A (con)fusão está no ar

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Fusões, aquisições, joint-ventures, todo tipo de associação entre empresas traz como consequência a elevação de concentração em mercados. É comum que essas operações passem pelo crivo da autoridade antitruste das jurisdições onde ocorrem, que tem como objetivo impedir que estes “atos de concentração econômica” sejam prejudiciais ao consumidor final. No Brasil, o responsável por proteger a concorrência e o bem-estar do brasileiro chama-se Cade.

No último dia 15 de janeiro, um Memorando de Entendimento (MoU) foi assinado entre a Gol e Azul, sinalizando uma possível fusão. A Gol, que estava em apuros financeiros, entrou com pedido de recuperação judicial (Chapter 11 nos EUA) no início de 2024, devendo sair desta situação entre maio e junho.

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A Azul optou por reestruturar sua dívida, mas recuperou-se no 4º trimestre de 2024, ao apresentar lucro líquido ajustado de R$ 62,4 milhões. Ou seja, as duas, que tinham dívidas de cerca de R$ 30 bilhões cada uma, estão se reorganizando financeiramente com êxito, uma vez que, operacionalmente, são sólidas, estáveis e apresentam margem operacional melhor até que a Latam[1].

É fato que a pandemia teve um impacto direto sobre a saúde financeira das empresas aéreas no mundo todo, uma vez que as pessoas pararam de viajar. Por isso, vários governos deram ajuda financeira e fiscal para o setor por um tempo determinado. Não obstante, nenhum deles propôs ou apoiou fusões no setor.

Ao contrário, nos EUA, por exemplo, a JetBlue foi obrigada a desistir da aquisição da Spirit, depois da manifestação contrária de um dos órgãos americanos antitruste (DOJ). Na Europa, a IAG (dona de Iberia e British Airways) foi impedida de adquirir a Air Europa.

No Brasil, a sugerida operação criaria uma empresa com mais de 60% de mercado e, dadas as condições estruturais do setor brasileiro, é forçoso reconhecer que, caso aprovada esta fusão, o consumidor seria prejudicado.

Aliás, estudo do Cade[2] de 2017 já apontava que o nível de concentração vigente no mercado de aviação comercial era preocupante. De acordo com o órgão, o setor aéreo no Brasil apresenta um conjunto de condições que limita a competição. Barreiras legais à entrada, limitação de infraestrutura em aeroportos coordenados e altos níveis de investimento para a operação, por si só, criam um ambiente oligopolizado.

Nos EUA, há mais de cinco empresas. No Brasil, há apenas três, que dominam os principais aeroportos. Some-se a isso o fato de o setor envolver características de economia de rede, que dificultam a entrada de um competidor efetivo no curto prazo. Não por menos existe a Anac, órgão regulador, que deve minimizar as falhas de mercado.

Dada a elevadíssima probabilidade de exercício de poder de mercado pela nova empresa originada, qualquer concentração estrutural traz sérios prejuízos ao brasileiro que viaja de avião. Logo, a única justificativa para a aprovação dessa fusão seria a comprovação irrefutável de que a “não fusão” (contrafactual) prejudicaria ainda mais o consumidor, o que nos obrigaria a avaliar dois aspectos: (i) as eficiências geradas; e (ii) a possibilidade de uma das firmas (ou as duas) falirem.

No primeiro caso, há que se analisar de forma minuciosa se as eficiências sugeridas seriam cumulativamente: (1) específicas da operação, (2) verificáveis por meios razoáveis e prováveis, (3) repassadas ao consumidor e (4) passíveis de se materializarem em menos de 2 anos.

Como se percebe, os pré-requisitos não são triviais. Falar de “economia nas compras”, por exemplo, não é aceitável, na medida que se caracterizariam como economias pecuniárias, com disputa de margem ao longo da cadeia. Tampouco é razoável o argumento de que se terá uma “empresa forte nacional”. Primeiro, porque todas elas têm capital estrangeiro (ainda bem!). Segundo, porque este velho filme já foi visto na história brasileira sem ganhos para o consumidor (Varig é um dos casos).

Mais absurda ainda seria apresentar a defesa pela “tese da empresa falida”[3], que, pela jurisprudência americana e brasileira, precisaria passar pelos requisitos cumulativos:

  1. mostrar que a firma (supostamente falimentar) é incapaz de resolver suas obrigações financeiras no futuro próximo;
  2. demonstrar que ela não seria capaz de se reorganizar de forma bem-sucedida, sob o capítulo 11 da Lei Americana de falências;
  3. comprovar que a empresa fez esforços sem sucesso para conseguir alternativas razoáveis de aquisição de ativos da firma falida, de forma menos danosa à competição, para manter seus ativos tangíveis e intangíveis no mercado e;
  4. haver a confirmação de que sem a aquisição, os ativos da firma falida sairiam do mercado. Sendo a resposta “não” logo para o primeiro quesito, ainda que seja o mesmo para o resto, resta claro que não se trata de um caso como este.

Vale lembrar que tanto o argumento de eficiências quanto o da firma falida tornam-se ainda menos aceitáveis quando existe a possibilidade de a recuperação das duas empresas dar-se por meio de crescimento orgânico do mercado, como tem sido observado.

O setor, em 2024, apresentou a maior taxa média de ocupação desde 2002 (de 84%), início deste registro; e o volume de passageiros teve aumento de 5% em 2024, contra 2023, chegando a 93,4 milhões transportados, número próximo dos 95 milhões de 2014 (quantidade mais elevada observada até hoje).

Em suma, apesar de não haver argumentos econômicos que justifiquem esta fusão, nota-se que, desde 15 de janeiro a (con)fusão está no ar!


[1] Dados dos DREs das três empresas corroboram essa afirmação.

[2] https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/cadernos-do-cade/mercado-de-transporte-aereo-de-passageiros-e-cargas-2017.pdf

[3] Massimo Motta. Competition Theory: theory and practice, seção 5.1.