O ano que se encerrou, sob a efeméride dos 75 anos da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem e também da Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi marcado por importantes avanços na jurisprudência interamericana. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) celebrou 9 períodos ordinários de sessão, proferiu 26 sentenças de mérito[1] e realizou mais de 30 audiências públicas, nas quais teve a oportunidade de explorar temas inéditos e desenvolver novas perspectivas de interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, sem perder de vista o núcleo essencial de sua missão: a proteção da pessoa humana.
Nos próximos parágrafos, destacarei alguns daqueles que considero os principais desenvolvimentos das linhas jurisprudenciais da Corte IDH em 2023, dentre eles, o refinamento das perspectivas sobre a interpretação do artigo 2º da Convenção e sobre o controle de convencionalidade; o aprofundamento da teoria da responsabilidade internacional do Estado por atos de agentes não estatais; o robustecimento dos precedentes sobre direitos dos povos indígenas; e as garantias de independência judicial dos juízes das cortes eleitorais. Passarei, em seguida, pela abordagem do direito à igualdade e não discriminação. Concluirei com a importante agenda institucional promovida pela Corte IDH e pelas perspectivas para este ano que se inicia.
Desenvolvimentos na doutrina interamericana do controle de convencionalidade
O ano de 2023 começou com a notificação e publicação da sentença do emblemático caso Tzompaxtle Tecpile vs. México[2] (julgado ainda em 2022) e com a deliberação do caso García Rodríguez[3], também contra o México, em 25 de janeiro. Partilhando de grandes semelhanças de fato e de direito, em ambos os casos a Corte IDH se deparou com a necessidade de examinar a duas medidas processuais penais do México que, inclusive, revestiam-se de status constitucional: o arraigo, modalidade de detenção pré-processual, e a prisão preventiva obrigatória, de aplicabilidade compulsória a depender do delito imputado ao indivíduo. Ao considerar tais figuras incompatíveis com os direitos à liberdade e à presunção de inocência, a Corte IDH ordenou ao Estado que adotasse as reformas necessárias para revogá-las do ordenamento jurídico.
A obrigação de adequar as normas de direito interno está prevista no art. 2º da Convenção e constitui o fundamento do controle de convencionalidade no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Ao determinar a revisão de dispositivos entabulados na Constituição mexicana, as sentenças dos casos Tzompaxtle Tecpile e García Rodríguez notabilizaram-se por reafirmar o alcance da competência da Corte IDH para examinar normas internas, independentemente do status que ostentam em seus respectivos sistemas jurídicos.
Embora a análise de normas constitucionais não seja feito inédito no acervo de precedentes do Tribunal[4], o julgado colocou uma vez mais em xeque a concepção daqueles que pretendem situar a Convenção em posições subalternas na pirâmide hierárquica da normatividade dos Estados. Superar essa visão estamental dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos não significa advogar pela supremacia absoluta do direito internacional, e sim reconhecer que a primazia deve ser sempre outorgada à norma mais protetiva.
O caso Córdoba vs. Paraguai[5] foi outro processo que obrigou a Corte IDH a aprofundar a correta interpretação sobre o alcance das obrigações previstas art. 2º da Convenção. Em deliberação de setembro de 2023, a Corte IDH se dedicou, de forma inédita, aos standards que devem ser observados pelos Estados em matéria de restituição internacional de menores e à tutela diferenciada que deve ser conferida em casos envolvendo crianças. Também declarou que o Estado, embora houvesse ratificado os tratados internacionais que regulavam a matéria, não adotou as disposições normativas necessárias e suficientes para viabilizar a aplicação adequada dos convênios sobre devolução de menores.
