A CVM e o fim do monopólio no mercado de capitais brasileiro

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O anúncio de duas novas bolsas de valores animou o mercado de capitais brasileiro.

De um lado, a Americas Trading Group (ATG), recém-adquirida pela Mubadala Capital, anunciou o lançamento de uma bolsa, sediada no Rio de Janeiro, para a negociação de ações e cotas de fundos de investimento. Viralizou o vídeo do prefeito Eduardo Paes (PSD) comemorando a notícia.

De outro lado, a A5X, recém-formada por ex-executivos da XP, divulgou uma rodada de investimentos para a criação de uma bolsa voltada à negociação de derivativos.

A repercussão das novidades se explica pelo monopólio que caracteriza o mercado brasileiro.

A bolsa incumbente administra (i) o único ambiente de negociação; (ii) a única câmara de compensação e liquidação (clearing house); e (iii) a única central depositária em atividade no país – ou seja toda a cadeia de serviços necessários à operacionalização da bolsa.

As bolsas da ATG e A5X disporão de ambientes de negociação e clearing house próprias. O único serviço que utilizarão da incumbente é o depósito centralizado.

Há expectativa de que o aumento da concorrência resulte em redução dos custos e expansão do cardápio de produtos e serviços à disposição dos investidores. Segundo estudo da Oxera encomendado pela CVM, “a entrada de locais alternativos de negociação pode criar pressão competitiva e promover reduções de custo, reduções de preço e melhorias de serviço por parte de bolsas já instaladas no mercado”.

Ainda que o predomínio da incumbente tenha sido conquistado por méritos próprios, o monopólio é incompatível com o porte do mercado brasileiro – a exemplo de mercados similares como México e Austrália em que mais de uma bolsa competem entre si.

A CVM prestou atenção e tomou medidas em benefício da concorrência. E fez isso do jeito certo: sem culpar ou perseguir a bolsa incumbente, mas olhando para o próprio umbigo a fim de revisar as regras que criavam barreiras desnecessárias a entrada de novos concorrentes.

As regras então vigentes para a formação e funcionamento das bolsas eram resultado da crise da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. O famoso caso Nahas (1989) arruinou a bolsa carioca e deixou os investidores entregues ao deus-dará. Isso justificou uma postura conservadora em relação às bolsas, desde então submetidas a normas exigentes e pouco flexíveis.

As exigências incluíam (i) uma estrutura de governança pesada e cara, com vários órgãos, conselhos e comitês; e (ii) regras de negociação com inúmeras restrições, como a transparência de todos os negócios realizados e a vedação de que os títulos admitidos a negociação em bolsas sejam negociados em outros mercados (a chamada “vedação à dupla-listagem”).

Tamanhas restrições se justificavam pelo imperativo de resgatar a confiança dos investidores, elevado a condição de chave para o crescimento do mercado brasileiro nos anos 1990 e 2000. E as regras, de fato, cumpriram a missão de proteger o mercado brasileiro a ponto de atrair o retorno de milhões de investidores, muito embora ao preço de erguer barreiras ao surgimento de bolsas concorrentes.

Assim ocorreu pelo trade-off que caracteriza a regulação em que (i) regras flexíveis estimulam o ingresso de novos players e investidores, mas implicam em maiores riscos à integridade do mercado; e (ii) regras robustas preservam o mercado, mas dificultam, quando mal calibradas, a ascensão de concorrentes.

Se regras pouco flexíveis se justificam em face de crises e rupturas na confiança dos investidores, o contrário ocorre quando a confiança é retomada e as mesmas regras se tornam um entrave para que o mercado siga crescendo com o ingresso de novos players.

No caso brasileiro, políticas exitosas (como o aniversariante Plano Real) deixaram o país a salvo de crises macroeconômicas, enquanto a atuação consistente da CVM e da bolsa incumbente recuperou confiança dos investidores. A consequência disso foi o surgimento de inúmeras corretoras, gestoras e assessores de investimento, em nítido contraste com a existência de apenas uma bolsa.

Não por outra razão, ao menos desde a década passada, a CVM adota medidas em benefício ao surgimento de novas bolsas. A estratégia consiste na “adoção de estímulos à concorrência (…) de forma gradual, para não colocar em risco a preservação dos mercados organizados existentes”, como dita pelo própria CVM.

Os estímulos incluem (A) preparação do framework regulatório para o cenário de negociações fragmentadas em várias bolsas; (B) diminuição das barreiras para que novos entrantes eventualmente utilizem os serviços de liquidação, compensação e depósito centralizado da bolsa incumbente; e (C) permissão de que as corretoras criem miniplataformas de negociação para a sua própria base de classes (o que permite que desenvolvam know-how e tecnologia para futuramente darem o passo seguinte à formação de uma bolsa propriamente dita).

À título de ilustração, preparei uma pequena lista das medidas de estímulo tomadas pela CVM nos últimos anos:

(i) edição da Instrução CVM 505/2011 (atual Resolução CVM 35/2021), com regras de best execution e parâmetros para que as corretoras decidam onde executar a ordem recebida do cliente em caso de existência de várias bolsas (A);

(ii) criação do “Grupo de Trabalho Concorrência Entre Bolsas”, com o objetivo de estudar os impactos da presença de mais de uma bolsa sobre o arcabouço regulatório (A);

(iii) edição da Instrução CVM 541/2013 (atual Resolução CVM 31/2021), com regras de acesso justo ao serviço de depósito centralizado da bolsa incumbente (B);

(iv) adesão aos Princípios para Infraestruturas do Mercado Financeiro (PFMI), com regras para acesso justo aos serviços de compensação, liquidação e depósito centralizado da bolsa incumbente (B);

(v) convocação da Audiência Pública CVM SDM 05/2013, com manifestações de agentes do mercado sobre regras de (v.i) best execution, (v.ii) consolidação de dados entre bolsas e (v.iii) autorregulação das bolsas (A);

(vi) regularização dos sistemas eletrônicos de busca de contrapartes oferecidos pelos corretores (C);

(vii) regularização das ofertas RLP, com permissão para que os corretores cruzem ordens dos clientes em seus próprios sistemas (C);

(viii) admissão de mercados de balcão no sandbox regulatório da CVM (A);

(ix) edição da Resolução CVM 135/2022, com a simplificação do arcabouço regulatório relativo às bolsas, incluindo regras mais flexíveis para a estrutura de governança e negociações (A);

(x) convocação da Consulta Pública SDM 06/2023, com manifestações de agentes do mercado sobre o fim da vedação a participação de corretoras no capital social de bolsas (C);

(xi) divulgação do “Relatório Parcial de Análise de Impacto Regulatório sobre Internalização de Ordens”, com a conclusão de que investidores de varejo se beneficiam de spreads maiores por meio da internalização de ordens (C).

Os efeitos das novas regras são cada vez mais visíveis. Corretoras como XP e BTG já oferecem plataformas de negociação alternativas aos clientes. Mercados de balcão recém-criados prestam o serviço de registro de contratos de derivativos (BBCE, CSDBR e CRT4). E as bolsas da ATG e A5X representam o ápice disso.

É o momento em que o Brasil enfim se aproxima dos principais mercados mundo, como o americano e o europeu, em que múltiplas bolsas competem entre si. A CVM acertou em olhar para si mesma antes de tomar as decisões que desencadearam a revolução em curso.