A abordagem policial motivada por critério racial como produto do racismo estrutural

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A sociedade brasileira estruturou-se em cima de um regime escravocrata que subjugou milhões de africanos. Produto direto desse contexto histórico é a desigualdade e a discriminação racial que ainda grassam no Brasil. A abolição da escravidão em 1888 não marcou o fim do racismo; ao contrário, ele se transformou e se enraizou nas estruturas sociais e institucionais do país.

Embora sempre lembrado por sua diversidade étnica e cultural, o Brasil é marcado por profunda desigualdade racial presenciada no mercado de trabalho, na distribuição de rendimentos e condições de moradia, na educação, na alta incidência da população negra como vítima de violência, na baixa representação política, dentre outras dimensões[1].

No presente ensaio, busca-se chamar a atenção para um dos processos que revelam a estigmatização da população negra diante do sistema de justiça criminal: a abordagem policial motivada por critério racial e sua relação com o racismo estrutural existente no Brasil.

A seletividade penal da cor enraizada no sistema de justiça criminal brasileiro

Uma análise imparcial dos dados referentes ao sistema prisional brasileiro coletados pelo 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública em 2023 escancara que o sistema de justiça criminal do Brasil encarcera majoritariamente pessoas negras e persiste na recusa em prover condições dignas de vida e garantir direitos para essa população[2].

Trata-se de um quadro de violência racial aderente ao processo de desumanização das pessoas negras, cuja engrenagem incorpora o próprio aparato jurídico-institucional.

Silvio Luiz de Almeida leciona que as instituições são reflexos de uma estrutura social e de um processo de socialização que incorporam o racismo como parte de seu funcionamento. O racismo não é algo originado pelas instituições, mas sim reproduzido por elas.

É evidente que “estamos diante dos atravessamentos do racismo estrutural, que opera como um fator determinante na política prisional brasileira, dela sendo integrante. Ou seja, o sistema de justiça tem reproduzido padrões discriminatórios, naturalizando a desigualdade racial[3].

No ano de 2022, a população negra encarcerada no sistema penitenciário brasileiro atingiu o maior patamar da série histórica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), alcançando o patamar de 442.033 negros encarcerados no país, ou 68,2% do total das pessoas presas – o maior percentual já registrado.

Esse número dramático é resultado de diversas formas de estigmatização das pessoas negras nas distintas fases da persecução penal, sendo um exemplo a abordagem policial motivada por critério exclusivamente racial.

Diversos estudos apontam uma gritante desproporcionalidade entre abordagens policiais a pessoas negras em relação às pessoas brancas. Um deles atesta que, somente no Estado de Minas Gerais, cujo número de pessoas presas em flagrante gira em torno de 350.000 ano, há uma relação de 2,61 pessoas negras em flagrante para cada pessoa branca no ano de 2018[4].

O caso brasileiro chega a ser citado como exemplo da adoção de perfilamento social pela ONU, que constatou, durante visita do Grupo de Trabalho de Especialistas sobre Pessoas Afrodescendentes ao Brasil, haver “uma representação desproporcional de brasileiros afrodescendentes no sistema prisional e uma cultura de perfilamento e discriminação racial em todos os níveis do sistema de justiça[5].

Tal preocupação com a violação de direitos da população negra pelo sistema de justiça criminal também é expressada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em seu relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil, em que se constatou a existência de processos sistêmicos de violência perpetrados por agentes do Estado, especialmente por aqueles vinculados às instituições policiais e sistemas de justiça baseados em padrões de perfilamento racial com um objetivo de criminalizar e punir a população afrodescendente”[6].

Nas palavras de Silveira, o racismo é coadjuvante do sistema penal na medida em que constrói simbolicamente o estereótipo do negro como criminoso (…) racismo e sistema penal proliferam-se associativamente: o preconceito racial formula o estereótipo do negro criminoso; o sistema penal reforça-o por meio de um chamamento presente ou futuro, com destaque para a atuação das células policiais[7]

Atualmente, a discussão acerca do etiquetamento da população negra e seus reflexos na seletividade das intervenções do sistema de justiça criminal está sendo travada no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

A Suprema Corte brasileira analisa um habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo (HC 208.240/SP) que objetiva reconhecer a nulidade da apreensão de 1,53 grama de entorpecentes em virtude do perfilamento racial, enquanto manifestação explícita de racismo institucional feito na busca pessoal.

Já com cinco votos apresentados, os ministros do STF convergiram em relação às premissas de que o denominado perfilamento racial (ações a partir de generalizações fundadas na raça) deve ser abolido da prática policial. Entretanto, a maioria dos ministros divergiu do relator, Ministro Edson Fachin, entendendo que o caso concreto não se enquadraria nessa prática[8].