Proferi voto concorrente, em conjunto com os Juízes Ricardo Pérez Manrique e Eduardo Ferrer MacGregor[6], no qual nos propusemos a discutir os alcances do art. 2º da Convenção, sublinhando que um Estado pode violar a aludida disposição convencional não apenas quando aplica leis ou adota práticas incompatíveis com os direitos e garantias ali previstos, mas também (i) quando conta com leis que, ainda que não aplicadas, por seu conteúdo afrontam per se a Convenção ou (ii) quando são identificadas situações de omissão regulatória do Estado, isto é, quando a ausência de marco legal produz lacunas de proteção aos direitos humanos.
Situamos nesse último caso a violação submetida à Corte IDH no caso Córdoba vs. Paraguai. Conforme assinalamos, em matéria tão delicada como a da restituição internacional de menores, a mera ratificação do tratado ou adoção de protocolos administrativos para sua execução não constituem providências suficientes para assegurar a máxima efetividade de seu escopo protetivo. A tradição jurisprudencial interamericana confere status de proteção reforçada aos direitos das crianças, abrigados pelo art. 19 da Convenção. In verbis:
los derechos de la niñez implican la obligación del Estado de promover las medidas de protección especial orientadas por el principio del interés superior de la niñez, asumiendo su posición de garante con mayor cuidado y responsabilidad en consideración a su condición de sujetos de especial protección. El artículo 19 de la Convención – y la aplicación del principio del interés superior, en la jurisprudencia de la Corte – tiene como objetivo “el desarrollo de la personalidad de las niñas y los niños, y el disfrute de los derechos que les han sido reconocidos”. La niñez tiene derechos especiales a los que corresponden deberes específicos por parte de la familia, la sociedad y el Estado.
Novas perspectivas de responsabilização por violações de direitos humanos
As recentes tendências jurisprudenciais da Corte IDH também revelam importantes desenvolvimentos no campo da doutrina de responsabilização internacional do Estado por atos de agentes não estatais em matéria de direitos humanos.
Como assinalado pela Corte IDH, o caráter erga omnes das obrigações derivadas da Convenção não implica dever geral do Estado de responder por todo e qualquer ato de particulares que eventualmente atente contra os direitos e garantias nela prescritos. Por outro lado, agentes privados – pessoas físicas ou jurídicas – não são partes legitimadas para figurar no polo passivo dos litígios no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Essa situação particular exigiu da Corte buscar pontos de equilíbrio em suas sentenças que permitissem ampliar as hipóteses de responsabilização do Estado por atos de terceiros, sem eximir esses últimos da observância de standards mínimos de direitos humanos.
No caso Olivera Fuentes vs. Peru, um dos primeiros deliberados em 2023, a Corte IDH retomou relevantes parâmetros sobre a responsabilidade das empresas privadas em relação ao respeito aos direitos humanos. O caso envolveu atos de discriminação sofridos pela vítima, homossexual, em um supermercado em Lima, no Peru. Em sua Sentença, o Tribunal reiterou que as empresas são as primeiras encarregadas de adotar comportamento responsável em suas atividades, já que sua atuação é fundamental para a vigência dos direitos previstos na Convenção[7].
A responsabilidade estatal, por sua vez, é corolário do dever geral de garantia emanado do art. 1.1 da Convenção e das obrigações de prevenção de violações de direitos humanos. Nesse sentido, cabe aos Estados não apenas adotar medidas legais necessárias para assegurar que os entes privados atuem em sintonia com os preceitos básicos de direitos humanos, mas também tomar providências cabíveis para investigar e punir eventuais condutas corporativas que os afrontem, assegurando aos indivíduos afetados o acesso às reparações adequadas.
Esses standards foram recapitulados em Rodríguez Pacheco vs. Venezuela[8], dessa vez com o viés da responsabilidade estatal pelos serviços de saúde privados. Nessas hipóteses, o dever de garantia do Estado assume a forma do dever de regular e fiscalizar os serviços de saúde, públicos ou privados, fixando parâmetros de qualidade adequados que permitam evitar quaisquer ameaças à vida e à integridade pessoal.
