A colisão aparente entre normas e a aplicabilidade do § 2º do art. 489 do CPC

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O presente artigo tem o intuito de refletir sobre a redação do texto de lei previsto no parágrafo 2º, art. 489 do Código de Processo Civil, para analisar se o termo “norma” deve ser interpretado como regra ou princípio. A redação do referido dispositivo legal dispõe que: “No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.”

A doutrina processualista se divide quanto à interpretação mencionada no dispositivo legal. Os autores Teresa Wambier, Maria Lúcia Lins da Conceição, Leonardo Ribeiro e Rogério Mello chamam atenção para o fato de que o legislador usou termo que não se encontra consolidado na doutrina pátria e, por isso, entendem que o enunciado tem uma redação complexa.[1]

A questão problemática apresentada no §2º do art. 489 do CPC está no termo “norma”, haja vista que o sentido não se apresenta unânime na doutrina. Explicam os autores que, enquanto o CPC fala em ponderação de normas, a doutrina fala, majoritariamente, em ponderação de princípios.

Sob a ótica desses doutrinadores, o magistrado deve assumir uma postura mais ativa quanto à escolha da norma no caso de colisão, devendo a opção adotada ser previamente refletida e detalhadamente fundamentada, a fim de que se garanta a clara apresentação da linha de entendimento que alicerçou a sua decisão.

Nelson Nery Junior e Rosa Nery criticam o texto normativo, pois entendem que há uma impropriedade na menção à técnica da ponderação, destacando que a ponderação deve ser interpretada à luz dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais. [2]

Nesse sentido, afirma Daniel Neves, que há uma impropriedade na referência à utilização da técnica de ponderação, o que pode levar ao equívoco de que toda a antinomia pode vir a ser solucionada através dessa técnica.  Para o citado autor, o juízo de ponderação está voltado para a solução dos conflitos entre os direitos fundamentais e os princípios previstos na Constituição Federal, os quais não se consegue resolvê-los pelas regras da hermenêutica clássica, aplicáveis, em regra, às normas. Por isso, o §2º, do artigo 489 do CPC deve ser analisado com cautela, para que não haja uma interpretação extensiva. [3]

Conclui-se, então, que as normas jurídicas são divididas em regras e princípios e que, ocorrendo colisão entre as normas, deverá o intérprete observar as técnicas adequadas para cada tipo normativo — regras e princípios. Ou seja, no conflito entre regras deve ser utilizado os critérios da hierarquia e da especialidade, além da aplicação do diálogo das fontes, por meio do qual se ponderam as fontes heterogêneas das regras, conferindo preferência às normas mais benéficas à tutela do direito. [4]

O autor destaca que a solução do conflito entre a regra e o princípio é extremamente sensível e difícil, afirmando que a regra deve prevalecer. Constata também, que é impossível aplicar determinadas regras, sem que ocorra uma violação clara a princípios constitucionais, pois, entende que não seria legítimo, nesse caso, defender-se pura e simplesmente a aplicação da regra no caso concreto, haja vista que qualquer juiz poderá deixar de aplicar uma regra com base em fundamentação.

Para esclarecer o seu raciocínio, Daniel Neves cita a previsão do artigo 300, §3º, do CPC, no qual prevê que a tutela de urgência não deve ser concedida se houver perigo de irreversibilidade fática, mas que ela vem sendo excepcionada pelos tribunais quando levar ao sacrifício definitivo de um direito evidente, ainda mais no caso de ser tal direito indisponível.[5] Verifica-se, portanto, a revelação de uma prática aplicada pelos tribunais antes mesmo da vigência do Código de Processo Civil de 2015.

Dentro desse mesmo raciocínio está o enunciado 25 da ENFAM, o qual prevê a possibilidade da concessão de tutela urgência, de efeitos irreversíveis, com a justificativa de que, diante do caso concreto, seja observada a garantia do acesso à Justiça.[6]

Dessa forma, no caso concreto, quando puderem ser aplicados diferentes princípios, com possibilidade de solução diversa, o juiz deverá optar por um dos princípios em detrimento do outro e, nesse caso realizará um juízo de ponderação, para tomar decisão sobre qual dos princípios deverá incidir no caso concreto. Assim, “deverá se orientar pelos valores que inspiram o princípio e justificar a aplicação de um deles em detrimento do outro”.[7]

Referido entendimento vem sendo aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), como no caso em que julgou a questão ambiental sobre queima da palha e a fuligem da cana-de-açúcar[8], pois, a discussão pairou sobre a ausência de dados científicos sobre danos ambientais e o processo cancerígeno. Tal situação, demonstrou uma clara tensão entre princípios, a qual foi resolvido pela ponderação, fundamentada e racional, entre os valores conflitantes.

