A AGU na Constituinte de 1987-1988: antecedentes

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No primeiro artigo desta série, examinamos os contornos da Advocacia-Geral da União (AGU), com ênfase na redação do art. 131 da Constituição de 1988 e do art. 29 do ADCT, e na estrutura prevista pela Lei Complementar 73, de 1993, a Lei Orgânica da AGU (LOAGU). Mostramos que, apesar da integração normativa proposta pelo constituinte, a LOAGU permaneceu incompleta e anacrônica, especialmente por excluir carreiras e órgãos que hoje exercem funções típicas da advocacia pública federal.

Para compreender esse descompasso, é necessário recuar no tempo. Antes de ser formalizada como Função Essencial à Justiça (FEJ), a advocacia pública federal foi construída de forma fragmentada, com funções distribuídas entre diferentes instituições e variadas carreiras, com pouca coordenação.

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Retomar essa história é compreender que o debate atual sobre a reforma da AGU não é tão recente quanto parece. As tensões entre unidade e pluralidade orgânica atravessam toda a trajetória da instituição. Entendê-las é condição para qualificar a discussão e contribuir para a construção de uma AGU mais coesa e comprometida com sua missão institucional.

A Constituição de 1988 permite distinguir dois conceitos fundamentais de advocacia pública: o material e o formal. Em sentido material, a advocacia pública corresponde à função estatal de representação judicial e extrajudicial dos entes públicos, bem como de consultoria e assessoramento jurídico. Em sentido formal, a advocacia pública designa o conjunto de órgãos e carreiras constitucionalmente incumbidos do exercício dessa função, como a Advocacia-Geral da União e as Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal.

No regime constitucional precedente, contudo, não era possível divisar um conceito formal de advocacia pública federal, embora as atividades de materiais de representação, consultoria e assessoramento de órgãos públicos fossem desempenhadas. Parte das atividades hoje desempenhadas pela advocacia pública federal eram exercidas cumulativamente pelo Ministério Público Federal (MPF).

De acordo com a Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda Constitucional 1 de 1969, o Ministério Público fazia parte do Poder Judiciário, atuando como órgão auxiliar. Além das funções de defesa da ordem jurídica e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, cabia aos procuradores da República representarem judicialmente a União (art. 138, § 2º), gerando conflito de papéis. Não havia menção constitucional específica à advocacia pública, à defensoria pública ou mesmo à advocacia em geral.

No plano infraconstitucional, o Decreto-lei 147, de 3 de fevereiro de 1967, previa a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional como órgão jurídico do Ministério da Fazenda, com funções consultivas e de assessoramento jurídico, além da competência para apurar e inscrever, para fins de cobrança judicial, a dívida ativa da União, tributária ou de qualquer outra natureza. Após a inscrição, cabia aos Procuradores da Fazenda Nacional cooperarem com o MPF, transmitindo-lhe os elementos de fato e de direito para a cobrança judicial (arts. 16, II, e 20 do Decreto-lei 147, de 1967).

Havia ainda a Consultoria-Geral da República, estruturada como parte da Presidência da República e incumbida do assessoramento jurídico imediato ao Presidente (art. 32 do Decreto-lei 200, de 1967). Paralelamente existiam órgãos da Advocacia Consultiva da União (Decreto 93.237, de 8 de setembro de 1986), órgãos e carreiras de consultoria, assessoramento e de representação judicial e extrajudicial das autarquias e fundações públicas federais (Lei 2.123, de 1º de dezembro de 1953), bem como a Procuradoria do Tribunal Marítimo (Lei 2.180, de 5 de fevereiro de 1954).

Em termos comparativos, esse mosaico institucional pré-1988 era ainda mais complexo do que o arranjo vigente, hoje marcado pela existência de quatro carreiras distintas no âmbito da AGU. Naquele período, a dispersão era tamanha que as funções típicas da advocacia pública federal estavam pulverizadas em múltiplos órgãos e vínculos funcionais, frequentemente sobrepostos e com linhas de atuação pouco coordenadas.

Era um arranjo amorfo que contrastava com soluções mais simples e avançadas já adotadas em diversos estados. Neles, as procuradorias estaduais já exerciam a representação judicial e extrajudicial dos entes federados, bem como as funções de consultoria e assessoramento jurídicos, enquanto os Ministérios Públicos estaduais dedicavam-se à defesa da ordem jurídica, notadamente no campo criminal e na proteção dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Há mais de vinte anos, por exemplo, em Goiás, por força da Lei Estadual nº 5.550, de 11 de novembro de 1964, haviam sido integradas a Consultoria Jurídica do Estado, a Procuradoria Fiscal e o Serviço de Assistência Judiciária, criando-se a Procuradoria-Geral do Estado, numa estrutura mais coesa, que passou a ser responsável pela consultoria e assessoramento jurídico ao governo, bem como pela defesa dos interesses do Estado em juízo, incluindo a cobrança da dívida ativa.

No Ceará, a Procuradoria-Geral havia sido criada pela EC estadual 6, de 30 de dezembro de 1976, com competência para a “representação judicial do Estado, a defesa de seu patrimônio e da Fazenda Pública Estadual, a representação de seus interesses junto aos contenciosos administrativos e o exercício das funções de consultoria jurídica do Executivo e da Administração Direta”.

Na mesma linha, em São Paulo, a sua Procuradoria-Geral já exercia a representação judicial e extrajudicial do Estado, a consultoria jurídica do Poder Executivo e da Administração em geral, bem como promovia a cobrança judicial da dívida ativa em todo o Estado, conforme art. 2º da Lei Complementar 93, de 28 de maio de 1974.

No recém-criado estado de Mato Grosso do Sul, a Procuradoria-Geral foi instituída, com autonomia administrativa, pelo Decreto-lei 25 de 1º de janeiro de 1979, com competência para representação judicial e extrajudicial, cobrança judicial da dívida ativa, e exercício das funções de consultoria jurídica da Administração (art. 1º).

Vale ainda pontuar que, no Rio de Janeiro, a Procuradoria-Geral estava regulada nos termos da Lei Complementar 15, de 25 de novembro de 1980, com autonomia administrativa e financeira conferidas pela Lei Complementar 29, de 1982, com competência para a representação judicial do Estado, incluindo a cobrança da dívida ativa, e as de consultoria e assessoramento jurídicos.

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Ou seja, nesses estados já se havia reconhecido que não era adequado atribuir ao Ministério Público, simultaneamente, as funções de fiscal da ordem jurídica e de advogado das entidades públicas. Essa dissociação nos estados entre advocacia pública e Ministério Público seria incorporada, na década de 1980, ao projeto da nova Constituição, inspirando a criação da AGU (v. BABILÔNIA, Paulo. A AGU como Função Essencial à Justiça. In: CASTRO, Aldemário Araujo; MACEDO, Rommel. Advocacia Pública Federal: afirmação como função essencial à justiça. Conselho Federal da OAB. Brasília, 2016, p. 323).

No próximo artigo dessa série, abordaremos os debates da Assembleia Nacional Constituinte, com ênfase nas propostas, resistências e consensos que moldaram o art. 131 da Constituição. A partir da leitura das emendas e dos discursos dos constituintes, será possível compreender como se firmou a opção por um conceito formal de advocacia pública federal. Essa formalização, ausente nos modelos constitucionais anteriores, foi o passo decisivo para transformar uma prática fragmentada em uma função dotada de unidade, identidade institucional e assento constitucional próprio.