A concomitância das alíquotas reduzidas e do cashback na reforma tributária

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A aprovação da reforma tributária pela Emenda à Constituição 132/2023 em dezembro do ano passado incumbiu o Poder Legislativo de significativo desafio para este ano de 2024: aprovar a (ou as) lei(s) complementar(es) que regulamentarão o novo modelo de tributação. O governo já apresentou seu primeiro Projeto de Lei Complementar ao Congresso Nacional, que ainda deverá ser discutido e alterado.

Frente aos avanços da discussão, é necessário que se tenha sempre no horizonte as razões e fundamentos da reforma, bem como sua evolução para, diante dessas diretrizes, melhor compreender e delimitar sua operacionalização.

A tramitação da EC 132/2023 se deu por um processo legislativo particularmente intenso, iniciado com o projeto base da PEC 45/2019, que se tornou uma proposta “mista” ao englobar os principais pontos contidos na posterior PEC 110/2019, e sobre a qual foram incorporadas diversas alterações por numerosas emendas.

Algumas dessas alterações afetaram aspectos fundamentais da proposta inicial. Conforme o texto original da PEC 45/2019 e Notas Técnicas do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), o novo IVA havia sido originalmente concebido com uma alíquota única, sem exceções. Esse modelo, contudo, foi substituído por uma gradação de alíquotas de acordo com o bem ou serviço.

Talvez o principal exemplo de alíquota diferenciada como representação da finalidade extrafiscal do novo sistema seja aquele criado para os alimentos in natura destinados ao consumo humano, dotados de 60% de redução da alíquota geral, e da Cesta Básica Nacional de Alimentos (CBNA), com seus componentes sujeitos à tributação em alíquota zero pelo IBS/CBS.

A composição da CBNA e a delimitação dos alimentos abrangidos pela alíquota reduzida tem sido objeto de ampla discussão tanto pelo Grupo Técnico criado pelo Executivo no âmbito do Programa de Assessoramento Técnico à Implementação da Reforma da Tributação sobre o Consumo (PAT-RTC), quanto por entidades civis.

Tais alimentos encontram-se listados tanto na proposta de Lei Complementar encaminhada pelo governo ao Congresso Nacional (o PLP 68/2024), como por aquela da Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS).

A diferença entre as propostas traz à tona importantes debates para o futuro da tributação no país: deve se dar protagonismo à redução da carga tributária ou ao exercício da justiça tributária? Paralelamente, deve prevalecer a simplificação do sistema tributário ou a garantia de tratamento especial para os mais necessitados?

Nesse sentido, como se sabe e vem sendo abundantemente mencionado pelo governo e por diversos entes privados, todo e qualquer tratamento diferenciado garantido a determinado setor ou grupo de mercadorias implica, necessariamente, em um aumento proporcional da alíquota geral aplicável sobre todas as demais operações.

Isso porque, como leciona o professor Sérgio André Rocha, a tributação é uma função das atividades delegadas ao Poder Público[1]. Quanto mais extensa (e ambiciosa) a lista de direitos a ser garantida pelo Poder Público, maior deve ser a carga tributária por ele exigida.

Portanto, é necessário que seja sopesada a abrangência das operações e mercadorias sujeitas à alíquota diferenciada de forma a buscar a maximização destes direitos fundamentais e sociais almejados.

Em paralelo, na versão aprovada da proposta, as alíquotas favorecidas coexistem com o mecanismo do cashback com a devolução parcial, às famílias de baixa renda, do imposto incidente sobre suas aquisições de bens e serviços.

Ambas as iniciativas indicam uma preocupação com os demais aspectos da tributação além do meramente arrecadatório, buscando garantir, também por meio do sistema tributário, direitos fundamentais e sociais constitucionalmente previstos à população brasileira.

No entanto, a aplicabilidade simultânea de ambos os instrumentos suscita um questionamento relevante nesta discussão: qual será o caminho adotado para alcançar o fim social proposto? A conjugação desses dois instrumentos efetivamente viabilizará esse fim, ou a sua concomitância servirá para torná-lo letra morta?