O tema retornou à pauta no caso Nuñez Naranjo vs. Equador[9]. A vítima, Freddy Nuñez Naranjo, havia sido detida sob a acusação de roubo na comunidade rural de Cantón Quero, localizado na região central do Equador. Poucas horas após sua reclusão, o destacamento policial em que se encontrava foi invadido por multidão, integrantes de organização denominada Junta de Defesa del Campesinado. As “Juntas” eram organizações civis, com reconhecimento do Poder Público, criadas com o objetivo de defender interesses das comunidades campesinas do país e de seus membros. Pois bem, após ser arrancado do cárcere pelo grupo revoltado com o crime que lhe havia sido imputado, o sr. Freddy Nuñez Naranjo foi colocado forçadamente em um veículo que deixou o local. Desde então, seu paradeiro é desconhecido.
Proferi, no referido caso, voto em conjunto com a Juíza Veronica Gómez no qual abordamos as circunstâncias de responsabilização do Estado por atos de agentes não estatais, especialmente em casos de desaparecimento forçado[10]. Embora tenhamos manifestado nossa adesão integral à Sentença, expressamos a opinião de que a Corte IDH poderia ter se aprofundado mais nos fundamentos da declaração de responsabilidade estatal.
O Estado foi reconhecido como responsável pelo desaparecimento de Freddy Nuñez Naranjo em razão de a vítima ter sido sequestrada enquanto se encontrava sob custódia do Poder Público. Vislumbramos no caso oportunidade para a Corte IDH examinar a responsabilidade do Estado também pela aquiescência e omissão diante da conduta de atores não estatais, como as Juntas de Defensa del Campesinato. As hipóteses de imputabilidade de tais condutas ao Estado ganham corpo quando esse último tinha conhecimento ou razões para conhecer o risco de desaparecimento forçado em relação a determinado indivíduo por parte de particulares, situação da qual nasce o dever de atuar com devida diligência para impedir a concretização da situação delitiva.
No último Período Ordinário de Sessões de 2023, realizado em novembro, os dilemas sobre os limites da responsabilidade estatal em relação a atos de terceiros foram reavivados com a audiência pública da Solicitação de Opinião Consultiva apresentada pelo México, sobre as atividades de empresas privadas do setor armamentista e seus impactos sobre os direitos humanos. A Opinião Consultiva será importante oportunidade para a Corte IDH densificar seu entendimento sobre o tema.
Inovações na jurisprudência sobre direitos dos povos indígenas
Outra relevante frente de avanços jurisprudenciais neste último ano se deu no âmbito dos litígios envolvendo direitos dos povos tradicionais. Em dezembro de 2023, a Corte IDH notificou e publicou as sentenças dos casos Comunidad Indígena Maya Q’eqchi Agua Caliente vs. Guatemala[11] e Comunidad Garífuna San Juan vs. Honduras[12], julgados respectivamente em maio e agosto do ano passado.
Ambos os casos trouxeram importantes desenvolvimentos no entendimento do Tribunal sobre a garantia da propriedade coletiva de seus territórios tradicionais e, principalmente, sobre as obrigações de consultá-las previamente em relação a intervenções que afetem as áreas que habitam. Em ambos os casos, apresentei votos em conjunto com o Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor, nos quais nos debruçamos sobre as principais contribuições dos referidos julgados para a evolução da jurisprudência interamericana.
Os casos Comunidad Agua Caliente e Garifuna San Juan guardam relevantes similitudes fáticas entre si. Envolvem comunidades tradicionais da América Central que se depararam, ao longo das últimas décadas, com uma série de obstáculos impostos ou agravados pelos respectivos Estados à outorga da titularidade coletiva das terras que ocupavam, o que levou à Corte IDH a declarar a responsabilidade estatal pela violação do direito à propriedade coletiva, nos termos do art. 21 da Convenção.
