A AGU na Constituinte de 1987-1988: disposições transitórias

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Esta contribuição dá continuidade à série de artigos voltada a reconstruir a gênese constitucional da Advocacia-Geral da União (AGU). Neste sexto artigo, o foco recai sobre o art. 29 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), dispositivo que regulamentou a transição entre o modelo anterior — fragmentado e com atuação pulverizada entre Ministério Público Federal (MPF), consultorias jurídicas e procuradorias autárquicas — e o modelo integrado idealizado para a AGU.

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À época da Constituinte, o universo de órgãos e carreiras que desempenhava as funções que viriam a ser atribuídas à AGU era complexo. Além dos Procuradores da República, havia os Procuradores da Fazenda Nacional (Lei 5.830, de 30 de novembro de 1972), tantas carreiras de procuradores autárquicos quanto as autarquias (Lei 2.123, de 1º de dezembro de 1953), os advogados de ofício, adjuntos de procuradores e procuradores do Tribunal Marítimo (Lei 2.180, de 5 de fevereiro de 1954), os membros da Advocacia Consultiva da União integrantes do Grupo-Serviços Jurídicos (Lei 5.968, de 11 de dezembro de 1973), os integrantes celetistas do Departamento Jurídico do Banco Central (Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964).

O ingresso nessas carreiras já dependia da aprovação em concurso público, mas não havia uniformidade quanto ao regime jurídico e à remuneração.

Foi nesse cenário disperso que o 2º substitutivo do relator Bernardo Cabral, publicado em setembro de 1987, propôs um conjunto de regras transitórias. O art. 14 do Título IX previa a continuidade das atividades dos órgãos jurídicos existentes até a aprovação das leis complementares da AGU e do MPF. Buscava-se impedir a paralisação das atividades e a colocação em disponibilidade dos titulares dos cargos que exerciam as tarefas da advocacia pública compreendidas no escopo do art. 131 da Constituição, assegurando, no seu § 2º, aos Procuradores da República a opção entre as carreiras do MPF e da Procuradoria-Geral da União.

As regras propostas no art. 14 do Título IX do 2º substitutivo desencadearam acalorados debates na Comissão de Sistematização em novembro de 1987, quando se discutiu o Destaque supressivo 7033-87, dos constituintes Octávio Elísio, José Genoíno e Paes Landim (https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/sistema.pdf, p. 2333-2338, acesso em 7/8/2025). O ponto mais sensível dizia respeito ao § 3º, que tratava da incorporação automática à carreira de Procurador da União dos então Assistentes Jurídicos da União, Procuradores e Advogados de Ofício junto ao Tribunal Marítimo, os Procuradores da Fazenda Nacional e os procuradores ou advogados das autarquias federais.

Segundo os Anais da Constituinte, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e membros do MPF haviam publicado matérias em jornais alegando que o § 3 consistiria verdadeiro “trem da alegria”, pois permitiria o ingresso de assistentes jurídicos sem concurso na Procuradoria Geral da União (https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/sistema.pdf, p. 2334, acesso em 7/8/2025).

Ao se manifestar pela aprovação do destaque supressivo, o constituinte Plínio Sampaio mostrou preocupação com a disparidade de regimes no âmbito dos assistentes jurídicos, procuradores e advogados públicos da União e das autarquias, ponderando que seria mais adequado que a lei complementar dispusesse sobre a transição:

Os procuradores de 27 ministérios e de 67 autarquias, procuradores e advogados, entendem que, uma vez se crie esta Procuradoria da União, eles devem fazer parte de seu corpo de servidores. Alegam que, se não o fizerem, se da Constituição não constar isto, eles estarão em uma situação de disponibilidade, dado que a função que exercem passará a ser exercida por outro órgão. Isto é uma argumentação falaciosa. […] o próprio texto das Disposições Transitórias explica que, 120 dias após a promulgação da Constituição, lei complementar reestruturará a Procuradoria da União. Será a ocasião oportuna para se considerar a eventualidade da conveniência para o Brasil e unir, num só corpo, esses vários corpos de advogados da União.

Esses assuntos não podem ser decididos em um só parágrafo, porque existe no Direito o princípio da isonomia. Se fizermos, agora, esta unificação em um só parágrafo, desencadearemos uma tempestade de reajustes de salários, de benefícios e de pagamento de salários atrasados.

