A defesa de Celso de Mello pela reforma do Judiciário e ampliação do acesso a Justiça

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No dia 22 de maio de 1997, tomava posse na presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) o ministro Celso de Mello. Aos 51 anos e 6 meses de idade, tornou-se o mais jovem presidente da história do STF.

E assumiu o comando do tribunal com um discurso que não era unânime dentro do próprio Supremo em favor da promoção de reformas do Poder Judiciário para adequá-lo às demandas da sociedade.

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“A reforma do Poder Judiciário tomou-se irreversível e, para viabilizar-se segundo os padrões éticos, jurídicos, políticos e sociais reclamados pela coletividade, supõe uma nova atitude cultural dos próprios magistrados em relação ao problema da reorganização do Estado e à redefinição do papel da magistratura no âmbito de uma sociedade que emergiu, após longos anos de arbítrio e opressão governamentais, para a experiência concreta da vida social em regime de plena normalidade democrática”, disse em seu discurso de posse.

As mudanças que defendia, explicava o ministro, impunham-se como “providências essenciais” em favor da eficácia da Justiça, em prol da racionalização do modelo de administração da justiça, em favor da celeridade na solução dos conflitos individuais e sociais e, adicionalmente, para que o Poder fosse transparente .

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Celso de Mello defendia, portanto, a possibilidade de a sociedade civil institucionalmente fiscalizar os atos do Poder Judiciário. Algo que só se concretizou na década seguinte com a aprovação da Reforma do Poder Judiciário e com a consequente criação do Conselho Nacional de Justiça.

“Nenhum órgão do Estado pode dispor, numa sociedade realmente democrática, de imunidade à fiscalização da cidadania e do corpo social”, enfatizou. E acrescentou: “A administração da Justiça, para realizar plenamente os fins a que se destina, deve ser processualmente célere, tecnicamente efetiva, socialmente eficaz e politicamente independente”.

Mas esta era uma opinião individual. E sofria resistências internas. Celso de Mello tinha plena ciência disso. “Na realidade — e aqui continuo a expor posição meramente pessoal — essa atividade de fiscalização constitui ineliminável necessidade da cidadania, quer como requisito de legitimação da atividade administrativa do Judiciário, quer como forma de concretização da ideia republicana, que não admite e nem tolera regimes de governo sem a correspondente noção de fiscalização e de responsabilidade”, argumentou.

E a oposição interna a esta ideia era declarada. Tanto que o ministro Sydney Sanches, que fez a saudação a Celso de Mello como novo presidente, ressaltou essa divergência e alertou que esse fato deveria ser comunicado ao Congresso, a quem competiria analisar a proposta de reforma. “Sabe o digno presidente que, em alguns desses temas, não conta com a unanimidade, ou mesmo, com a maioria do Tribunal. E democrata que é, saberá comunicar ao Congresso Nacional esse entendimento da Corte, por via oficial, se for preciso”.

Composição plenária do STF, na gestão do ministro Celso de Mello, 1997-1999. Da esquerda para direita, sentados: os ministros Sydney Sanches, Moreira Alves, Celso de Mello (presidente), Néri da Silveira e Octavio Gallotti. Na mesma ordem, em pé: ministros Maurício Corrêa, Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence, Carlos Velloso (vice-presidente), Ilmar Galvão, Nelson Jobim e o procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro / Crédito: Acervo STF

Além da reforma do Judiciário, outro tema foi central no discurso de Celso de Mello: o acesso à Justiça, àquele momento ainda mais problemático e difícil do que atualmente.

“Sem que se reconheça a toda e qualquer pessoa o direito que ela tem de possuir e titularizar outros direitos, frustrar-se-á — como conquista verdadeiramente inútil — o acesso ao regime das liberdades públicas. E, desse modo, o rol de excluídos, marginalizados pela iniqüidade da exclusão social, será dramaticamente ampliado pelo surgimento daqueles afetados por uma perversa exclusão jurídica, estigmatizados pela impossibilidade de sequer postularem a proteção jurisdicional do Estado”, afirmou.

E para garantir o acesso à população de baixa renda, defendeu a urgente instalação das Defensorias Públicas em todo o país. “A democratização do acesso à Justiça revela-se, desse modo, um inadiável programa estatal, cuja implementação terá a virtude de iniciar o processo de reinserção e reincorporação dos despossuídos ao sistema de direito do qual se acham injustamente excluídos, permitindo que o postulado da igualdade — fundamento verdadeiro do processo de construção da cidadania-tenha, finalmente, plena, consequente e definitiva realização”, reafirmou.

A posse de Celso de Mello ocorreu em meio a turbulências políticas e sociais que o governo Fernando Henrique enfrentava, especialmente em razão das ações do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Naquele 22 de maio, as manchetes dos principais jornais do país relatavam o discurso do presidente FHC em que pregava um “basta” ao que chamou de clima de “baderna” provocado pelo MST e pelo seu líder, João Pedro Stédile.

Na relação entre Executivo e Legislativo, o excesso de medidas provisórias também criava ruído entre os poderes. E Celso de Mello assumia o STF depois de ver seu antecessor, o ministro Sepúlveda Pertence, protagonizar embates severos com o presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães. O discurso, portanto, vinha recheado de recados institucionais e políticos.

“A submissão incondicional de todos ao império da Constituição representa, na real verdade, o fator essencial de preservação da ordem democrática, por cuja integridade devemos todos velar, enquanto legisladores, magistrados ou membros do Poder Executivo”, ponderou.

Celso de Mello foi indicado para o Supremo já pelo governo civil de José Sarney. E dava continuidade a novos tempos no tribunal, inaugurados pelo ministro Sepúlveda Pertence e verbalizados por ele. O que havia de especialmente novo era a defesa enfática da função do Supremo na concretização dos direitos fundamentais.

“Em uma palavra: o juiz é, e sempre deve ser, o instrumento da Constituição na defesa incondicional e na garantia efetiva dos direitos fundamentais da pessoa humana. Essa é uma das missões irrenunciáveis do juiz digno e consciente de seus deveres éticos, políticos e jurídicos, no desempenho da atividade jurisdicional”, afirmou.

Nesse campo, ainda antes da sua posse e nos primeiros meses de mandato, ele defendeu a indicação de uma juíza para o Supremo, algo que só ocorreria anos depois com a nomeação da ministra Ellen Gracie. E também defendeu abertamente a descriminalização do aborto.

“As mulheres têm direito de definir, de maneira autônoma, o que é concernente à sua fecundidade e à sua sexualidade. Têm o direito de gerar e de não gerar filhos e até de espaçar as gestações”, resumiu o ministro em entrevista à jornalista Eliane Cantanhêde, na Folha de S.Paulo.

Hoje, a defesa lhe causaria essencialmente problemas com o Congresso Nacional e a bancada conservadora. Naquela época, o ministro tratava das reações em casa. Como retrata trecho da mesma entrevista:

“Pai, o sr. vai ser excomungado?”, perguntou-lhe a filha caçula, Sílvia Renata, 13, que estuda num colégio de freiras, o Santo Antônio.

“Não, filha, a Igreja Católica só pune quem pratica o aborto. Eu apenas defendo o cumprimento da lei”, respondeu-lhe o ministro.

Celso de Mello exerceu o mandato de presidente por dois anos, sendo sucedido pelo ministro Carlos Velloso. Em outubro de 2020, Celso de Mello se aposentou do STF, aos 75 anos. Para sua vaga, Jair Bolsonaro indicou o ministro Nunes Marques.