No clássico O leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, o personagem Tancredi de Falconer diz a célebre frase: “Se quisermos que tudo continue como está, tudo precisa mudar”. No contexto do romance, a frase é dita de forma (quase) cínica para justificar uma aliança em meados do século 19 entre uma família da aristocracia italiana decadente com uma burguesia em ascensão e, com isso, preservar seu lugar no estrato social.
Indivíduos, organizações e sociedades demonstram frequentemente resistência, incômodo ou receio a mudanças significativas – ou disruptivas (para usar a palavra da moda). A inteligência artificial não chega a ser exatamente uma novidade, mas a evolução desta tecnologia no(s) último(s) ano(s) literalmente deixou os livros de ficção científica e passou a estar disponível para qualquer usuário. No universo dos serviços jurídicos, deve-se chamar a atenção para o fato de que a influência da IA não deve ser para um futuro próximo, mas já está em plena aplicação e viabilidade.
Conhecimento acerca da existência de soluções oferecidas pela IA à advocacia vem gradualmente aumentando. Uma pesquisa realizada pelo LexisNexis no Reino Unido revelou que nada menos do que 84% dos profissionais da área jurídica acreditam que a IA vai impactar a profissão de maneira significativa ou perceptível.
Mais interessante ainda é que a mesma pesquisa indica que 66% das empresas que contratam serviços de jurídicos esperam que escritórios de advocacia adotem ferramentas de IA nos próximos 1 a 3 anos.
É verdade que o exercício da advocacia exige um conjunto de aptidões e competências profissionais, algumas delas, ao menos por enquanto, difíceis de serem substituídas por uma máquina. Eloquência na propositura de argumentos, concepção de soluções jurídicas aplicadas a especificidades do cliente, julgamento apropriado no aconselhamento jurídico, empatia e capacidade de adaptação às mais diversas situações são exemplos de soft skills tradicionalmente essenciais na advocacia.
Por outro lado, a prática jurídica é repleta de tarefas que consomem tempo importantíssimo do advogado. Por exemplo: a análise de documentos em uma auditoria jurídica exige inúmeros profissionais de diversas disciplinas que gastam dezenas de horas dissecando inúmeros documentos. Elaboração de primeiras minutas de contratos e gestão de documentos jurídicos são outros exemplos, além, é claro, de tarefas administrativas como elaboração de apresentações, formatação de documentos e gestão administrativa.
São justamente essas funções, de natureza preponderantemente manual, que podem ser concluídas com uma enorme economia de tempo com o uso de ferramentas de IA. Em outras palavras, o operador do direito passa a ser muito mais eficiente na conclusão de determinadas tarefas com a IA. Em um setor que zela pela eficiência na administração do tempo, a IA pode permitir que o advogado concentre sua atuação em aspectos com maior valor para seus clientes.
Evidentemente que há uma série de questões que precisam ser cuidadosamente endereçadas quanto ao uso de ferramentas de IA. Em primeiro lugar, é necessário se certificar que o uso de IA não compromete a confidencialidade de informações. É preciso entender em detalhes como as informações compartilhadas com as ferramentas de IA são utilizadas e se são suficientemente seguras. Em segundo lugar, há a questão de falha da IA seja em razão de erro ou, mais grave, por inventar informações inexistentes (as chamadas “alucinações”), o que exige que sempre se confira as informações trazidas pela ferramenta.
Em que pese algumas vozes alarmistas quanto ao futuro advocacia – o que não é nada extraordinário sempre que surgem tecnologias que provocam a necessidade de adequação –, a IA tem o potencial de facilitar a atuação advocatícia. Há alguns anos, pesquisar o texto de uma lei, exigia consulta à extensas coleções livros com intricados índices remissivos e obtenção de cópia de jurisprudência demandava visita ao fórum. Hoje isso é solucionada com uma simples pesquisa na internet e outras ferramentas jurídicas.
Exatamente onde a IA pode levar a profissão jurídica ainda é incerto e só o tempo dirá. Porém, não precisamos ser como Tancredi em O leopardo, mas sim, esperar que as coisas mudem porque a profissão deve também evoluir e, acima de tudo, se beneficiar das mudanças.