Olá, caro leitor!
Seguimos, nesta primeira coluna do ano de 2024, com o tema iniciado em dezembro: outra vez, a jurisprudência restritiva que o Supremo Tribunal Federal (STF) vem elaborando, com claros sinais retrocessivos (e contraditórios), quanto à competência material da Justiça do Trabalho e à interpretação do art. 114 da Constituição Federal.
Examinávamos, na coluna passada – para além de algumas pitadas de direito comparado –, a evolução do “estado normativo-hermenêutico de coisas”, acerca da competência do nosso Judiciário trabalhista, entre outubro de 1988 (promulgação da Constituição cidadã) e dezembro de 2004 (Reforma do Poder Judiciário, com profunda expansão do art. 114 da CRFB). Vimos que, até aquele ponto, a evolução havia sido francamente ampliativa, sem qualquer margem razoável de eventos a sugerir a necessidade/conveniência de uma inflexão restritiva. A mensagem legislativa, com efeito, foi claríssima: expandir, não restringir.
Partamos daí.
Para melhor entender a questão, vamos analisar os principais casos – ou classes de casos – julgados a partir desta nova perspectiva competencial advinda com a Emenda 45/2004, primeiramente à vista do inciso I do art. 114 da CRFB (que, como dissemos no já distante mês de dezembro de 2023 – e 2024 aparentemente “voará” diante dos nossos olhos, mais ainda que o anterior –, já não cuidava de meras relações de emprego, mas de relações de trabalho “in genere”).
Com efeito, se originalmente o próprio caput do art. 114 tratava de dissídios entre trabalhadores e empregadores (logo, relação de emprego), atualmente, com a nova redação da EC 45/2004, já não se utiliza a expressão “dissídios entre trabalhadores e empregadores”, mas a expressão “relação de trabalho”, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
A partir disso, em um saudável exercício de ingenuidade – como se por acaso não soubéssemos da jurisprudência ulteriormente assentada no âmbito do STF –, caberia indagar: qual seria o mais óbvio conteúdo semântico a se extrair do atual art. 114, I, da CRFB, em relação, p. ex., aos servidores públicos do Poder Judiciário, regidos que estão pela Lei n. 8.112/1990 (Estatuto dos Servidores Públicos Federais). Ora, a relação entre o servidor público e a Administração Pública federal não configura, ao cabo e ao fim, uma relação de trabalho entre a União, que “presenta” as administrações do Poder Judiciário nacional, e os servidores da Justiça? A competência, então, não haveria de ser da Justiça do Trabalho, “ex vi” do novel art. 114, I, CRFB?
Estive pessoalmente na linha de frente desse marcante episódio da história judiciária brasileira, atuando pela Comissão Legislativa da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). Acreditávamos, então, que a nova expressão constitucional alcançava inclusive os trabalhadores estatutários, dado ser inegável a existência de relação de trabalho, em sentido lato, entre o servidor público e a Administração que o admite. É o que asseverava a própria Alice Monteiro de Barros (e aqui, mais uma vez, colho do ensejo para, na pessoa da saudosa lente da UFMG, saudar os todos os juristas e juízes de Minas Gerais):
“[…] Ora, embora a relação de trabalho do servidor estatutário (antigo funcionário público) seja institucional e não contratual, entendemos que ela estaria incluída no verbete. O fato de o regime ser institucional significa que as condições de trabalho e remuneração não são fixadas pelas partes, mas pelo Poder Público, mediante critério político-alicadministrativo. Não se excluiriam as ações desse servidor público, do âmbito da Justiça do Trabalho, como proposição emendada pelo Senado. Essa, portanto, seria inovação importante no que tange à tendência de ampliação crescente, não do Direito do Trabalho em si, mas da processualística trabalhista […]”.
Barros advertia, com efeito, que, embora a relação de trabalho do servidor estatutário – o antigo “funcionário público” (em sentido estrito) – seja de caráter institucional e não contratual, está certamente incluída na intelecção do verbete constitucional “relação de trabalho”. O fato de o regime jurídico ser institucional (e não contratual) significa tão somente que as condições de trabalho e de remuneração não são fixadas livremente – ou em qualquer medida – pelas partes, mas, ao revés, pelo Poder Público, mediante critérios político-administrativos fixados em lei. Daí que, a rigor, não se poderiam excluir as ações judiciais desses servidores públicos do âmbito de competência da Justiça do Trabalho (revelando-se, uma vez mais, os impactos da tendência “in fieri” do Direito do Trabalho no campo processual).
Como todos sabem, no entanto, não foi essa a tese a prevalecer no Supremo Tribunal Federal. Sob os auspícios da ADI 3395/DF (da Associação dos Juízes Federais do Brasil – Ajufe), ainda em sede de medida cautelar, o ministro Cezar Peluso deferiu medida liminar para, com efeitos “erga omnes”, desautorizar qualquer interpretação que extraísse do art. 114, I, da CRFB alguma competência material para que o julgamento de causas trabalhistas de servidores estatutários, porque não seriam “oriundas da relação de trabalho” em acepção constitucional.
Promovia-se, pois, uma sub-reptícia reconstrução semântica do conceito de relação de trabalho. Meses depois, o plenário do STF confirmava tal entendimento (DJ de 10/11/2006). Por fim, em 15 de abril de 2020, já sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, decidia-se, com composição plenária, que o disposto no inciso I do art. 114 da Constituição desafiava interpretação conforme à Constituição, sem redução de texto, no sentido de não abranger “causas ajuizadas para discussão de relação jurídico-estatutária entre o poder público dos entes da federação e seus servidores” (g.n.).
