativas institucionalizaram seus órgãos de representação judicial. A Advocacia do Senado Federal existe desde 1994. A Advocacia da Câmara dos Deputados foi criada em 2021.
Tal providência atende à necessidade de salvaguardar os interesses e as prerrogativas institucionais do Poder Legislativo. Queira-se ou não, sem desmerecer o seu mister, o AGU mantém uma relação funcional e hierárquica direta com o presidente da República, o que, como afirmado na justificação da emenda Pacheco, “inviabiliza que referida autoridade desempenhe o papel de curador da lei com a isenção e a independência funcional necessárias”.
De fato, como se acaba de explicar, já são inúmeros os casos em que o AGU se manifesta pela inconstitucionalidade do ato impugnado. Na ADI 4.424 contra a Lei Maria da Penha, por exemplo, a AGU pediu a interpretação conforme. Nas ADIs 7.047 e 7.064, sobre as ECs 113 e 114/2021 (precatórios), a AGU defendeu a inconstitucionalidade das emendas. Há inúmeras situações de claro conflito de interesses entre os Poderes Executivo e Legislativo, como por exemplo as discussões sobre a reeleição das Mesas das Casas Legislativas, da CPI da Pandemia, das emendas RP9 etc.
Nesse contexto, não faz sentido que o papel de curador da lei ou ato normativo seja exercido pelo AGU, sobretudo quando os órgãos que editaram a medida estão em posição preferencial para fazê-lo e sem o potencial conflito de interesses que o AGU poderia ter.
A atuação das Casas Legislativas na curadoria da lei se trata de imperativo com base na própria separação dos Poderes (art. 2º da CF). Nenhuma outra instituição além da que emanou a lei terá melhores condições para a sua defesa, por intermédio dos seus órgãos de assessoramento jurídico e de representação judicial.
Inclusive, vale recordar que o STF já reconheceu que é constitucional a instituição de órgãos, funções ou carreiras especiais voltadas à consultoria e assessoramento jurídicos do Poder Legislativo. Nesse sentido, por exemplo, confiram-se as ADIs 1.557 (criação da Procuradoria-Geral da Câmara Legislativa do Distrito Federal), e 825 (previsão da Procuradoria da Assembleia Legislativa do Amapá). Mais recentemente, a discussão foi objeto da ADI 6.433, da relatoria do ministro Gilmar Mendes.
Ocorre que a redação da tese firmada nesse último julgamento acabou restringindo demasiadamente a atuação dos órgãos jurídicos, pois limitou-os à representação judicial aos próprios entes despersonalizados nas hipóteses em que necessitem praticar em juízo, em nome próprio, atos processuais na defesa de sua autonomia, prerrogativas e independência face aos demais Poderes.
Ora, mas não é somente contra outros Poderes que a Casa Legislativa pode precisar litigar para garantir seus direitos institucionais. Para isso, pode implicar acionar órgãos independentes (como o Ministério Público, a Defensoria Pública ou o Tribunal de Contas), outro ente federado, pessoas jurídicas de direito privado ou mesmo indivíduos. Esse escopo foi reconhecido, em parte, na ADI 2.820-ED, envolvendo a Assembleia Legislativa do Espírito Santo.
Além disso, é equivocado limitar a representação judicial dos advogados e procuradores legislativos só à própria Casa Legislativa (como um todo), deixando de fora seus órgãos fracionários e internos de administração, como sua Mesa, diretorias, secretarias ou as CPIs.
E mais. Cada vez aumenta a demanda para que os órgãos de representação judicial das Casas Legislativas atuem, também, na defesa dos seus membros e servidores, quanto aos atos relacionados ao exercício do mandato ou de suas atribuições constitucionais, legais ou regulamentares.
Vale registrar que a Advocacia do Senado Federal tem tais funções atribuídas expressamente nos termos do art. 205 do Regulamento Administrativo do Senado Federal. É o que pavimenta juridicamente sua atuação para representar os parlamentares em causas envolvendo imunidade parlamentar (defesa de suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato, desbloqueio de perfis em redes sociais, diligências de busca e apreensão etc.).
Tudo isso, sem contar a possibilidade de representação extrajudicial por parte do órgão jurídico vinculado ao Legislativo. Não há por que impedir essa possibilidade.
Vale registrar que competência semelhante também está prevista no âmbito da AGU, conforme o art. 22 da Lei 9.028/1996, que igualmente prevê a representação judicial dos agentes públicos pela AGU e seus órgãos vinculados, nas respectivas áreas de atuação. Inclusive, o tema está disciplinado na Portaria AGU 428, de 28 de agosto de 2019, que estabelece os procedimentos relativos à representação judicial dos agentes públicos. Esse dado só denota a legalidade, institucionalidade e impessoalidade dessa competência.
Em resumo, os órgãos de advocacia ou procuradoria jurídicas das Casas Legislativas precisam ter um espaço de atuação mais amplo do que o deixado na tese firmada na ADI 6.433 e nos julgamentos das ADIs 2.820, 1.557 e 825, nas quais o tema foi debatido. Deve-se entender como defesa das prerrogativas institucionais do parlamento também as dos seus membros.
Considerando tudo isso, e voltando para a discussão da PEC 8/2021, por mais que a atual conjuntura política indique que tal proposta não irá adiante, o cerne da “emenda Pacheco” continua merecendo consideração nos debates subsequentes.
Circula que parte dos temas da PEC 8/2021 será discutido no PL 3640/2023, que dispõe sobre o processo e o julgamento das ações de controle concentrado de constitucionalidade perante o STF e altera o Código de Processo Civil. Coincidentemente, eis o teor do seu art. 20, parágrafo único: “No exercício das suas missões institucionais, o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República poderão apresentar fundamentos favoráveis ou contrários àqueles contidos na petição inicial”. Ou seja, vai-se incorporar legislativamente a posição do STF na ADI 1.616.
Essa releitura do papel do AGU parece ser um caminho sem volta, sobretudo entre os seus próprios membros. Agora, como já explicado, se é para ser assim, e tendo em vista que a lei ou o ato normativo impugnado não podem ficar sem defesa, é necessário inserir no PL 3640 a previsão de que, em se tratando de lei ou ato emanado do Congresso, as Casas Legislativas serão citadas, por intermédio dos órgãos próprios de assessoramento e representação judiciais, para a defesa da lei ou ato normativo impugnado.
Do contrário, haverá retrocesso no sistema de controle concentrado brasileiro. Incorporar a “emenda Pacheco” ao PL 3640 é a solução. A ver o que acontecerá.
[1] MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucionalidade: comentários à Lei n. 9.868, de 10-11-1999. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.