O ponto de destaque, porém, como buscamos assinalar em nossos votos, residiu na expansão do âmbito de proteção do direito à consulta prévia nas duas sentenças. Trata-se de direito positivamente reconhecido pela Corte IDH ao menos desde o julgamento do caso Saramaka vs. Suriname (2007), que compreende o dever estatal de garantir a participação efetiva dos membros da comunidade nas decisões sobre eventos externos que afetem seus territórios. Em seus primórdios, esse preceito era deduzido como consequência do direito à propriedade coletiva. Mais recentemente, desde o caso Kaliña y Lokoño vs. Suriname (2015), a Corte IDH preconizou que o direito à consulta prévia também demandava a observância dos direitos de participação política, encartado no art. 23 da Convenção.
O salto hermenêutico do caso Agua Caliente foi assentar que esse direito também encontra guarida no direito de acesso à informação proveniente do art. 13 da Convenção[13]. Mais do que reconhecimento formal, essa sinalização implica o adensamento das obrigações estatais em relação ao fornecimento de informação culturalmente apropriada a respeito de projetos que podem atingir a comunidade consultada. Trata-se de condição indispensável para que os povos envolvidos possam fornecer seu consentimento livre e informado nos processos de tomada de decisão sobre temas relevantes para seu futuro.
Este avanço mostrou-se particularmente significativo à luz das circunstâncias concretas do caso. Em 2004, o Estado guatemalteco concedeu licença de exploração mineira em perímetro que abrangia parte das terras da comunidade Agua Caliente Lote 9. A empresa concessionária publicou, no ano seguinte, o Estudo de Impacto Ambiental relativo ao projeto de mineração, que foi disponibilizado em edital na sede do Ministério de Ambiente e Recursos Naturais.
Ocorre que, além das dificuldades de acesso físico ao edital, o estudo foi publicado apenas em espanhol, ao passo que os membros das comunidades, em sua maioria, tinham como único idioma o q’eqchi. Essas barreiras culturais e linguísticas, ao prejudicar a difusão adequada das informações sobre o projeto, motivaram a Corte IDH a reconhecer as repercussões do direito de acesso à informação sobre as obrigações de consulta prévia.
Essa nova compreensão dos deveres estatais em relação aos povos tradicionais foi reiterada no caso Comunidad Garifuna San Juan vs. Honduras. Ademais, como expressamos no voto conjunto que proferimos, esse último julgado marcou a consolidação do direito à consulta prévia como direito autônomo, isto é, que deriva diretamente da Convenção[14].
No passado, a Corte IDH havia adotado critérios oscilantes para fundamentar sua exigibilidade, tal como a ratificação do Convênio 169/1989 da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais, cujo art. 6º incorpora as obrigações específicas de consulta. Assim ocorrera no caso Comunidad Garífuna Triunfo de la Cruz vs. Honduras (2015), que apresentava contexto fático muito semelhante ao caso Garifuna San Juan vs. Honduras. Nesse último, a Corte IDH cristalizou o entendimento que já vinha sendo delineado em seus precedentes mais recentes, de que o direito à consulta prévia, para ser conhecido, não se encontra vinculado ao aludido instrumento da OIT.
Outro aspecto fundamental que buscamos gizar residiu no domínio das reparações. Em sua jurisprudência sobre o direito à propriedade coletiva dos povos originários, sempre que a Corte IDH se deparou com cenários de ausência de delimitação, demarcação e titulação das terras, ou ainda com a presença não consentida de terceiros, ordenou ao Estado que adotasse as medidas cabíveis para devolver o território originalmente ocupado, assegurando às comunidades os títulos definitivos de propriedade.
Há situações – como aquela vislumbrada no caso hondurenho, pela ocupação expressiva e de longa data por parte de indivíduos de boa-fé – nas quais a restituição e saneamento das terras ancestrais se mostra inviável. Em tais hipóteses, a Corte IDH tem autorizado o Estado a conceder áreas alternativas ou mesmo efetuar o pagamento de indenização pecuniária equivalente, sempre em coordenação com os grupos afetados e mediante seu consentimento prévio, livre e informado. Tais propostas substitutivas, ressalta-se, são cabíveis tão somente em situações absolutamente excepcionais e devem ser implementadas através de procedimentos culturalmente apropriados. A obrigação primária e prioritária é, e continua a ser, a entrega das áreas historicamente habitadas pelas comunidades.
