Desde o primeiro contato com o processo penal na faculdade, mas principalmente desde a atuação nos primeiros casos criminais, percebe-se uma particularidade do inquérito policial em relação ao restante da persecução criminal: há uma sensação geral de que não há um rito, não há fases, não há prazos, não há regras…
Enfim, não há método. É evidente que há limitações, mas também é irrefutável que paira no ar um tom de desprendimento, discricionariedade e imprevisibilidade. Soma-se a esse sentimento o imaginário da figura da investigação – talvez criada pelas tramas policiais de romances, filmes e séries – como algo “bastante intuitivo e dependente de características pessoais quase que místicas, como as de Sherlock Holmes”[1].
Todavia, questiona-se: não há nada além das ilações do investigador que possa servir de condutor do inquérito policial? Neste pequeno artigo, propõe-se uma resposta. Junta-se a um esforço de parcela da doutrina que entende que o direito material, em especial o tipo penal, pode servir como parâmetro para a condução da investigação criminal.
O inquérito policial possui natureza administrativa. Por essa razão, encontra-se na jurisprudência, bem como na compreensão de alguns atores do sistema de justiça, o que Aury Lopes Jr. denomina de “discursos simplistas” que advogam para a não sujeição do inquérito policial ao escrutínio legal. O autor ressalta que é crucial, no contexto de um Estado de Direito, que a investigação esteja balizada pelas garantias processuais e constitucionais[2].
Duas considerações iniciais advêm de referida acepção. De um lado, significa que a prática do direito de defesa ou mesmo a ideia de investigação defensiva são direitos garantidos no âmbito de uma investigação criminal, pois seriam consequências do sistema constitucional vigente (em especial, da ampla defesa e da paridade de armas).
De outro lado, evidencia-se o desarranjo na orientação da investigação criminal, que não possui um rito próprio, uma racionalidade que a guia e a controla, ficando à revelia do casuísmo e de eventuais capacidades intuitivas e dedutíveis das autoridades investigadoras[3].
É diante deste contexto que alguns autores, como Fernanda Vilares e Eliomar da Silva Pereira, reforçam a necessidade de se pensar sobre o desenvolvimento de uma teoria geral da investigação. Tal teoria, em tese, poderia (i) evitar a ocorrência tratamentos diferenciados, seletivos ou arbitrários nos inquéritos policiais, assim como (ii) potencializaria a capacidade dos investigadores de organização, ampliação de seu conhecimento sobre o fato penal, angariação da documentação relevante, (iii) tudo enquanto observam balizas legais que mitigariam o risco de questionamento sobre a licitude dos métodos investigativos utilizados[4].
Conforme verbalizado por Eliomar da Silva Pereira, a investigação criminal “pressupõe tanto a interpretação fática das provas, quanto a interpretação jurídica das normas”, dependendo essencialmente “de uma teoria do crime para chegar ao ato último da imputação jurídica”[5].
Nesta perspectiva, concebe-se a premissa de que o processo penal é instrumental e que a imputação jurídico-penal está no norte da investigação criminal. A investigação é um exercício de pesquisa. Por meio dela, busca-se coletar informações para esclarecer uma ocorrência[6] e, consequentemente, justificar ou refutar referida imputação[7]. A construção dogmática pode fornecer um caminho lógico, desde o início da persecução criminal, para a verificação da ocorrência de um delito[8].
Essa premissa não advoga para a ideia de que o raciocínio na investigação deve ser dogmático e tampouco ignora o fato de que a dogmática também é um campo controverso, de genuína disputa científica. No inquérito policial, impera-se o pensamento abdutivo, de natureza zetética[9], em que se busca ampliar o conhecimento sobre determinado fato. Isso não significa que não deva haver qualquer diálogo entre a norma penal e a condução da investigação criminal.
