Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reforçou sua jurisprudência (AgInt no Agravo em Recurso Especial 1.490.251/AL), no sentido de que feriados que não são nacionais devem ter comprovação nos autos, para que se admita a tempestividade dos recursos direcionados à Corte. A todo ano, o fato surpreende muitos, quando se deparam com o fato de que o feriado do Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, não é reconhecido em âmbito nacional.
O presente artigo nasce desse pressuposto, por um viés cultural e institucional: o Brasil, país com a maior população negra fora da África[1], diverge quanto ao reconhecimento do dia em alusão à Consciência Negra, fato este que reflete, por evidente, na esfera do Poder Judiciário. A relevância do tema está intimamente relacionada aos dados ora trazidos: mesmo tendo uma população preta tão numerosa, o Brasil continua enfrentando, estrutural e conjunturalmente, desafios de desigualdade e discriminação racial em suas mais diversas esferas.
Independentemente do aspecto processual, no presente debate, analisa-se, aqui, o prisma sociocultural e o impacto dessa divergência para além dos efeitos jurídicos que se geram dessa descentralização, tentando-se entender os motivos do feriado ainda não ser reconhecido nacionalmente, não obstante a relevância do tema e da discussão.
Contexto histórico
Para que se entenda mais profundamente a relevância do debate – especialmente em mais um “novembro negro” – sugere-se aqui um breve contexto histórico, para que se entenda a importância do feriado da Consciência Negra. E, por certo, não há como se falar no tema sem falar da escravidão no Brasil e nas suas consequências para a população afrodescendente.
O feriado se dá em homenagem a Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares e símbolo da resistência negra à escravidão no Brasil. O Quilombo, que se localizava onde hoje fica União dos Palmares, no estado de Alagoas, era uma comunidade formada por africanos fugitivos da escravidão nas plantações de cana de açúcar. Era espaço de resistência e autonomia, além da preservação da cultura africana no Brasil colonial. Sob a liderança de Zumbi, não apenas resistiu, mas prosperou, mesmo diante das várias tentativas das autoridades coloniais, de dizimar a comunidade.
Mesmo com a postura destemida e pelas habilidades de Zumbi na luta pela manutenção do quilombo, o então governador da Capitania de Pernambuco, Domingo Jorge Velho, em 1694, comandou uma expedição militar que culminou na invasão e na destruição de Palmares, tendo sido Zumbi capturado e morto em combate, em 20 de novembro do ano seguinte. Assim, Zumbi passou a ser reconhecido como a imagem da resistência não apenas da raça, mas da cultura afro-brasileira e pela sua resistência na busca da liberdade de seu povo, que sofre até hoje os reflexos do cruel regime escravocrata institucionalizado no país durante tantos séculos.
O feriado da Consciência Negra pela ótica legislativa
O primeiro registro que se tem da ideia de celebração do Dia Nacional da Consciência Negra remonta da década de 70: em 1971, em Porto Alegre, o poeta, professor e pesquisador gaúcho Oliveira Silveira, em reunião com o Grupo Palmares – associação que reunia militantes e pesquisadores da cultura negra no Brasil – sugeriu a ideia de comemoração da data, com a proposta de refletir sobre o valor e a contribuição da comunidade negra para o Brasil.
A data foi incluída no calendário oficial pela Lei 8.352/1987, no Rio Grande do Sul, mas não como um feriado. São Paulo fez o mesmo, instituindo o mês de novembro como o “Mês da Consciência Negra”, por maio da Lei Estadual 5.680/1987, também sem reconhecer a data como feriado.
A primeira institucionalização da data como feriado só veio décadas depois: o estado de Alagoas, pioneiramente, publicou a Lei 5.724/1995, decretando feriado estadual, seguido do Rio de Janeiro, que publicou a Lei 4.007, de 11 de novembro de 2002, prevendo a data da morte de Zumbi como feriado. A partir disso, os estados do Mato Grosso, Amapá, Amazonas e São Paulo, apenas neste ano de 2023, também instituíram o feriado do Dia da Consciência Negra em seus calendários oficiais, sendo as únicas unidades federativas que assim tratam a data histórica.