Não estamos contra ninguém, que isto fique bem claro. Queremos um tempo suficiente para fazermos um estudo técnico deste assunto, a fim de colocarmos no lugar que de fato corresponda a elas as várias pirâmides de pessoal, o que num setor é classificado como categoria e noutro, como nível. Não é possível proceder-se de outra maneira, e as palavras-chaves do meu discurso são as seguintes: não podemos, de afogadilho, colocar mais de três mil advogados procuradores na Procuradoria da União, porque isto representaria uma irresponsabilidade, falha que esta Comissão ainda não cometeu. Muito obrigado”. (v. https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/sistema.pdf, p. 2333-2334, acesso em 7/8/2025).

A propósito do tema, o constituinte Celso Dourado posicionou-se em sentido contrário, defendendo a rejeição do destaque e a manutenção da regra do § 3º. Para ele, a falta de absorção do contingente acarretaria gastos desnecessários com inatividade remunerada, demissões e novos concursos. Ressaltou ainda que os profissionais envolvidos haviam ingressado por concurso e acumulavam ampla experiência, representando ativo institucional que não poderia ser desperdiçado:

A advocacia da União, exercida por assistentes jurídicos, procuradores da Fazenda Nacional, procuradores ou advogados de autarquias federais e procuradores e advogados de ofício, junto ao Tribunal Marítimo, conta, atualmente, com 3.440 advogados já admitidos no serviço público mediante concurso, entre os quais são contados mestres, doutores, professores e juristas de nomeada. Desprezar esse contingente de servidores, com a bagagem da larga experiência profissional acumulada durante anos, seria absurdo, inadmissível e inconseqüente, pelo fato de ferir mortalmente os mais elementares princípios de racionalidade administrativa e econômica, sobretudo em um momento como este, em que a austeridade na realização dos gastos públicos é exigência da sociedade brasileira. A não-absorção, pela Procuradoria Geral da União, dos 3.440 advogados já referidos provocaria aumento imoral de despesas, em razão da ociosidade remunerada para os estatutários, dos custos de demissão dos celetistas e do ônus de realização de concurso para preenchimento dos cargos da Procuradoria Geral da União. Por outro lado, o dispositivo em questão impedirá que a Procuradoria Geral da União e a Procuradoria da República sejam graciosamente loteados entre membros do Ministério Público Federal. Assim, Srs. Constituintes, é imperativo de racionalidade administrativa e econômica a aprovação do § 3º do art. 14. A medida não implica qualquer aumento de despesa, pois nenhuma vantagem financeira será acrescentada aos salários atualmente percebidos pelos servidores mencionados no parágrafo em questão, que passarão a integrar a Procuradoria Geral da União, levando consigo todo cabedal de experiência profissional acumulada. […] Se os assistentes jurídicos, os procuradores da Fazenda Nacional, os procuradores autárquicos, os procuradores e advogados de ofício, junto ao Tribunal Marítimo tivessem ingressado no serviço público ilegalmente, isto é, sem concurso, certamente o Ministério Público, cioso das suas responsabilidades institucionais, teria representado contra a autoridade responsável.” (v. https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/sistema.pdf, p. 2334-2335, acesso em 7/8/2025).

Na mesma linha, o constituinte Nilson Gibson entendeu que a ANPR pretendia “lotear as duas Procuradorias – da República e da União – entre eles” (v. https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/sistema.pdf, p. 2335. Acesso em 7/8/2025).

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O constituinte Konder Reis, por sua vez, afirmou que essas normas adjetivas “certamente seriam e serão consideradas pela lei complementar”, em promover injustiças contra aqueles que prestavam serviços nas autarquias, ministérios, Tribunal Marítimo e outros órgãos da administração federal.

A questão era sobre a conveniência de adiantar já nos trabalhos constituintes como essa transição seria feita, ou deixar que o legislador complementar decidisse, dentro da perspectiva maior de que a Procuradoria-Geral da União deveria englobar todo o serviço da advocacia pública federal, incluindo a administração direta, autárquica e fundacional (v. https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/sistema.pdf, p. 2336. Acesso em 7/8/2025).

Ao final das discussões, o destaque foi aprovado por 51 votos a 28. Assim, o texto promulgado como art. 29 do ADCT limitou-se a estabelecer regras transitórias relativas aos Procuradores da República, delegando ao legislador a definição de como se daria a integração do restante do serviço jurídico da Administração Pública federal, incluindo autarquias e fundações.