O presente artigo realiza uma síntese do trabalho monográfico apresentado pelo mesmo autor na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro[1].
A Súmula 347 do STF, que prevê que “o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público” foi criada em 1963 com base no julgamento do RMS 8.372/CE (1961). Durante o julgamento do mencionado processo, o ministro relator Pedro Chaves fez uma distinção entre “declaração de inconstitucionalidade” e a “não aplicação de leis inconstitucionais”. A “declaração de inconstitucionalidade” seria uma competência reservada aos tribunais judiciais, enquanto a “não aplicação de leis inconstitucionais” configuraria uma obrigação de qualquer Tribunal ou órgãos de qualquer um dos Poderes da República, o que incluía os Tribunais de Contas (TCs).
Uma problemática que se destaca é o fato de parte da doutrina[2] começar a sustentar, após a Constituição de 1988, o argumento de que a Súmula 347 não mais subsistiria frente à nova ordem constitucional.
Com base nisso, a diferenciação entre os conceitos de “controle de constitucionalidade”, “apreciação de constitucionalidade” e “inaplicação por inconstitucionalidade” é fundamental para o aprofundamento do tema.
O “controle de constitucionalidade” envolve a competência exclusiva e irrenunciável do Poder Judiciário. Isso significa que apenas o mencionado poder possui a atribuição de realizar esse controle, sendo o único legitimado para declarar a inconstitucionalidade de leis.
Em contraste, a “apreciação de constitucionalidade” pode ser compreendida como um juízo incidental e interpartes realizado pelo Tribunal de Contas, dentro de suas competências constitucionais específicas, em relação a um ato ou norma que está sob análise em relação à Constituição, nos termos da Súmula 347 do STF.
Pontes de Miranda, em 1935, já defendia a capacidade dos TCs de avaliar a constitucionalidade de leis[3]. Nesse cenário, com o fim de elucidar o seu raciocínio, o autor menciona o exemplo de uma suposta lei que venha a retirar do Tribunal de Contas determinada competência. À luz do exemplo, o Ponte de Miranda argumenta que o Tribunal deverá julgar-se competente e, por consequência, compreender a lei como inconstitucional.
Já a “inaplicação por inconstitucionalidade” nasce da doutrina de Hely Lopes Meirelles, a qual sustentava, anteriormente à Constituição de 1988, a possibilidade de o Poder Executivo “inaplicar” uma lei que entendesse como inconstitucional[4]. O autor defendia que “quem descumpre lei inconstitucional não comete ilegalidade, porque está cumprindo a Constituição”.
Após a Constituição de 1988 tal teoria se desatualizou, dado o evidente alargamento do rol de legitimados para acesso ao controle concentrado de constitucionalidade, o que inclui o chefe do Poder Executivo. Contudo, o STF, no julgamento do processo Petição 4656/PE[5], mais precisamente por meio do voto da ministra Cármen Lúcia no mencionado processo, reinterpretou e atualizou tal teoria. Segundo a relatora, “embora o enfoque desse entendimento [de Hely Lopes] dirija-se à atuação do Chefe do Poder Executivo, parecem ser suas premissas aplicáveis aos órgãos administrativos autônomos, constitucionalmente incumbidos da relevante tarefa de controlar a validade dos atos administrativos, sendo exemplo o Tribunal de Contas da União, o Conselho Nacional do Ministério Público e o Conselho Nacional de Justiça”[6].
Assim, a “inaplicação por inconstitucionalidade” pode ser entendida como a consequência prática da “apreciação de constitucionalidade” a ser realizada pelos TCs quando a conclusão é no sentido de que o ato ou norma viola, no caso concreto, o texto da Constituição, não havendo que se confundir a inaplicação com a declaração de inconstitucionalidade, dado que a declaração decorre do controle de constitucionalidade.
A Teoria dos Poderes Implícitos, introduzida no Brasil por Rui Barbosa[7], também contribui para a leitura da problemática. Segundo tal teoria, se a Constituição assegura determinada competência, ela também, de modo implícito, resguarda os meios para a efetivação dessa competência[8]. Tal teoria contribui para uma visão que entende pela recepção da Súmula 347 pela Constituição de 88, considerando que Tribunal de Contas é um órgão autônomo e que, como tal, também busca a efetividade do texto constitucional no âmbito de suas competências.