Independência judicial e Cortes Eleitorais
A temática da independência judicial, campo profícuo da jurisprudência interamericana, foi revisitada sob ponto de vista inovador pela Corte IDH no caso Aguinaga Aillón vs. Equador[15]. O litígio versou sobre a destituição arbitrária do sr. Carlos Aguinaga Aillón do cargo de juiz do Tribunal Supremo Eleitoral do Equador em 2004, promovida pelo Congresso Nacional em meio à crise política vivida no país. O caso destacou-se por seu ineditismo, ao constituir a primeira oportunidade na qual a Corte IDH se posicionou sobre a proteção reforçada que deveria ser destinada aos magistrados dos tribunais eleitorais, que, pela função essencial que desempenham nas democracias modernas, devem gozar de plena independência no exercício da judicatura.
O decisium ainda foi marcado pelo reconhecimento da incidência conjunta dos artigos 23, relativo à proteção à permanência no cargo público, e 26, relativo ao direito à estabilidade laboral, ambos da Convenção, diante do afastamento arbitrário da vítima, em consonância com a proposta de hermenêutica integral e simultânea dos direitos humanos que vem sendo construída pela Corte IDH[16].
Embora tenha manifestado adesão à maior parte da Sentença prolatada pela Corte IDH, manifestei em conjunto com o Juiz Eduardo Ferrer MacGregor Poissot nossa divergência quanto a um ponto em especial. A maioria do Tribunal optou por não analisar a violação ao artigo 9 da Convenção e a correspondente transgressão ao princípio da legalidade. No entendimento que veiculamos em opinião apartada, sustentamos que a destituição da vítima, embora conduzida em procedimento de natureza política, teve cunho materialmente sancionatório. O afastamento massivo de magistrados das cortes superiores do país que estava em curso àquele momento no Equador foi produto de acordos políticos e implicou o menoscabo de seus direitos.
Na condição de processo sancionatório de facto, deveria a Corte IDH ter examinado se o Estado agiu observância dos ditames da legalidade, que devem informar todo e qualquer expediente – penal, administrativo, disciplinar – que possa culminar na imposição de sanção em prejuízo do acusado, conforme preceituado no art. 9. Isso implicaria verificar se o procedimento e suas consequências jurídicas se encontravam descritos em lei com clareza.
Exigir a estrita observância do princípio da legalidade em processos que podem implicar o afastamento de juízes não é detalhe ou elemento secundário. Trata-se de salvaguarda indispensável para assegurar o exercício do direito à defesa e, nas circunstâncias particulares do caso, para a própria vigência da garantia da independência judicial.
Direito à igualdade e não discriminação em relação aos estrangeiros
Ao lado do caso Olivera Fuentes vs. Peru, a que me referi anteriormente, o caso Hendrix vs. Guatemala abrigou alguns dos principais debates sobre o direito à igualdade e não discriminação. Naquela ocasião, a Corte IDH entendeu que o Estado não era responsável pela violação dos direitos do sr. Steve Hendrix, cidadão estadunidense que teve seu registro como notário negado pelos organismos notariais competentes e pela justiça do país, determinando o arquivamento do feito in totum, razão que me motivou a registrar divergência isolada em relação à absolvição do Estado guatemalteco.
A Corte IDH concluiu que o Estado não violou os direitos da vítima por considerar que essa última não possuía domicílio no país. Respeitosamente, expus minha discordância em relação ao entendimento que predominou, já que o requisito que fundamentou a negativa de ingresso do sr. Hendrix à carreira notarial foi sua nacionalidade estrangeira, e não seu domicílio.