Note-se: as alíquotas reduzidas e o cashback representam mecanismos opostos que almejam um mesmo fim, um por meio de um benefício indireto, que busca diminuir o preço de bens considerados como essenciais por meio da redução da sua tributação, e o outro por um benefício direto, revertendo valor monetário líquido da tributação para a população de baixa renda.

Sem adentrar no mérito da eficácia de cada um destes instrumentos, tema que vem sendo também debatido à exaustão dentro do escopo da reforma, podemos afirmar que o mecanismo da redução de alíquotas tomou posição de maior protagonismo, afastando, em parte, a eficácia do mecanismo do cashback.

Nesse sentido, como se verifica do proposto pelo PLP nº 68/24 apresentado pelo governo, será destinatário das devoluções o responsável por unidade familiar de baixa renda, assim considerada aquela que possui renda mensal per capita declarada de até meio salário-mínimo nacional.

No entanto, na medida em que houve a redução a zero do imposto sobre os bens da Cesta Básica e em 60% de produtos in natura, o governo em sua proposta limita o percentual do cashback em 20% da CBS e do IBS cobrado para bens no geral.

Ora, esse mesmo grupo de unidades familiares[2], conforme pesquisa recente do Instituto Locomotiva[3], utiliza em média 50,7% de sua renda mensal com gastos com alimentação. No entanto, não se pode dizer que sua alimentação se limita àqueles itens relacionados no PLP como básicos, uma vez que se trata de listagem bastante restrita – com apenas 15 itens e que sequer contempla proteína animal e outros itens presentes na sua alimentação e previstos nas Cestas Básicas estaduais em vigor, tal como biscoitos e bolachas (SP), linguiça, mortadela e salsicha (SP), charque (PE) e sardinha em lata (AL).

Ou seja, sob o pretexto de que os alimentos da cesta básica terão sua alíquota reduzida a zero e que carnes, frutas, verduras e legumes terão sua tributação reduzida, o governo reduziu também a devolução do imposto a percentual diminuto, aplicável apenas a uma parcela também reduzida dos gastos mensais das famílias de baixa renda.

Será, então, que esta concomitância dos dois sistemas não fará com que, ao final, mais uma vez a população de baixa renda arque com maior carga tributária, mantendo a regressividade do sistema?

Vale frisar: pela proposta governamental, permanecem integralmente tributados outros alimentos e itens básicos de higiene que também são bastante consumidos pela população de baixa renda, o que exigiria o seu efetivo retorno por meio do cashback, conforme proposta inicial da reforma.

Seja qual for o desenho final da(s) lei(s) complementar(es), a coexistência de ambos os caminhos gera o infeliz risco de anulação mútua de seus benefícios: as alíquotas reduzidas certamente resultarão em aumento relativo da alíquota geral enquanto beneficiam indiscriminadamente toda a população, ao passo que, por outro lado, o cashback corre o risco de ser esvaziado, por meio da redução do seu montante e alcance, hipótese em que representará significativo dispêndio operacional para o governo sem necessariamente impactar de forma tangível e efetiva a população mais pobre.

Eis aí evidenciado o grande desafio político e legislativo a ser enfrentado a seguir: equilibrar a eficácia na busca pela realização dos direitos fundamentais e sociais e a simplificação e a redução da carga tributária nacional.

[1] ROCHA, Sério André. Fundamentos do direito tributário brasileiro. 2. Ed. – Belo Horizonte, MG: Casa do Direito, 2023. Página 37.

[2] Conforme metodologia do Instituto Locomotiva, definidos como “Classe D”, com rendimentos familiares entre R$ 1,3 mil e R$ 5,2 mil.

[3] Pesquisa amplamente noticiada em 2023, conforme link https://exame.com/esg/consumo-anual-alimenticio-da-classe-c-movimenta-r-3456-bilhoes-segundo-o-instituto-locomotiva/.