Com relação à jurisprudência, o STF, no ano de 2021, emitiu algumas decisões[9] que, apesar de o voto do relator ministro Alexandre de Moraes ter sido idêntico – com a defesa de não subsistência da Súmula 347 frente à Constituição de 1988 –, a redação dos acórdãos foi feita de duas maneiras. Em um primeiro acórdão se estabeleceu que o “o Tribunal de Contas da União, órgão sem função jurisdicional, não pode declarar a inconstitucionalidade de lei federal com efeitos erga omnes e vinculantes no âmbito de toda a Administração Pública Federal”[10], o que, a contrário sensu, permitiria a possibilidade de o efeito ser interpartes.
Por outro lado, em outro acórdão, envolvendo dois MS[11], o ministro adotou uma visão mais restrita, no sentido de afirmar que “a declaração incidental de inconstitucionalidade somente é permitida de maneira excepcional aos juízes e tribunais para o pleno exercício de suas funções jurisdicionais”[12].
Já no ano de 2023, o tema voltou a ser pauta no STF no bojo do Recurso Extraordinário com Agravo n. 1208460/GO, o qual envolve decisão do Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás (TCM-GO). Em resumo, o TCM decidiu pela inaplicação por inconstitucionalidade de leis municipais de Chapadão do Céu relacionadas a reajuste de salários de servidores, vereadores e prefeitos em 2005 e 2006. O Tribunal de Justiça de Goiás anulou a decisão do TCM/GO, alegando que apenas o Poder Judiciário pode declarar inconstitucionalidades. No STF, o ministro Edson Fachin legitimou a competência do Tribunal de Contas com base na Súmula 347, no sentido de dar provimento ao recurso para reformar a decisão do Tribunal de Justiça[13]. No entanto, o caso foi para a Segunda Turma do STF e, posteriormente, afetado ao plenário pelo ministro Gilmar Mendes, estando atualmente pendente de julgamento.
Ainda no ano de 2023, no mês de agosto, houve julgamento do AgReg no MS n. 25.888/DF. No mencionado processo, havia uma discussão quanto à legitimidade do TCU para “declarar a inconstitucionalidade” do art. 67 da Lei 9.478/1997 e do Decreto 2.745/1998. No caso, a Corte de Contas, após o deslinde do mérito no Processo n. 008.210/2004-7[14] (Relatório de Auditoria), determinou à época, por meio do Acórdão 1.498/2004, que a Petrobrás: (i) justificasse, de modo circunstanciado, a aplicação das sanções previstas no art. 87 da Lei 8.666/1993, no sentido de garantir prévia defesa da contratada e mantendo no respectivo processo administrativo os documentos que evidenciem tais procedimentos e; (ii) obedecesse ao estabelecido nos arts. 22 e 23 da Lei 8.666/1993, no que se refere às modalidades de licitação e seus respectivos limites, tendo em vista o valor estimado de contratação.
No acórdão redigido pelo ministro Gilmar Mendes, é possível notar[15] o entendimento de que o juízo de inconstitucionalidade realizado pelo TCU, no caso concreto, vulnerou o princípio da presunção de constitucionalidade, uma vez que este atuou quando (i) não havia inconstitucionalidade manifesta, (ii) não existia jurisprudência STF no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade do tema e, ainda, (iii) que a doutrina apontava na direção oposta àquela que fora adotada pela Corte de Contas.
No julgamento em questão, observa-se, ainda, a retomada de entendimento jurisprudencial originário quanto à Súmula 347, na medida em que o acórdão restabelece interpretação dada pelo RMS 8372/CE (1961).
Conforme se verifica no acórdão de 2023, houve a construção de parâmetros para exercício da apreciação de constitucionalidade pelos TCs, sendo eles: a possibilidade de afastar (incidenter tantum) normas cuja aplicação no caso possa expressar um resultado inconstitucional, seja por (i) violação manifesta/patente de dispositivo da Constituição Republicana ou (ii) contrariedade à jurisprudência do STF sobre a matéria.
O autor Fredie Didier, em artigo envolvendo a temática do controle externo[16], chama a atenção para a aplicação do princípio da eficiência no âmbito dos processos administrativos. O autor diferencia o conceito de efetividade e eficiência. Segundo ele, o processo efetivo poderia ser entendido como aquele que “realiza a situação jurídica reconhecida”, enquanto o processo eficiente seria o processo que atingiu esse resultado de modo “satisfatório”, sem efeitos colaterais ou negativos. À luz da visão do autor, é possível afirmar que a apreciação de constitucionalidade pode ser vista como um meio de assegurar a eficiência ao controle externo exercidos pelo TCs, no sentido de as decisões das Cortes de Contas não terem resultados negativos ou colaterais, como no caso de serem obrigadas a legitimar normas expressamente inconstitucionais, que eventualmente venham a causar violações aos vetores[17] que pautam a atuação do controle externo exercido pelos TCs – legalidade[18], legitimidade e economicidade.