Ao fazê-lo, argumentei que o Tribunal se distanciou da cadeia de precedentes que vinha construindo em relação ao direito à igualdade e não discriminação. Ademais, entendi que o Estado não logrou demonstrar que o impedimento de acesso à carreira notarial observou o teste de proporcionalidade, critério empregado para avaliar se a restrição ao exercício de um direito é compatível com a Convenção.
Como consequência da negativa arbitrária fundada em razões discriminatórias e da ausência de proteção judicial, já que a revisão levada a cabo pelos tribunais não examinou a potencial violação do direito à igualdade da vítima, concluí que que essa última também foi privada injustificadamente do direito ao trabalho, em afronta ao art. 26 da Convenção.
Avanços institucionais e perspectivas para 2024
Os casos relatados acima descrevem breve travessia pelo importante trabalho desenvolvido pela Corte IDH nesse ano que se encerrou, através do qual pôde expandir as fronteiras da proteção outorgada pela Convenção aos direitos humanos. Os avanços, porém, não se limitaram ao campo do desenvolvimento jurisprudencial.
Durante esse período, a Corte IDH promoveu estreitamento de laços de cooperação com entidades dos países da região, sempre com vistas a difundir a cultura de tutela dos direitos humanos no Sistema Interamericano e favorecer a troca de experiências sobre o tema. Como parte desse esforço, foram realizados dois Períodos Ordinários de Sessão fora da sede da Corte IDH em San José da Costa Rica, um deles em Bogotá, Colômbia, e outro em Santiago, Chile.
Diversas instituições brasileiras somaram-se a essa agenda de amplo diálogo institucional. Tribunais e órgãos a eles vinculados enviaram comitivas em visita oficial à Corte IDH, onde tiveram a oportunidade de acompanhar audiências, celebrar reuniões com os Juízes e firmar convênios de cooperação. Assim procederam o Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso, a Escola da Magistratura Federal da 1ª Região, o Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados e o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Em outubro passado, a própria Corte IDH enviou delegação de juízes ao Brasil para levar a cabo diligências de supervisão de cumprimento de suas decisões relativas ao país, ocasião na qual se encontrou com autoridades do governo brasileiro, assim como com o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, e com a presidente do CNJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura, e definiu a realização de período de sessões no país em 2024.
Em fevereiro, será formalizada a posse a nova mesa diretiva da Corte IDH, da qual tenho a honra de participar como vice-presidente, ao lado da Juíza Nancy Hernández Rodriguez (Costa Rica), que ocupará a presidência do Tribunal.
[1] Dessas, foram publicadas 19: Corte IDH. Caso Córdoba Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 5 de septiembre de 2023. Serie C No. 505; Corte IDH. Caso Rodríguez Pacheco y otra Vs. Venezuela. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 1 de septiembre de 2023. Serie C No. 504; Corte IDH. Caso Baptiste y otros Vs. Haití. Fondo y Reparaciones. Sentencia de 1 de septiembre de 2023. Serie C No. 503; Corte IDH. Caso Bendezú Tuncar Vs. Perú. Excepciones Preliminares y Fondo. Sentencia de 29 de agosto de 2023. Serie C No. 497; Corte IDH. Caso Comunidad Garífuna de San Juan y sus miembros Vs. Honduras. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 29 de agosto de 2023. Serie C No. 496; Corte IDH. Caso Guzmán Medina y otros Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de agosto de 2023. Serie C No. 495; Corte IDH. Caso María y otros Vs. Argentina. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 22 de agosto de 2023. Serie C No. 494; Corte IDH. Caso Meza Vs. Ecuador. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 14 de junio de 2023. Serie C No. 493; Corte IDH. Caso Núñez Naranjo y otros Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de mayo de 2023. Serie C No. 492; Corte IDH. Caso Tabares Toro y otros Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de mayo de 2023. Serie C No. 491; Corte IDH. Caso Boleso Vs. Argentina. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 22 de mayo de 2023. Serie C No. 490; Corte IDH. Caso López Sosa Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 17 de mayo de 2023. Serie C No. 489; Corte IDH. Caso Comunidad Indígena Maya Q’eqchi’ Agua Caliente Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 16 de mayo de 2023. Serie C No. 488; Corte IDH. Caso Álvarez Vs. Argentina. Excepción Preliminar, Fondo y Reparaciones. Sentencia de 24 de marzo de 2023. Serie C No. 487; Corte IDH. Caso Scot Cochran Vs. Costa Rica. Excepciones Preliminares y Fondo. Sentencia de 10 de marzo de 2023. Serie C No. 486; Corte IDH. Caso Hendrix Vs. Guatemala. Fondo. Sentencia de 7 de marzo de 2023. Serie C No. 485; Corte IDH. Caso Olivera Fuentes Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 4 de febrero de 2023. Serie C No. 484; Corte IDH. Caso Aguinaga Aillón Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 30 de enero de 2023. Serie C No. 483; Corte IDH. Caso García Rodríguez y otro Vs. México. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 25 de enero de 2023. Serie C No. 482.