Embora seja válida a crítica lançada sobre a possibilidade de o STF legislar, com efeitos ex nunc, criando tese jurídica em um processo de habeas corpus, à míngua de previsão constitucional, legal e procedimental específica para tanto[9], espera-se que a questão seja objeto de análise em toda a sua extensão, agora ou em outra oportunidade próxima, para se avançar na disrupção de práticas estruturalmente racistas como a abordagem policial motivada por filtragem racial.

Afinal, como registrado na declaração de voto do Min. Edson Fachin, relator do HC 208.240/SP: “Tratar das atividades policiais sem situar o fenômeno da racialização dos grupos sociais na análise, é desencontrar questões cruciais para a compreensão da igualdade na nossa sociedade […]Há um desafio que deve nos comprometer todos: sociedade, sistema de justiça e forças policiais, a reprimir comportamentos que consciente e inconscientemente atribuem Às pessoas negras sentidos negativos decorrentes de estereótipos que as situam como sujeitos criminosos em decorrência da cor da pele. Não há crime e não pode haver castigo, pela cor da pele”.

Conclusão

É incontestável que o Brasil adota como prática institucional a abordagem policial motivada por critério racial (perfilamento racial) e que essa seletividade do sistema de justiça criminal guarda estreita relação com o racismo estrutural entre nós existente.

As estatísticas e os estudos existentes convergem para demonstrar a gravidade da interferência da cor da pele como circunstância idônea a submeter uma pessoa à busca pessoal realizada pelo aparato policial, ainda que à míngua de qualquer elemento objetivo da realidade fática que justificasse a intervenção.

Essa questão encontra-se submetida a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, com pedido de vista formulado pelo Ministro Luiz Fux, no qual se espera a fixação de parâmetros vinculantes no sentido de coibir a realização de abordagens policiais com base na raça, cor, descendência, nacionalidade ou etnicidade do alvo da abordagem.

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Referências

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BRANDÃO, Juliana. LAGRECA, Amanda. O delito de ser negro – atravessamentos do racismo estrutural no sistema prisional brasileiro. In: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, p. 308-319, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 10 outubro de 2023.

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Situação dos direitos humanos no Brasil: Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 12 de fevereiro de 2021 / Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/brasil2021-pt.pdf Acesso em 10 outubro de 2023.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf  Acesso em 10 outubro de 2023.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em:https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 10 outubro de 2023.

NAÇÕES UNIDAS. Prevenindo e Combatendo o Perfilamento Racial de Pessoas Afrodescendentes: Boas Práticas e Desafios. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/105298-perfilamento-racial-debates-realizados-pela-onu-discutem-recorr%C3%AAncia-de-casos-e-desafios. Acesso em 10 outubro de 2023.

RAMOS, Silvia; SILVA, Pedro Paulo da;  SILVA, Itamar; FRACISCO, Diego. Negro trauma: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: CESeC, 2022.

SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. Da criminalização do racismo: aspectos jurídicos e sociocriminológicos. Belo Horizonte – Editora Del Rey. 2007.

SINHORETTO, Jacqueline. Policiamento e relações raciais: estudo comparado sobre formas contemporâneas de controle do crime. UFSCar, 2020.

[1] Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf Acesso em 10 outubro de 2023.

[2] BRANDÃO, Juliana. LAGRECA, Amanda. O delito de ser negro – atravessamentos do racismo estrutural

no sistema prisional brasileiro. In: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, p. 308-319, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 10 outubro de 2023, p. 308.

[3] Idem, p. 309.

[4] SINHORETTO, Jacqueline. Policiamento e relações raciais: estudo comparado sobre formas contemporâneas de controle do crime. UFSCar, 2020, p. 140.

[5] NAÇÕES UNIDAS. Prevenindo e Combatendo o Perfilamento Racial de Pessoas Afrodescendentes: Boas Práticas e Desafios. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/105298-perfilamento-racial-debates-realizados-pela-onu-discutem-recorr%C3%AAncia-de-casos-e-desafios. Acesso em 10 outubro de 2023, p. 3.

[6] COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Situação dos direitos humanos no Brasil: Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 12 de fevereiro de 2021 / Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/brasil2021-pt.pdf Acesso em 10 outubro de 2023, p. 19.

[7] SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. Da criminalização do racismo: aspectos jurídicos e sociocriminológicos. Belo Horizonte – Editora Del Rey. 2007.

[8] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=503718&tip=UN

[9] https://www.conjur.com.br/2023-mar-13/opiniao-perfilamento-racial-precedente-concreto