No terceiro capítulo do trabalho monográfico, há a análise de 11 processos e 02 súmulas de diversos TCs, a fim de demonstrar a indispensabilidade do teor da Súmula n. 347 e da inafastabilidade do uso do texto constitucional como norma parâmetro para a eficiência do controle externo.
Com base nas premissas trabalhadas, é possível constatar o fato de a apreciação de constitucionalidade estar intrinsecamente relacionada às competências dos TCs, tais como a de apreciação de legalidade dos atos de admissão e concessão de benefícios previdenciários, as quais perpassam pelo juízo de constitucionalidade das normas que são aplicáveis aos atos administrativos a serem analisados pelas Cortes de Contas, dentro da respectiva realidade federativa e à luz do princípio da juridicidade.
Por fim, é importante sublinhar que a Teoria dos Poderes Implícitos, de Rui Barbosa, possibilita uma leitura apropriada para a controvérsia em questão, isto é, para que as Cortes de Contas possam exercer as suas competências constitucionais de modo integral, é necessário que elas também tenham a atribuição de apreciar a constitucionalidade das leis envolvidas na sua análise.
[1] Trabalho apresentado no dia 16 de novembro de 2023. A orientação foi do Professor Guilherme Braga Peña de Moraes e a banca foi formada pela Desembargadora Patrícia Ribeiro Serra Vieira e pela avaliadora convidada Professora Marianna Montebello Willeman. O trabalho encontra-se disponível no link a seguir: https://site.emerj.jus.br/files/biblioteca/monografia/2023/Fabio_Prudente_Netto.pdf
[2] Como sustentado pelos autores Pedro Lenza e Tathiane Piscitelli, por exemplo.
[3] MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, p. 249.
[4] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2008.
[5] Processo em que se discutia a legitimidade do Conselho Nacional de Justiça para realizar a inaplicação de normas que entendesse como inconstitucional no âmbito das suas atribuições.
[6] Inteiro Teor do Acórdão da Petição n. 4656. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=313416815&ext=.pdf. Acesso em: 30 mar. 2023.
[7] BARBOSA, Rui. Comentários à Constituição Federal Brasileira. V. I, São Paulo: Saraiva, 1932.
[8] O STF, com base na teoria dos poderes implícitos e no âmbito do Mandado de Segurança n. 24.510-7/DF, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, sedimentou entendimento de que o Tribunal de Contas da União possui poder geral de cautela, o qual estaria consubstanciado em prerrogativa institucional decorrente das próprias atribuições que a Constituição Republicana expressamente outorgou à Corte de Contas.
[9] Mandados de Segurança ns. 35.410, 35.490, 35.494, 35.498, 35.500, 35.836, 35.812 e 35.824.
[10] Inteiro Teor do Acórdão no Mandado de Segurança 35.410. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755772012. Acesso em: 14 abr. 2023.
[11] Mandados de Segurança ns. 35.812/DF e 35.824/DF.
[12] Inteiro Teor do Acórdão no Mandado de Segurança 35.812. Brasília, Relator Min. Alexandre de Moraes, julgado em 13/04/2021, DJ 10/05/2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346363760&ext=.pdf. Acesso em: 14 abr. 2023.
[13] Decisão Monocrática no Recurso Extraordinário com Agravo 1.208.460. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15341763714&ext=.pdf. Acesso em: 10 jul. 2023.
[14] Acórdão n. 039/2006. Brasília, Rel. Min. Benjamin Zymler, julgado em 25/01/2006. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao-completo/821020047.PROC/%2520%2520/score%2520desc/3. Acesso em: 15 set. 2023.
[15] Inteiro Teor do Acórdão do Agravo Regimental em Mandado de Segurança n. 25.888/DF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15360846208&ext=.pdf. Acesso em: 15 set. 2023.
[16] DIDIER JR., F. Anteprojeto de Código de Processo de Controle Externo do Estado de Mato Grosso. Civil Procedure Review, v. 13, n. 3, 2023, p. 159-202. Disponível em: https://cpr.emnuvens.com.br/revista/article/ view/326. Acesso em: 30 mar. 2023.
[17] WILLEMAN, Marianna Montebello. Accountability Democrática e o desenho institucional dos Tribunais de Contas no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
[18] Dentro de tal tema, importa realçar que o autor Gustavo Binenbojm afirma que a conformidade da atuação da Administração Pública “ao direito como um todo” – e não mais apenas à lei – constitui a ideia de “princípio da juridicidade”. Tal visão também e trabalhada pelo autor Carlos Ari Sundfeld.