[2] Corte IDH. Caso Tzompaxtle Tecpile y otros Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 7 de noviembre de 2022. Serie C No. 470.
[3] Corte IDH. Caso García Rodríguez y otro Vs. México. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 25 de enero de 2023. Serie C No. 482.
[4] Caso “La Última Tentación de Cristo” (Olmedo Bustos y otros) Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 5 de febrero de 2001. Serie C No. 73; Corte IDH. Caso Caesar Vs. Trinidad y Tobago. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 11 de marzo de 2005. Serie C No. 123; Corte IDH. Caso Boyce y otros Vs. Barbados. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 20 de noviembre de 2007. Serie C No. 169.
[5] Corte IDH. Caso Córdoba Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 5 de septiembre de 2023. Serie C No. 505.
[6] Corte IDH. Caso Córdoba Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 5 de septiembre de 2023. Serie C No. 505. Voto conjunto dos Juízes Ricardo Pérez Manrique, Eduardo Ferrer MacGregor Poisot e Rodrigo Mudrovitsch no caso
[7] Corte IDH. Caso Olivera Fuentes Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 4 de febrero de 2023. Serie C No. 484.
[8] Corte IDH. Caso Rodríguez Pacheco y otra Vs. Venezuela. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 1 de septiembre de 2023. Serie C No. 504.
[9] Corte IDH. Caso Núñez Naranjo y otros Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de mayo de 2023. Serie C No. 492.
[10] Corte IDH. Caso Núñez Naranjo y otros Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de mayo de 2023. Serie C No. 492. Voto do Juiz Rodrigo Mudrovitsch e da Juíza Veronica Gómez
[11] Corte IDH. Caso Comunidad Indígena Maya Q’eqchi’ Agua Caliente Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 16 de mayo de 2023. Serie C No. 488.
[12] Corte IDH. Caso Comunidad Garífuna de San Juan y sus miembros Vs. Honduras. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 29 de agosto de 2023. Serie C No. 496.
[13] Corte IDH. Caso Comunidad Indígena Maya Q’eqchi’ Agua Caliente Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 16 de mayo de 2023. Serie C No. 488. Voto dos Juízes Eduardo Ferrer MacGregor Poisot e Rodrigo Mudrovitsch.
[14] Corte IDH. Caso Comunidad Garífuna de San Juan y sus miembros Vs. Honduras. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 29 de agosto de 2023. Serie C No. 496. Voto dos Juízes Eduardo Ferrer MacGregor Poisot e Rodrigo Mudrovitsch.
[15] Corte IDH. Caso Aguinaga Aillón Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 30 de enero de 2023. Serie C No. 483. Voto dos Juízes Eduardo Ferrer MacGregor Poisot e Rodrigo Mudrovitsch.
[16] A esse respeito, ver voto conjunto que proferi com o Juíz Eduardo Ferrer MacGregor Poisot no caso Benítez Cabrera vs. Peru (2022).