Na visão de Cassio Scarpinella Bueno[9], o § 2º do art. 489 do CPC, trata da qualidade da fundamentação da sentença, pois, na sua visão, o dispositivo impõe que a decisão indique os critérios de ponderação que foram empregados pelo juiz para solucionar eventual conflito entre normas jurídicas, o que se harmoniza com o art. 8º[10] e também com o art. 140[11] do CPC.

José Garcia Medina entende que o dispositivo trata sobre a “hipótese de colisão entre direitos regulados por disposições que têm conteúdo de princípios, hipótese em que, para parte da doutrina seria o caso de ‘ponderar’ para se definir qual dos princípios deveria ser aplicado”.[12]

Fredie Didier Júnior analisa o tema das normas, previsto no parágrafo 2º do art. 489 do CPC, a partir do pensamento de Alexy, para saber se trata de conflitos entre regras ou entre princípios, o qual leciona que para solucionar tais conflitos, “é necessário que uma das regras integre uma hipótese de exceção à outra, ou então que um a delas seja invalidada e expurgada do ordenamento, em nome da subsistência da outra”.[13] Dessa forma, constatada a contradição entre “juízos concretos de dever-ser”, se ela não pode ser sanada com a inserção de uma “cláusula de exceção” em uma das regras, então se deve decidir qual delas deve ser invalidada.

Dessa maneira, reflete que os princípios não são tomados como exceção ao outro e nenhum deles precisa ser invalidado.  O que existe é uma “dimensão de pesos” (não de validade). Com isso, o princípio que mais pesar tem preferência em relação ao outro. Nesse ponto, Fredie Didier cita a obra de Humberto Ávila, intitulada “Teoria dos Princípios”, que examina essa diferenciação, trazendo que a ponderação não é exclusividade dos princípios[14].

A partir dessas considerações, Fredie Didier compreende que a técnica utilizada para superar o conflito normativo, exige do juiz uma justificação. [15]

Diante do que foi alhures exposto, entende-se que a discussão sobre conflito de normas está longe de terminar, mas, de todo modo, a doutrina processual, ao analisar o parágrafo 2º do art. 489 do CPC, chama atenção da necessidade do aplicador da lei observar a hermenêutica jurídica e, sendo caso de colisão de normas, deverá justificar, de forma fundamentada a decisão, dever esse previsto no art. 93, IX na Constituição Federal e reforçado no art. 11 do CPC que, quando violado, gerará a nulidade da decisão judicial.

Por fim, é importante ressaltar que a falta da justificativa específica contida na redação do §2º, do art. 489 do CPC, gera a possibilidade da parte interpor os embargos de declaração nos termos do art. 1022, II, do CPC, para que a decisão judicial seja completa, cumprindo o Poder Judiciário a sua missão de ofertar uma prestação jurisdicional qualificada e transparente, observando-se os valores e as normas previstas na Constituição Federal e na Lei Processual Civil, nos termos do art. 1º, do CPC.

[1] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogerio Licastro Torres. Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p.796.

[2] JUNIOR, Nelson Nery, NERY Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado I, 21. ed. Rev. atual. e ampl. — São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p.1107

[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção, Manual de Direito Processual Civil, 10ª Ed., Ed. Juspovm, 2018 p.192

[4] NEVES, Daniel Amorim Assumpção, p.192

[5] NEVES, Daniel Amorim Assumpção, p.192

[6] Enunciado 25 da ENFAM: “A vedação da concessão de tutela de urgência cujos efeitos possam ser irreversíveis (art.300, § 3°, do CPC/2015) pode ser afastada no caso concreto com base na garantia do acesso à Justiça (art. 5°, XXXV, da CRFB)

[7] NEVES, Daniel Amorim Assumpção, p.192

[8] REsp n. 1.285.463/SP, Relator Ministro Humberto Martins, Segunda Turma do STJ.

[9] Bueno, Cássio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil, 3 ed., Ed. Saraiva, São Paulo, 2017, p.414.

[10] Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

[11] Art. 140 O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.

[12] MEDINA, José Miguel Garcia, MEDINA, Janaina Marchi, Guia Prático do novo Código de Processo Civil Brasileiro, Ed. RT, 2016, p.114

[13] DIDIER JR. Fredie, BRAGA, Paula Sarno e Oliveira, Rafael Alexandria de, Curso de direito processual civil, 10. ed.- Salvador: Ed. Jus Podivm, V 2, 2015. p. 324.

[14] DIDIER JR. Fredie, BRAGA, Paula Sarno e Oliveira, Rafael Alexandria. p. 325.

[15] DIDIER JR. Fredie, BRAGA, Paula Sarno e Oliveira, Rafael Alexandria de, p. 325.