Em termos municipais, atualmente, cerca de 1.260 cidades também comemoram a data com o feriado, representando 22,6% do território nacional[2]. Nenhum município previu feriado no Distrito Federal (a capital prevê apenas ponto facultativo), além de nenhum outro nos estados do Acre, Ceará, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima e Sergipe.
Reflexões da Sectarização do feriado do dia da Consciência Negra
A descentralização do feriado nacional e a urgência dada pelo Legislativo Federal para reconhecer a data em todo o território brasileiro apenas em 2023 deixa claro que ainda há muito a se agir, para que seja dada a real importância à data histórica e à valorização da população afro-descendente no Brasil, bem como à cultura, história e todo o legado de Zumbi dos Palmares.
Afirma-se, com segurança, que a desigualdade racial e a (ainda pequena) importância dada a ela são manifestações claras dessa prática. Não é novidade que a abolição da escravatura, em 1888, não foi acompanhada das devidas e necessárias políticas de inclusão social, econômica, cultural e política, deixando até hoje um legado negativo de desigualdades estruturais.
E o Brasil, “gigante pela própria natureza”, ainda não tem uma unidade cultural, histórica e social que propicie o reconhecimento das lutas de resistências de mais de 300 anos, tampouco a unidade da importância histórica e a consciência ética-racial suficientemente necessárias para o reconhecimento da necessidade de uma evolução maior e mais constante na valorização da raça e da cultura de uma população que representa a população nacional: somos, segundo o IBGE, 55,7% do total populacional nacional, com 15% de representação nos cargos de alto escalão dos governos estaduais. No Judiciário, o mesmo percentual: apenas 15% dos magistrados brasileiros se declaram negros.
Isso mostra, logicamente, que estamos muito distantes das falhas estruturais que demandam observação e demandam mudanças, deixando claro, ainda, o pensamento excludente de que a população negra não está pronta para ocupar cargos de elite no país.
Não se pode deixar de reconhecer que temos caminhado nas ações afirmativas: o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) se mostra como um instrumento viável da discussão da efetivação no combate do racismo no Brasil, trazendo políticas como a inclusão da temática racional nos currículos dos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, de escolas públicas e particulares, a criação das cotas raciais para ingresso nas universidades públicas e em concursos públicos, a regulação de terras quilombolas, dentre tantos outros[3].
Não obstante os avanços até aqui obtidos, deve-se sempre ter em mente que esses passos ainda representam uma pequena parcela de evoluções, considerando, mais uma vez, que o Brasil é um país formado, majoritariamente, por negros e pardos, em sua maioria. É imprescindível que se tenha sempre como norte, como um motivador das ações em face de seu povo, que o Brasil tem uma parcela mínima de negros em cargos de liderança, de destaque e de prestígio, seja no setor público, ou no setor privado.
Trata-se de um verdadeiro contrassenso, considerando que a maioria dessas pessoas sejam representadas por uma quantidade tão tímida. Pessoas não negras ainda têm o poder de decisão sobre questões que afetam diretamente os negros por serem quem são. E, nesse sentido, voltamos ao início do debate: o Brasil ainda não tem um feriado nacional do Dia da Consciência Negra, porque não encontra representantes suficientes para formar uma quantidade expressiva o suficiente para se fazer ouvir, para ampliar suas vozes, de forma que a maioria dos detentores desse poder de decisão se sensibilizem com a história, as lutas, as resistências, as injustiças e as carências da população que compõe a maior parte dos brasileiros.
Mesmo o Poder Judiciário se insere nesse contexto de desigualdade. No Superior Tribunal de Justiça, composta por 33 magistrados, há apenas o ministro Benedito Gonçalves como se declarando negro – em toda a história da Corte. Na Corte Constitucional, o cenário não é muito distinto: hoje, o Supremo Tribunal Federal (STF) não consta com ministros negros, tendo, em sua história, apenas dois representantes da raça: o ex-ministro Joaquim Barbosa (2003-2014) e o ex-ministro Hermenegildo de Barros, que foi ministro entre 1919 e 1937.
Com isso, afigura-se o cenário da história clássica da relação de dominação estrutural: brancos, em sua expressiva maioria, legislando e votando sobre a decretação de um feriado nacional para lembrança da luta e da resistência da raça e da cultura negra no Brasil. O presente artigo não traz o viés de manifesto, mas não pode deixar de ressaltar o fato tão presente no nosso dia-a-dia enquanto sociedade que se pretende – ao menos formalmente, pelos termos da Constituição Federal – igualitária dentro das desigualdades, com paridade de tratamentos e condições para todos.