Não foi só. O imponderável começava a se desenhar, logo após a primeira confirmação da liminar, em 2006. Desde então até os dias atuais, esse precedente foi citado em milhares de ações e reclamações constitucionais, para os mais variegados efeitos, com relativo sucesso. Coube à jurisprudência do STF, pois, expandir o sentido originário do julgado – que tratava exclusiva e essencialmente de servidores estatutários – e alcançar quaisquer servidores sob regime administrativo (houvesse ou não um estatuto legal próprio subjacente, como é o Estatuto da Magistratura Nacional – LC 35/1979 – e a já citada Lei do Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União).
Desse modo, a exclusão da competência material da Justiça do Trabalho passa a se estabelecer desde que o regime jurídico do servidor público esteja sob a regência de alguma lei que se repute “administrativa” (como foi, outrora, o caso da Lei 500/1974, do Estado de São Paulo, que “[i]nstitui o regime jurídico dos servidores admitidos em caráter temporário”). Elegia-se, com isso, uma lógica e uma semântica de restrições concêntricas e progressivas da competência material da Justiça do Trabalho, que se espraiam para vários outros casos.
De todos eles, talvez os mais emblemáticos sejam os dos contratos de trabalho por prazo determinado celebrados com a Administração, sem concurso público, sob a égide do art. 37, IX, da CRFB. Trata-se de contratações admitidas em casos de necessidade temporária de excepcional interesse público, como, p. ex., se houver uma calamidade pública em determinado município, demandando a contratação de pessoas, em grande número e com grande urgência, para os cuidados que o momento impõe em relação à defesa civil, à reconstrução de habitações destruídas, à acomodação das pessoas, à distribuição de alimentos etc.).
O STF compreende atualmente que a competência para as respectivas ações trabalhistas será da justiça comum (e, note-se, ainda que tais trabalhadores temporários estejam sob a estrita regência da CLT, o que não parece guardar qualquer razoabilidade ou coerência). Restaram contrariados, portanto, os entendimentos iniciais que fixavam a competência da Justiça do Trabalho; entendimentos que, aliás, eu próprio, atuando na primeira instância, adotei em dezenas ou centenas de casos sob a minha jurisdição, uma vez que o Município de Taubaté havia promulgado lei municipal a prever essa hipótese de contratação por prazo determinado em razão de necessidade temporária de excepcional interesse público para várias situações distintas, estando todos esses trabalhadores, à altura, sob a regência concreta da CLT, por decisão do Poder Legislativo municipal (e, logo, eram trabalhadores com registro em CTPS, FGTS recolhido em conta vinculada, direitos típicos celetários etc.).
Confira-se, para a tese originária, o Conflito de Competência 7.128, de fevereiro de 2005 (ilustrativo de tantos outros da época):
“Contrato por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público. Típica demanda trabalhista contra pessoa jurídica de direito público. Competência da Justiça do Trabalho. Art. 114 da Constituição. Precedentes”. (STF, CC 7.128, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 2/2/2005)
Mas essa compreensão, de 2005 para 2023, alterou-se por completo. Especialmente a partir de 2008, passam a ser deferidas medidas cautelares – inclusive em reclamações constitucionais – e decisões plenárias que afastavam a competência material da Justiça do Trabalho em caso de empregados públicos sob a égide do art. 37, IX, da CRFB, com base na “ratio” da ADI 3.395, ainda que a relação de trabalho não fosse “relação jurídico-estatutária” (ADI 3.395).
É curioso (ou inquietante?) perceber como, em questão de três anos, o STF mudou diametralmente a sua compreensão para afastar da competência da Justiça do Trabalho as hipóteses do artigo 37, IX, da CRFB, mesmo que a regência concreta das relações de trabalho se dessem pela CLT. Esse processo de expansão hermenêutico-restritiva ganhou um ingrediente novo com o deferimento de medida liminar cautelar nos autos da ADI n. 2.135-DF (em que era relator originário o Min. Néri da Silveira), a reconhecer a inconstitucionalidade parcial da EC 19/1998 – quanto ao fim do regime jurídico único da Administração (CRFB, art. 39) – e a admitir, portanto, a repristinação do RJU e a extensão de regimes jurídicos tipicamente administrativos a empregados públicos, ampliando, nessas contratações especiais, os casos de incompetência material da Justiça do Trabalho.
A respeito, negando a competência da Justiça do Trabalho para reintegração de celetista (e isso, “in casu”, até mesmo antes do advento do RJU no âmbito do serviço público federal, com a promulgação da Lei 8.112/1990).
Ainda nessa ordem de ideias, o discurso universalizante das incompetências da Justiça do Trabalho chega ao ponto de questionar até mesmo a competência dos órgãos judiciários trabalhistas para os contratos de trabalho nulos celebrados pela Administração (algo que até meados da primeira década deste século estava fora de qualquer dúvida razoável, a ponto de o TST editar súmula a respeito: a Súmula 363 ainda dispõe que “[a] contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS”; e, logo, seria necessariamente a Justiça do Trabalho aquela competente para definir quais as vantagens devidas a esses servidores).
No campo das ações de indenização por danos materiais e morais decorrentes das relações de trabalho, por outro lado, a Justiça do Trabalho – apesar do texto literal do art. 114, VI, da CRFB – deparou-se com uma nova saga. Essa, porém, encerrada com um melhor epílogo, graças às boas instituições (e cito, por todas, a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho – Anamatra) e aos homens bons (e cito, por todos, Sebastião Geraldo de Oliveira, desembargador do TRT-MG e uma das maiores autoridades brasileiras em matéria de responsabilidade civil patronal por acidente de trabalho).
Mas essa história será contada no início de março.
Até lá, querido leitor. Você é réu do seu juízo.
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