Para ilustrar a proposta, segmenta-se a investigação criminal em cinco etapas:
Ponto de partida: dados fáticos
Avaliação dos tipos penais possivelmente relacionados aos dados fáticos
Determinação dos dados existentes e dos dados faltantes
Empreendimento de técnicas investigativas determinadas à luz dos dados faltantes
Validação das hipóteses investigativas
O direito material penal, em especial o tipo penal, pode informar o investigador e subsidiar e racionalizar a tomada de decisão acerca da estratégia mais adequada e eficiente de investigação. Esta dinâmica terá espaço sobretudo na segunda, na terceira e na quarta etapa da investigação.
Nesse sentido, a avaliação dos tipos penais possivelmente relacionados aos dados fáticos envolve uma reflexão sobre o direito material penal (segunda etapa). Tão importante quanto a dedutibilidade do tipo penal é a delimitação de seus respectivos elementos constitutivos, bem como a verificação dos elementos presentes e faltantes (terceira etapa). São esses elementos que devem guiar a busca por ampliação do saber sobre o fato penal. Como consequência, a acepção deste “vazio” é o que informará a tomada de decisão acerca de quais as técnicas investigativas devem ser utilizadas (quarta etapa)[10].
O investigador não está julgando o investigado ao agir desta maneira. O conceito de imputação, de fato, passa a ser levado em consideração desde o início, mas não há qualquer antecipação de julgamento. A imputação final será imbuída de elementos informativos, instrutórios e fruto de um exercício de valoração do Poder Judiciário.
A recomendação se baseia precipuamente em imaginar os tipos penais cabíveis em determinado fato objeto da investigação. Na sequência, deve-se elencar seus elementos e alocar a investigação criminal no caminho de preenchimento dos “vazios” de respostas quanto aos elementos articulados pela teoria do crime.
De uma forma genérica, por exemplo, a teoria da imputação objetiva questionará se determinada ação ou omissão criou um perigo proibido e se referido perigo se realizou no resultado[11]. Servindo como parâmetro para a investigação criminal, tais questionamentos devem fazer parte da indagação do investigador[12]. Mais especificamente, para fins didáticos, apresenta-se abaixo um possível cenário no qual a dogmática penal poderia informar e assistir o gerenciamento do inquérito policial.
Em especial, a alocação do direito material como referência para a condução da investigação pode ser consideravelmente importante no contexto da criminalidade econômica, cuja persecução possui uma série de desafios particulares, como a dinamicidade e a complexidade das atividades econômicas, a dificuldade e a amplitude da regulamentação jurídica de referidas atividades, a considerável problemática da responsabilização penal no âmbito de empresas (em que há fragmentação do conhecimento e divisão de tarefas), assim como a utilização crescente de figuras “porosas” de perigo abstrato, tipos penais abertos e tipos penais de acessoriedade administrativa[13].
Tome-se como exemplo os delitos previstos no caput e no parágrafo único do art. 4º da Lei 7.492/86 (crimes de gestão fraudulenta e de gestão temerária). Uma das discussões travadas no âmbito dos crimes contra o sistema financeiro nacional (SFN) reside na imprecisão dos limites objetivos em relação ao alcance de referidos tipos penais. Sucintamente, uma das teses aventadas, com o intuito de superar a vagueza da redação típica e recuperar o sentido do tipo[14], é a de que referidos tipos penais possuem em seu horizonte de proteção a evitação da ocorrência de um risco sistêmico[15].
Aquele que conduz a investigação não é obrigado a determinar se houve um risco sistêmico promovido pelo investigado no SFN. Mas a consciência acerca deste requisito pode contribuir na definição da rota a ser seguida pela investigação policial. A tipologia indicaria ao investigador que a dúvida acerca da realização dos tipos penais de gestão fraudulenta ou temerária apenas pode ser solucionada por meio da resposta à pergunta “a conduta de X colocou em risco a normalidade do SFN?”.
Em seguida, naturalmente, se questionaria “qual a melhor estratégia investigativa para a ampliação de conhecimento acerca da ocorrência de eventual risco sistêmico”? Diante de tais vazios (ou melhor, da definição de quais são os vazios da apuração), tende-se a ficar mais claro qual deve ser o percurso da investigação.
