A carroça, os bois e a transição energética

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Para administrar minha ansiedade infantil de querer tudo ao mesmo tempo, meu pai costumava utilizar um velho e sábio ditado: é preciso aprender a não passar a carroça na frente dos bois. Aquelas palavras me acompanharam pela vida. Hoje me pergunto, ao olhar as diversas propostas que estão sendo discutidas para a transição energética brasileira, se não estamos a passar o carro na frente dos bois.

Não é novidade que o Brasil é referência mundial em energias renováveis e tem uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo. Contamos com recursos abundantes e diversos para transitar energeticamente, ao mesmo tempo em que podemos oferecer à sociedade que essa transição ocorra de forma equânime e sustentável. Contudo, estamos discutindo diversas alternativas sem um olhar integrado e sistêmico para desenvolver essa transição de forma segura e com economicidade.

Achei interessante o gráfico da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) que ilustra o índice de Gini elétrico, coeficiente criado como instrumento para medir a concentração de renda, que varia numericamente de 0 a 1. Quanto mais próximo de 1, maior é a situação de desigualdade.

A EPE fez, então, uma analogia para estimar a evolução da desigualdade no consumo de eletricidade – pobreza energética – pelos extratos de renda familiar no período de 2005 até 2019. O gráfico traz dados interessantes que falam por si. Em que pese termos reduzido a desigualdade energética até 2012, a partir de 2015 houve uma reversão dessa trajetória, evidenciando que a desigualdade na distribuição de renda está fortemente correlacionada ao padrão do consumo de energia.

Isso reforça a estratégia e o cuidado com que precisamos discutir essa transição, de forma equilibrada com o trilema energético – segurança, equidade energética e sustentabilidade ambiental. Essa transição não pode olhar apenas para a introdução de fontes renováveis em uma matriz já muito renovável só para seguir o fluxo de outros países, mais comprometidos em termos de emissões. Ela precisa considerar os nossos potenciais produtivos e a nossa capacidade de assumir custos neste movimento.

Países emergentes têm um desafio maior na corrida pelo atingimento das metas de redução das emissões de carbono, pois precisam suportar as perspectivas de aumento do consumo energético e de fatores de produção, em uma economia com elevado potencial de crescimento. E muitos desses países, e aqui incluo o Brasil, precisam ainda modernizar a regulação de setores estratégicos – a exemplo do gás natural – para que essa transição aconteça de forma orgânica, com razoabilidade econômica.

Estudo do BNDES apontou que a neutralidade em carbono não pressupõe um mundo sem petróleo, gás e combustíveis fósseis, mas, sim, um mundo que compense as emissões impossíveis de serem evitadas, visando a sua neutralização. É, portanto, simplista achar que reduzir ou zerar a produção de petróleo e gás é o melhor caminho sem antes analisar os impactos econômicos em termos de ajuste fiscal e do balanço comercial e o custo-benefício das opções, inclusive sociais.

Em relação ao gás natural, especificamente, há ainda muito o que avançar na discussão do papel que este insumo/matéria-prima pode representar na transição energética do país. Primeiro, pela importância que desempenha para a segurança energética e aqui incluo a soberania energética, tendo em vista que o Brasil, diferentemente da Europa, é um grande produtor de gás natural.

Segundo, porque pode impulsionar outras rotas, como o biometano, que é equivalente ao gás por possuir as mesmas características, portanto, pode ser facilmente escoado pela mesma rede, e o hidrogênio, no qual há desafios na mistura, mas grande correlação em termos de cadeia de valor ao gás natural.

Diante disso, volto ao ditado de “passar a carroça na frente dos bois”. Hoje, há discussão no Congresso sobre a mistura obrigatória de hidrogênio e biometano ao gás natural. E aqui é importante ressaltar que um dos desafios para a oferta em grande escala do hidrogênio é, justamente, o fato de não ser facilmente misturado ao gás para uso da mesma infraestrutura, dependendo de uma análise técnica robusta para efetivá-la. Segundo, em relação ao biometano, em que a proposta de aquisição compulsória tem grande potencial em aumentar o custo do gás, repassando esse aumento para a sociedade brasileira, via aumento do preço dos produtos industriais ou via aumento na conta de luz.

É imperativo avaliar as diferentes opções, isso é inquestionável. Agora, é um tanto imprudente antecipar decisões que precisam ser amplamente avaliadas, inclusive se os resultados que se pretende alcançar poderão, de fato, ser alcançados pelas medidas ora “impostas”.

O debate central que precisamos endereçar, enquanto sociedade, é: precisamos subsidiar, neste momento, recursos energéticos altamente custosos para diversificar a transição que pode ser muito bem endereçada com os atuais recursos que temos? Qual custo a sociedade brasileira é capaz de suportar para implementar essas novas fontes? Qual impacto econômico e fiscal estamos dispostos a enfrentar para não discutir com profundidade as medidas em curso?

Talvez seja importante dar um passo atrás e avaliar, de forma integrada, os diferentes caminhos que podemos tomar para atingir ao mesmo objetivo. Há, no momento, uma euforia que precisa ser contida com responsabilidade, sob o risco de aumentarmos o custo de se produzir no Brasil.

Energia limpa é um diferencial, mas energia competitiva é fundamental para atrair investimentos, aumentar renda e emprego e tornar a redução das emissões de carbono não apenas em âmbito nacional, mas também setorial, algo factível, além de tornar a energia acessível e equânime para todas as famílias brasileiras.