E, trazendo o raciocínio até aqui exposto de volta para o início do debate – a necessidade de comprovação do feriado local para que seja considerado para a contagem de prazo pelos Tribunais Superiores – percebe-se que o Judiciário, ainda que não tenha competência legislativa, acaba por integrar a cadeia viciosa que gera a ausência de um feriado nacional para o dia da Consciência Negra. Muitos advogados e advogadas pretos acabam por não ter a oportunidade de celebrar o dia da memória de um grande líder histórico, uma vez que a ausência de feriado não permite que se eximam do cumprimento dos prazos processuais e dos compromissos profissionais, que se demonstra, em algum nível, que a comunidade negra tem muito a resistir e a lutar, pela garantia da memória de seus antepassados e pela relevância da sua contribuição para toda a sociedade, em termos econômicos, culturais, políticos e sociais, dentre tantos outros.
Considerações finais
Desde a colonização do Brasil, os negros são submetidos a lutas e resistências à dominação e às diversas tentativas de extinção de suas origens étnicas. Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, tornou-se o maior nome dessa comunidade, tendo lutado pela preservação de vidas, da história e da dignidade do povo negro até o seu último dia.
Os últimos três séculos vêm sendo constantes nessa resistência. Com a abolição da escravatura, a ausência de políticas socioeconômicas em favor dos negros contribuiu fortemente para que o abismo racial prosseguisse, contribuindo para o racismo estrutural que se enxerga até hoje, nos menores detalhes.
Numa tentativa de relembrar a história e chamar a atenção para questões sensíveis aos negros no Brasil, foram iniciadas discussões, em Porto Alegre, com a proposta da ideia de Consciência Negra no Brasil. A pauta entrou no calendário oficial de alguns estados do país, mas um feriado, efetivamente, para atenção e apreciação da Consciência Negra, no Brasil, só veio quase vinte anos após a proposta desse debate, no estado de Alagoas, exatamente onde Zumbi dos Palmares foi morto.
Ainda que outros estados tenham instituído o feriado em seus calendários oficiais, a relevância da data ainda é muito pequena, em termos percentuais. E esses números refletem algo bastante relevante: mesmo sendo a maior população negra fora da África e tendo mais da metade de sua população autodeclarada como negra ou parda, o Brasil tem uma quantidade ínfima de negros em cargos de prestígio no Legislativo e no Judiciário. O presente artigo mostra, com isso, que ainda somos um abismo de desigualdade: as decisões que afetam diretamente as pessoas negras não são tomadas pelos seus representantes raciais em sua maioria, o que corrobora a necessidade de ainda mais representatividade, oportunidades e ações afirmativas, sem prejuízo das incipientes, mas deveras importantes conquistas até aqui.
Por isso, nomes como Zumbi dos Palmares, Luís Gama, Esperança Garcia, José do Patrocínio, Pixinguinha, Abdias Nascimento, Joel Rufino dos Santos, Adhemar Ferreira da Silva, Grande Otelo, Ruth de Souza, Sueli Carneiro, Silvio de Almeida, Manuellita Hermes, dentre tantos outros, mostram, como representantes de toda uma raça que pode ter excelência em todas as esferas da sociedade, que, sim, fazem parte de uma raça que merece a preservação e perpetuação de seus feitos, de sua memória, de suas lutas, resistências e que, acima de tudo, deve ser vista como capaz de assumir cargos e postos que representem o seu, o nosso povo, em qualquer âmbito da sociedade e da economia.
[1] O Gigante Negro, disponível em https://www.ufmg.br/boletim/bol1418/segunda.shtml. Acesso em 22.11.2023, às 23:25h.
[2] O Brasil tem, ato todo 5.568 municípios, de acordo com o IBGE: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/36532-ibge-atualiza-dados-geograficos-de-estados-e-municipios-brasileiros, acesso em 22.11.2023, às 23:55h.
[3] MARQUES JUNIOR, Jolison Santana. Políticas de Ação Afirmativa para Negros no Brasil: elementos para uma reflexão inicial no Serviço Social. O Social em Questão – Ano XX – nº 37 – Jan e Abr/2017, p.48