Novamente à luz do direito material, como se entende que mesmo os crimes de perigo abstrato não podem subsistir sem, ao menos, uma possibilidade não irrelevante de lesão ao bem jurídico, a investigação terá que apurar se a instituição financeira em questão possui relevância econômico-financeira.
A dogmática atribui sentido concreto à tal relevância, apontando como critério a integração da instituição financeira ao grupo daquelas que são too big to fail ou to interconnected to fail[16]. Apenas a título ilustrativo, a consideração de que o risco sistêmico ao SFN exige que a instituição em questão seja consideravelmente grande ou tenha uma interconectividade financeira relevante provavelmente conduziria o investigador à averiguação do tamanho da instituição financeira e de seus vínculos com outras instituições (verificando, por exemplo, suas conexões societárias e suas relações contratuais[17]), para ampliar o conhecimento de fato relevante sobre o caso e angariar mais dados pertinentes à imputação penal.
Este e muitos outros exemplos (sobre os quais o espaço do presente artigo não permite mencionar) demonstram que o juízo de imputação jurídica deve estar presente em diversas etapas da persecução criminal, orientando desde as ações investigativas do inquérito policial até a fundamentação final do juiz no processo[18].
Em resumo: o papel do investigador deve ser operacional e intelectual. O diálogo entre o direito material e a investigação criminal pode (i) racionalizar a condução do inquérito policial, em especial atribuindo-lhe foco estratégico; (ii) mitigar os riscos de dedicação de recursos (humanos e pecuniários) na apuração de fatos e contextos irrelevantes para a imputação penal e (iii) representar uma efetiva economia processual, ao reduzir eventuais questionamentos sobre a licitude das medidas investigativas utilizadas ou sobre a própria tipicidade da conduta examinada.
Possíveis raciocínios que se pautem no direito material, da mesma forma como eventuais descobertas factuais, podem ter o condão de alterar a rota da investigação, mudando sua direção, reduzindo ou aumentando seu escopo. No final das contas, o diálogo com o direito material e com a tipologia penal apenas fortalece os trabalhos de investigação criminal.
[1] VILARES, Fernanda Regina. Disciplina é liberdade: por um método na investigação. Revista Consultor Jurídico, quinta-feira, 16 de maio de 2024.
[2] LOPES, JR. Aury. Nulidades e ilicitudes do Inquérito não contaminam o Processo Penal?. Revista Consultor Jurídico, quinta-feira, 16 de maio de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-dez-19/limite-penal-nulidades-ilicitudes-inquerito-nao-contaminam-processo-penal/.
[3] VILARES, Fernanda Regina. Disciplina é liberdade: por um método na investigação. Revista Consultor Jurídico, quinta-feira, 16 de maio de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-08/fernanda-vilares-metodo-investigacao/.
[4] De uma forma geral: PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da investigação criminal. 3. ed., São Paulo: Almedina, 2022; VILARES, Fernanda Regina. Disciplina é liberdade: por um método na investigação. Revista Consultor Jurídico, quinta-feira, 16 de maio de 2024.
[5] PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da investigação criminal. 3. ed., São Paulo: Almedina, 2022, p. 491.
[6] VILARES, Fernanda Regina. Processo Penal: Reserva de Jurisdição e CPIs. São Paulo: Onixjur, 2012, p. 195.
[7] Idem, p. 493.
[8] Idem.
[9] VILARES, Fernanda Regina. Disciplina é liberdade: por um método na investigação. Revista Consultor Jurídico, quinta-feira, 16 de maio de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-08/fernanda-vilares-metodo-investigacao/.
[10] Idem.
[11] GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 33-132.
[12] PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da investigação criminal. 3. ed., São Paulo: Almedina, 2022, p. 510-511.
[13] SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, Limites e Alternativas. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2012, p. 65-68.
[14] FELDENS, Luciano. Gestão fraudulenta e temerária de instituição Financeira: contornos identificadores do tipo. In: VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flávia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (Coordenadores) Direito Penal Econômico: crimes financeiros e correlatos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 82
[15] Idem, p. 80-113.
[16] Idem.
[17] Idem.
[18] PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da investigação criminal. 3. ed., São Paulo: Almedina, 2022, p. 524.